Da Prescrição e da Caducidade nos Serviços Públicos Essenciais

AutorMarisa Dinis
CargoDoutora em Direito (Universidade de Salamanca). Mestre em ciências jurídico-empresariais e licenciada em Direito (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra)
Páginas229-250

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Excertos

"Os problemas mais importantes colocados pela repercussão do decurso do tempo no mundo dos efeitos jurídicos referem-se à prescrição extintiva e à caducidade"

"A prescrição e a caducidade dos serviços públicos essenciais foram, desde a entrada em vigor da Lei 23/96, das temáticas que mais querelas jurídicas desencadearam"

"A apresentação da fatura não conduzia a qualquer interrupção da prescrição, tendo como propósito único a interpelação do utente devedor para que este viesse satisfazer o valor do serviço prestado"

"A prescrição de seis meses opera, pois, sobre o direito de exigir judicialmente o pagamento do preço do serviço efetivamente prestado e não sobre a respectiva faturação"

* Outras qualificações da autora

Professora-adjunta no Instituto Politécnico de Leiria. Coordenadora do curso de licenciatura em Solicitadoria ministrado na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria.

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I Considerações gerais

O objeto central do presente estudo, tal como se antevê pela leitura do respectivo título, incide sobretudo nos regimes da prescrição e da caducidade nos serviços públicos essenciais.

Sem embargo, antes de nos lançarmos no cerne da matéria, cumpre, por questões de enquadramento, tecer, ainda que breves e de conteúdo meramente superficial, algumas considerações iniciais que permitirão, ao leitor (e ao autor), seguir uma linha de pensamento que apresenta, como ponto de partida, a proteção do utente de serviços públicos essenciais, sobretudo quando este assume coetaneamente a qualidade de consumidor.

A presente análise encaminha-nos para o estudo da Lei 23/96, de 23 de julho, que, conjuntamente com as respectivas alterações, se propôs a criar no nosso "ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais".

Meramente em jeito de apontamento histórico, refira-se que a Lei 23/96 consagrou, ab initio, como serviços públicos essenciais os serviços de fornecimento de água, de energia elétrica, de gás e de telefone. O elenco taxativamente consagrado com a Lei de 1996 foi posteriormente alargado em 2008, com a Lei 12/2008, de 26 de fevereiro, estabelecendo-se a redação que atualmente vigora e que engloba - além dos serviços indicados de fornecimento de água e de energia elétrica - os serviços de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados; de comunicações eletrónicas1; serviços postais; de recolha e tratamento de águas residuais e de gestão de resíduos sólidos urbanos.

Decorre diretamente do exposto que o legislador optou por concretizar e definir expressamente quais são os serviços que quedam sob a égide do regime jurídico destinado à proteção dos utentes de serviços públicos essenciais. De questionar se a técnica legislativa utilizada é aquela que melhor cumpre os objetivos ou se teria sido preferível utilizar, à semelhança, por exemplo, do ocorrido no regime jurídico brasileiro, conceitos indeterminados a concretizar casuisticamente2. É, pois, evidente a diferente técnica legislativa utilizada por ambos os legisladores: enquanto o legislador português opta por concretizar e especificar os serviços que entende que comungam da característica da essencialidade, o seu homónimo brasileiro opta por, como se referiu, deixar a cargo do intérprete e do aplicador da lei a concretização do conceito "serviços públicos essenciais".

A determinação na regulamentação apresentada pelo legislador português evitou, por certo, infindáveis dúvidas e querelas jurídicas quanto ao acervo de serviços que caberia no conceito indeterminado de serviços públicos essenciais. Por outro lado, a falada técnica legislativa permitiu igualmente construir um regime jurídico adequado e vocacionado para a resolução dos problemas inerentes a estes

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serviços, atendendo-se, pois, às características e à natureza peculiares que cada um destes serviços apresenta, e acautelando as técnicas abusivas que, nesta sede, se multiplicavam escandalosamente.

O elenco escolhido pelo legislador para concretizar o leque dos serviços públicos essenciais é, na opinião de muitos, verdadeiramente insuficiente deixando de fora serviços de elevada importância como sejam os dos transportes3, os da saúde ou os da educação, para não mencionarmos outros, de valor equivalente, mas de menor sensibilidade cívica, como sejam, os relativos aos serviços culturais e aos serviços bancários mínimos, entre outros4.

Algumas palavras, agora, para os atores desta peça jurídica que são, como será de esperar, o prestador do serviço, por um lado, e o utente, por outro. No entanto, é a prestação jurídica que recebe atenção e cuidados redobrados neste diploma legal que consagra regras especiais com vista à sua concretização.

