Da inexistência de fundo de comércio nas sociedades de profissionais de engenharia

AutorTercio Sampaio Ferraz Júnior
Páginas45-51

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Conforme nos mostra a moderna teoria dos sistemas (cf. Luhmann: Rechtssoziologie, Hamburg, 1972) sociedades são sistemas estruturados de ações significativamente relacionadas que excluem do rol de seus componentes o homem concreto. Não se trata, pois, de conjunto de indivíduos, enquanto organismos controlados por um sistema psíquico (personalidade), pois o sentido de conexão dos seus atos não coincide com a conexão de sentido que liga as ações de um sistema social. Embora indivíduo concreto e sistemas sociais estejam estruturados para coexistir, um é para o outro um problema, isto é, uma complexidade indeterminada e contingente, a ser enfrentada, isto é, controlada. O homem concreto é um conjunto aberto de possibilidades de ação. Ao viver em sociedade, estas ações se vêem qualificadas e combinadas de modo a limitar aquelas possibilidades. Por exemplo, o indivíduo concreto está capacitado a procriar mas, socialmente, a procriação ganha um sentido estruturado como paternidade, paternidade responsável etc. Para o indivíduo isto pode significar um problema de adaptação, aculturação etc. Para a sociedade, um problema de aceitação, repulsa, mudança etc.

Esta concepção de sistema social vem repercutindo no Direito. Se ainda durante o século XIX o mercado, por exemplo, pôde ser visto pelos juristas como um conjunto harmónico de relações bilaterais (câmbio e acomodação de interesses, sociedades como conjuntos de indivíduos), aos poucos foi-se dando conta de que a complexidade do mercado não explicava, por meio da concepção individualista, a criação de bens públicos como a ordem, nem era capaz de lidar com as externalidades (os efeitos de decisões que afetam terceiros que não tiveram parte nelas: por exemplo, decisões de investimento que geram poluição), nem era capaz de explicar os desvios funcionais do indivíduo (por exemplo, o consumidor que escolhe mal por força da propaganda). Ou seja, percebia-se que o mercado, como sistema social, apontava para estruturas complexas, irredutíveis à soma das estruturas individuais.

Daí, por consequência, a noção de que sociedades mercantis não se reduzam a uma acomodação de vontades e interesses próprios, mas devam ser compreendidas a partir de objetivos comuns, no sentido de que a satisfação do interesse pessoal das partes passa pela realização de um escopo comum que elas compartilham, mas cuja estrutura obedece a outras regras que não se reduzem à mera disciplina de condutas (cf. Túlio Ascarelli, "O Contrato Plurilateral", inPro-blemas das Sociedades Anónimas e Direito Comparado, 2- ed. São Paulo, 1969, pp. 255 e ss.). Daí a percepção de que sistemas sociais mercantis não podem ser disciplinados apenas por meio de regras de conduta, mas constituem um jogo em que é de-

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cisiva a presença de normas secundárias de competência e organização.

No Direito isto tem ainda uma outra importante repercussão na concepção de pessoa física e jurídica, conceitos que envolveram, no passado, conhecidas disputas teóricas por estarem presas ainda à noção de sistema social como conjunto de indivíduos. Consoante, porém, a nova noção, a ideia de pessoa deve estar vinculada à de papel social. Entende-se assim que indivíduos concretos, capacitados a uma pluralidade indeterminada de ações, em sociedade, têm suas atividades reduzidas a papéis institucionalizados socialmente, isto é, conforme uma estrutura própria irredutível à dos indivíduos. A institucionalização de papéis é condição da interação; ao institucionalizar papéis, o sistema social controla expectativas e confere segurança ao intercâmbio. A interação é percebida não como relação entre indivíduos, mas entre papéis: pai/filho, contribuinte/poder público, comerciante/freguês etc. Nesse cenário, a função do Direito é disciplinar os papéis e suas relações, aumentando os seus contornos de certeza e segurança, promovendo-lhes uma contínua e dinâmica especialização. Assim, o papel de juiz não é apenas de quem julga pendências, mas depende de um estatuto próprio. Assim, quem se dirige ao juiz para obter justiça, embora não desconheça nele a pluralidade de papéis (pai, esposo, filho, membro de um clube etc), percebe nele a neutralização relativa de uma série de papéis possíveis, o que garante a imagem da imparcialidade, distância, profissionalidade etc.

Nestes termos, o que chamamos de pessoa nada mais é do que um feixe de papéis institucionalizados. Quando na disciplina dos papéis as ações correspondentes fazem com que eles se comuniquem entre si (o papel de pagador de impostos se comunica com o de pai, de maior de 65 anos, de funcionário, de possuidor de uma certa renda, de necessitado de serviços de saúde, de nível mínimo de gastos correntes etc), formando um conjunto indefinido, temos uma pessoa física. Quando, ao contrário, se trata de um conjunto ou feixe determinado de papéis, agrupados por um estatuto definido que delimita papéis comuni-cantes à exclusão de outros, temos uma pessoa jurídica (feixe de papéis isolados e integrados por estatuto próprio num sistema orgânico - órgão -, com regras próprias de...

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