Dano moral coletivo trabalhista contra ente de direito público: cabimento e estudo jurisprudencial
Autor | Marcelo Freire Sampaio Costa |
Cargo | Procurador do Ministério Público do Trabalho lotado na 8ª Região |
Páginas | 183-198 |
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O presente trabalho tem por objetivo discutir o cabimento de condenação de ente de direito público em dano moral coletivo, bem como a possibilidade de direcionamento dessa condenação a ente diverso do FAT — Fundo de Amparo ao Trabalhador.
O leit motivpara o estudo desses assuntos veio à baila por intermédio do decidido em ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho contra o Estado da Bahia, que tramitou pelo Tribunal Superior do Trabalho, Processo n. TST-RR n. 94500-35.2004.5.05.0008.
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Registre-se que tal precedente jurisprudencial serve apenas para justificar a gênese dos argumentos doutrinários a serem aqui apresentados. O objetivo não é discutir pormenorizadamente a mencionada ação coletiva1; apenas apropriar-se dos temas já citados, desta exsurgidos.
Inicia-se com breve panorama da citada ação.
Trata-se de ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho da 5§ Região em desfavor do Estado da Bahia por conta de comprovada fraude e desvio de finalidade na contratação de estudantes estagiários na rede de ensino estadual (Proc. TST-RR n. 94500-35.2004.5.05.0008)2.
O Regional da Bahia julgou improcedente pedido de danos morais coletivos sob o argumento da impossibilidade de se condenar pessoa jurídica de direito público interno a pagar indenização em favor de outra entidade de caráter público — o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
A r. Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho, em sede de recurso de revista aviado pelo MPT, reformou a decisão reconhecendo, por unanimidade, a possibilidade de condenação em dano moral coletivo do ente público demandado, bem como confirmou o valor postulado na inicial de R$ 5.054.400,00 (cinco milhões, cinquenta e quatro mil e quatrocentos reais), "fundamentado no cálculo de um salário mínimo vigente à época do dano (R$ 260,00), para cada mês de prestação de serviços (3 meses), de cada um dos 6.480 estagiários irregularmente contratados, mostrar-se proporcional à extensão do dano e à capacidade econômica do ofensor, bem como se configura apto a inibir a reincidência do réu na infração"3.
O ente público apresentou recurso de embargos (art. 894, II, CLT) visando unicamente a diminuição do valor da condenação e a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, por maioria, acabou por reduzir a indenização por dano moral coletivo para "R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais), a ser recolhido em favor do Fundo de Amparo ao Trabalhador"4.
O feito retornou à origem, com o trânsito em julgado.
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Pode-se afirmar que o cabimento do instituto em estudo encontra-se plenamente consolidado nos tribunais laborais pátrios.
No Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, o primeiro julgado tratando dessa questão é de meados de 20065. Desde então, há algumas centenas de precedentes deitando condenações em danos morais coletivos.
Portanto, ultrapassada a fase de se discutir simplesmente a questão do cabimento, a altercação envolvendo a possibilidade de condenação de ente de direito público em dano moral coletivo significa verdadeiro aperfeiçoamento desse instituto, como se fosse o desabrochar de um segundo momento, de consolidação acadêmica e jurisprudencial, capaz de deflagrar infinidade de outras questões aptas à elevação de novos marcos.
Volta-se ao conceito de dano moral coletivo.
Consoante já sustentado em outra ocasião6, defende-se a existência de três vetores (tripé justificador) que fundamentam o reconhecimento da
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ocorrência de danos excedentes da esfera da individualidade. São eles: a) dimensão ou projeção coletiva do princípio da dignidade da pessoa humana; b) ampliação do conceito de dano moral coletivo envolvendo não apenas a dor psíquica; c) coletivação dos direitos ou interesses por meio do reconhecimento legislativo dos direitos coletivos em sentido lato.
Importante trabalhar cada um desses vetores insuladamente, para depois se apresentar o conceito de dano moral coletivo. Senão veja-se:
O dano moral ou extrapatrimonial representa a violação do direito da dignidade da pessoa humana7. Este princípio tem a aptidão para alcançar, além do secular reconhecimento de uma dimensão ontológica construída a partir da noção Kantiana de autonomia da vontade do ser humano, novéis esferas de proteção ou projeção dessa dignidade positivada constitu-cionalmente como fundamento da República e do Estado Democrático de Direito (art. 1e, III).