O serviço não tem obrigatoriamente de ser prestado pelo Estado ou por uma entidade pública. De fato, "embora se trate de um domínio tradicional do Estado, regiões autónomas, autarquias e empresas públicas, os serviços públicos essenciais podem ser prestados por empresas privadas a quem esses serviços hajam sido concessionados"5.

Ainda neste âmbito, cumpre recordar que, em maio de 2011, o "Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de política económica", que visou a concessão de assistência financeira da União Europeia a Portugal6, exigiu ao Governo Português a operacionalização de privatizações que incluem, além do mais, privatizações de serviços públicos essenciais7. E, de fato, já assistimos à privatização da EDP e da REN - Redes Energéticas Nacionais e marchamos, a passos largos, para a privatização dos Correios de Portugal, da distribuição da água e da recolha dos lixos.

Caminhamos, também nestes domínios, a par e passo, com Mário Frota, que rejeita veemente a privatização dos serviços públicos essenciais afirmando que "não se concebe que se assista impunemente a um desarme do Estado, das regiões e dos municípios, para se dar de bandeja a privados serviços que, sendo de interesse geral, não podem constituir base para a consecução de lucros em detrimento do interesse das populações". Como adiante bem refere e recorda, "os privados são mais resistentes ao cumprimento da carta de direitos dos consumidores" e, por isso, torna-se imprescindível, por um lado, "reforçar na titularidade do Estado os serviços essenciais" e, por outro, garantir "uma criteriosa gestão das entidades públicas", com a supervisão de "instituições de consumidores autênticas" e "desipotecadas de interesses mercantis"8.

Adelaide Menezes Leitão vai mais longe ao afirmar que "os serviços públicos essenciais são prestados cada vez mais por entidades privadas, pelo que haveria de ter sido assumida uma ruptura com a terminologia habitual, com eventual adopção da expressão serviços de interesse geral"9.

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Também a propósito dos sujeitos intervenientes nesta relação, atente-se, ainda que lateralmente, nos ditames do artigo 2º que consagram o direito de participação a favor das organizações representativas dos utentes conferindo-lhes o direito de serem "consultadas quanto aos atos de definição do enquadramento jurídico dos serviços públicos e demais atos de natureza genérica que venham a ser celebrados entre o Estado, as Regiões Autónomas, ou as autarquias e as entidades concessionárias"10. O preceito vindo de referir traduz, além do mais, a concretização do n. 4 do artigo 60º da Constituição da República Portuguesa. A lei atribui a estas organizações, além do mais, o direito de serem ouvidas no que tange à "definição das grandes opções estratégicas das empresas concessionárias do serviço público" sempre que "este serviço seja prestado em regime de monopólio". A este respeito e a propósito do artigo 2º, referia, em 2006 - 10 anos depois da entrada em vigor da Lei - Mário

O serviço não tem obrigatoriamente de ser prestado pelo Estado ou por uma entidade pública

Frota que "o preceito permanece letra morta, preteridos que são os direitos das instituições representativas dos consumidores, consideradas sempre como elementos estranhos às estratégias e a atos de gestão de empresas com manifesto pendor autocrático de poder"11. Da gravidade desta opção, não cumpre, nesta sede, tecer comentários, muito embora seja percetível que é manifesta.

Finalmente, há que realçar que todo o diploma gira em torno da proteção do utente do serviço, conferindo-lhe direitos verdadeiramente irrenunciáveis, sob pena de nulidade das cláusulas que contra eles atentem, nos termos do n. 1 do artigo 13º. A este respeito, diga-se, ainda, que o n. 2 do mesmo preceito confere atipicidade a esta nulidade ao impor que esta seja obrigatoriamente invocada pelo utente, estando, portanto, vedado tal direito a quaisquer outros interessados. Assiste ainda ao utente, interveniente num contrato com cláusulas nulas, a possibilidade de optar pela redução do contrato aproveitando, pois, as cláusulas que não padecem de nulidade e afastando aquelas outras que padecem de tal vício, nos termos do n. 3 do mesmo artigo 13º.

De salientar que, do confronto entre o objeto e o âmbito do diploma aqui em análise (a Lei 23/96, de 26 de julho) e o objeto e o âmbito daquele outro diploma apelidado de Lei de Defesa do Consumidor (Lei 24/96, de 31 de julho), não resulta uma coincidência entre o "utente" mencionado no primeiro diploma e o "consumidor" referido no segundo diploma. Com efeito, se no primeiro se considera utente "a pessoa singular ou coletiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo", no segundo apenas será tido como consumidor aquele "a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa...

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