O Dano Existencial da Pessoa-que-trabalha: Um Repensar à Luz do Direito Fundamental ao Trabalho e da Psicodinâmica do Trabalho

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Ocupação do AutorCoordenadora
Páginas145-159

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1. Introdução: a necessidade de aprofundar o conceito de dano existencial trabalhista

A categoria jurídica do dano existencial, trazida para o campo das relações de trabalho, pretende dar sentido para aspectos ainda não sedimentados na lei e mesmo na doutrina e jurisprudência. Este estudo é movido pelo propósito de que a própria noção de dano existencial nas relações de trabalho precisa ser situada à luz das transformações pelas quais passa o mundo do trabalho.

Nossas percepções sobre o viver não se dissociam das diversas representações acerca do tempo e de como se constroem socialmente modos de organizar, simbolizar, medir os tempos da vida, sempre relacionados também aos diferentes espaços. Práticas e conceitos de tempo e de espaço são seletivamente agregadas pelos particulares modos de produção ou formação social.1Na modernidade capitalista, ganha centralidade a articulação entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho.

A modernidade capitalista dissolveu diversas outras formas históricas de organização dos tempos-espaços de trabalho e vida, reduzindo tendencialmente o trabalho humano a uma específica forma de trabalhar, o assalariamento. Este subsume o trabalho como produtor de valor para o capital, mas o próprio trabalhar e o resultado do trabalho não têm valor de uso para o sujeito que trabalha. Engendrou-se, aí, um corte entre tempo de trabalho e tempo de vida. O tempo de trabalho não interessaria ao trabalhador, senão como um meio para algo que ele possa vir a usufruir no tempo de não trabalho. É neste que se daria, então, o momento da autorrealização inviabilizada pelo tempo de trabalho.

É claro que essa separação é mais formal que real. Ninguém deixa de existir como sujeito enquanto trabalha. Aliás, ele só trabalha, porque investe no trabalho as suas habilidades físicas e psíquicas, para dar conta de todas as vicissitudes imprevisíveis do trabalhar. E essas capacidades precisam ser desenvolvidas tanto durante quanto fora do trabalho. O conceito freudiano de traumarbeit, que significa exatamente o trabalho durante o sonho, aponta para que mesmo dormindo trabalhamos sobre o nosso corpo psíquico. Além disso, o que seria o “tempo livre” é socialmente funcionalizado à produção, tratando-se, de um lado, não só de assegurar a “reposição das forças” físicas e psíquicas, de modo a poder reproduzir-se como força de trabalho, como propiciar o desenvolvimento das capacidades e, de outro, permitir a atividade de consumo, inclusive dos bens produzidos pela indústria do lazer.

Ato contínuo, porém, esse específico modo de trabalhar, que nega o trabalho em si como direito fundamental, no extremo, um trabalho “não vida”, torna-se uma presença avassaladora para a vida das pessoas. Quem não tem um “trabalho” continua compelido a ele pela necessidade e a ter o trabalho, que não está, como o referencial de identificação e reconhecimento social e a única via possível de alcançar bens materiais e simbólicos essenciais. Quem tem um “trabalho” se exaure cada vez mais, padecendo a colonização das demais esferas da vida ante o medo do risco de desestabilização que pode produzir a sua perda, que provavelmente virá, numa precariedade que raramente viabiliza a construção de um projeto de vida minimamente estável. Ou seja, em nenhum dos dois casos o tempo de não trabalho se pode reconhecer como tempo de vida livre e digna.

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Nas últimas décadas, a generalização da precariedade produzida pelo avanço da grande onda neoliberal transforma e aprofunda a alienação do tempo de vida no trabalho e fora dele. Não basta, agora, sujeitar-se de modo obediente e produtivo ao tempo de trabalho “não vida” como preço para algum “tempo livre” em que se possa descansar, instruir-se e consumir. É todo o tempo de vida que precisa ser subordinado às necessidades de uma nova subjetividade. Engendra-se um novo sujeito que age em suas diversas esferas de relações como um empresário de si mesmo, que busca atuar de forma competitiva e calculada de modo a maximizar os benefícios que possa delas obter e que, portanto, engaja completamente todo o seu tempo de vida como essa estranha forma de ativi-dade profissional.2A noção de ‘empresa de si mesmo’ supõe uma ‘integração da vida pessoal e profissional’, uma gestão familiar do portfólio de atividades, uma mudança da relação com o tempo, que não é mais determinada pelo contrato salarial, mas por projetos que são levados a cabo com diversos empregadores.3Assim, nesse novo totalitarismo, os processos de despersonalização e alienação se aprofundam. Ao invés de desenvolverem-se sistemas de relações capazes de propiciar melhores condições de vida, aprofunda-se a precarização salarial e existencial dentro e fora do trabalho.4O assalariamento continua sendo predominante na sociedade, mas é cada vez mais influenciado pelos modos de gestão neoliberal, que incidem não só sobre o tempo de trabalho mas procuram produzir uma conduta social geral governada pelo capital.