E é justamente essa expansão protetiva que justifica a defendida projeção comunitária ou social do princípio da dignidade da pessoa humana. Representa a existência de um dever geral de respeito no âmbito da comunidade dos seres humanos8. A proteção da dignidade implica, no viés singular ou coletivo, uma obrigação geral de respeito ao ser humano.
Quando a doutrina9 e a jurisprudência10 vinculam (e isso vem ocorrendo rotineiramente) o dano moral coletivo a uma "injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade"11, ou a violação de "um determinado círculo de valores coletivos"12, desencadeadores de um sentimento de repulsa e indignação, significa dizer, com mais acerto conceitual, ter restado violada a citada obrigação geral de respeito pela pessoa humana. Isto retrata, simplesmente, a violação da projeção coletiva da dignidade da pessoa
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humana. Os citados sentimentos de repulsa e indignação representam apenas e tão somente consequência dessa citada violação. A reparação coletiva convolou-se, por consequência, no "reverso da medalha"13 do princípio da dignidade da pessoa humana em sua projeção coletiva.
Aliás, o Tribunal Superior do Trabalho, na citada primeira decisão sobre esse assunto, ratificou posicionamento similar ao ora apresentado, porque reconheceu ter havido "lesão à ordem jurídica"14 em razão da homologação de acordos na jurisdição nitidamente prejudiciais aos direitos indisponíveis dos Trabalhadores.
Repita-se. O sentimento de "repulsa" e "desapreço social" exsurgido por intermédio da ocorrência do dano moral coletivo mostra-se, portanto, possível consequência da citada violação do dever geral de respeito geral pela pessoa humana, individual ou coletivamente considerada.
Não se mostra correta a concepção vinculativa da ocorrência do dano moral ou extrapatrimonial à esfera subjetiva da dor, sofrimento e emoção, pois tais aspectos são eventuais e possíveis consequências15 da violação à citada projeção coletiva da dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, deve ser excluída a ideia, "tão difundida quanto errônea, de que o dano moral é a dor sofrida pela pessoa"16. A dor, de fato, "é apenas a (possível) consequência da lesão à esfera extrapatrimonial"17 de uma dada pessoa.
A proteção jurídica hodierna busca alcançar todo e qualquer dano extrapatrimonial, não ficando inclusive limitada ao rol de direitos insertos no inciso X da Carta Maior brasileira (intimidade, vida privada, honra e imagem), pois tal enumeração "é meramente exemplicativa"18.
Ademais, se a concepção de dano extrapatrimonial estivesse apenas e tão somente vinculada à ideia de dor e sofrimento, não se poderia aceitar
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a configuração dessa modalidade de dano à pessoa jurídica (violação objetiva direito ao nome, consideração e reputação social), como acontece em nossa realidade pátria (vide Súmula n. 227 do Superior Tribunal de Justiça e art. 52 do Código Civil).
Aliás, o entendimento sumular do tribunal mencionado quanto ao reconhecimento do dano moral atingir também pessoas jurídicas constituiu "o primeiro passo para que se aceitasse a reparabilidade do dano moral em face de uma coletividade"19.
A propósito, assim como a dor, sofrimento ou outro equivalente psíquico mostra-se eventual decorrência do dano moral individual, os sentimentos de repulsa e indignação social também se apresentam como mera e possível decorrência do dano moral coletivo.
De há muito existe a chancela legal dos interesses excedentes dos limites da individualidade. Basta recordar a conhecida Lei da Ação Popular que já na década de sessenta admitia (art. 1e) a possibilidade da proteção do patrimônio público, ou seja, interesses que obviamente superavam e superam os limites da individualidade. O ápice desse desenvolvimento legal pode ser considerado a definição das três modalidades de interesses coletivos em sentido lato (difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos) no art. 81 da Lei n. 8.078/199020, mais conhecido como Código de Defesa do Consumidor, cujo objetivo é a tutela de conflitos ínsitos de sociedades de relações massificadas.
Aliás, registre-se que após a edição da Lei n. 7.347/85, Lei da Ação Civil Pública, e do citado CDC, institui-se no direito brasileiro um sistema "completo e eficaz para proteção dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos"21...
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