Uma das possibilidades de reversão deste quadro seria justamente a criação das condições concretas de trabalho para o desenvolvimento das capacidades subjetivas do homem como ser social, reconstruindo os ambientes coletivos de convivência e deliberação, criando mecanismos que permitam que o indivíduo possa se reapropriar do conteúdo do seu próprio trabalho, vendo-se reconhecido pelo seu fazer, bem como desempenhando sua contribuição para a cultura, para a polis, por meio de um trabalho capaz de honrar a vida.5Nesse sentido, abre-se a percepção da interpenetração entre tempo de trabalho e tempo de vida e o trabalho deixa de ser visto apenas como um mal necessário, um meio para fins que lhe são alheios, mas passa a ter um relevância intrínseca para os sujeitos, ainda que no horizonte restrito do da nossa forma social, mas como força que impulsiona a sua transformação.

O trabalho humano é visto, então, enquanto atividade intencional de transformação do real no curso da qual se dá a descoberta e o desenvolvimento das potencialidades humanas; intercâmbio orgânico com a natureza, pela qual o ser humano, produzindo valores de uso e interagindo com o mundo material, também transforma-se e revela-se a si mesmo, como sujeito, e à totalidade social, intersubjetivamente. Assim, o trabalho é o primeiro elemento que conforma a capacidade do ser humano para autorrealizar-se individual e comunitariamente6.

A partir daí, o direito ao trabalho, como um direito humano e fundamental, constitui instrumento imprescindível para a afirmação da dignidade da pessoa humana, autorrealização e mesmo libertação do ser humano. Ele é muito mais do que o direito a um posto de trabalho ou a mera regulação dos limites de exploração do trabalhador. Passa-se a perceber que o núcleo desse direito social primordial é o direito ao conteúdo do próprio trabalho, às condições relativas à atividade e à organização do trabalho para que este possa ser uma mediação das necessidades humanas e não apenas um mal necessário.7Em certo sentido, a categoria jurídica do dano existencial que recentemente vem sendo trazida para o direito do trabalho, percebe a relevância do trabalho para o conjunto da vida dos indivíduos. Em todos os momentos em que a pessoa comum está engajada no trabalhar, de forma inseparável está a pessoa do trabalhador, seu corpo biológico e psíquico, ou seja, o trabalho vivo.8Surgido a partir da teoria da responsabilidade civil decorrente de dano aos direitos de personalidade9, o dano existencial trabalhista objetiva resguardar o direito do ofendido ao seu pleno desenvolvimento enquanto ser humano genérico, potencialmente cerceado pela desmesurada colonização do tempo de vida pelo tempo de trabalho.

Limitar o tempo de trabalho alienado, de modo a liberar parcela significativa do tempo de não trabalho para o alvedrio do trabalhador é, sem sombra de dúvidas, uma reivindicação essencial e está no nascedouro do direito do trabalho. A luta social entre a redução e ampliação da jornada de trabalho continua sendo um relevante mote da luta de classes.10Certamente, o trabalho não só distancia o trabalhador das demais relações sociais como tende a colonizá-las. No entanto, considera-se que o desenvolvimento da promissora categoria jurídica do dano existencial trabalhista ainda padece de estar demasiadamente limitada à visão, acima criticada, que justapõe tempo de trabalho e tempo de não trabalho. O dano existencial trabalhista seria o dano que o tempo de trabalho

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produz sobre o que seria o “tempo livre”, o tempo de não
trabalho.11Com isso, obscurece-se que o tempo de trabalho
também é tempo de vida e olvida-se o dano existencial que a
própria afetação do tempo de vida no trabalho pelas condições de trabalho pode acarretar, mesmo que aí se utilizem os
conceitos de dano ao projeto de vida e dano à vida de relações.

Em face do problema assim apresentado, é que se propõe, no presente trabalho, experimentar compreender os limites e potencialidades da categoria jurídica do dano existencial decorrente da violação ao direito fundamental ao trabalho, a partir de uma visão mais integrada entre tempo de trabalho e tempo de vida, valendo-se dos aportes críticos de duas abordagens intimamente relacionadas a esse tema e que não vêm até aqui sendo consideradas. De uma parte, a filosofia da existência, a partir de Jean-Paul Sartre, que enfoca a centrali-dade da dimensão existencial do humano e, de outra parte, a psicodinâmica do trabalho de Christophe Dejours, que enfoca a centralidade do trabalho para o humano.

No capítulo que segue reconstituem-se os aspectos essen-ciais do surgimento do dano existencial e de sua...

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