Cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade

AutorCláudio Brandão
Páginas303-314

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"Guerreiros são pessoas Tão fortes, tão frágeis Guerreiros são meninos No fundo do peito

Precisam de um descanso Precisam de um remanso Precisam de um sono Que os tornem refeitos

[...]

Um homem se humilha Se castram seu sonho Seu sonho é sua vida

E vida é trabalho

E sem o seu trabalho

O homem não tem honra E sem a sua honra

Se morre, se mata

Não dá pra ser feliz

Não dá pra ser feliz"

Introdução

Os versos do poeta carioca Gonzaguinha, imortalizados na bela canção "Um homem também chora", lançada em 1983 e sucesso na gravação de Fagner, transmitem a importância do trabalho na vida humana. Falam da honra em ser produtivo (geralmente ligado ao fato de poder ter um bom emprego) e desfrutar da dimensão social do trabalho como fator de emancipação do homem (aqui, no sentido de ser humano, pois extensivo à mulher), pela felicidade por ele proporcionada. É por meio do trabalho que a pessoa realiza seus sonhos; projeta os seus horizontes e busca alcançá-los; completa-se, enfim.

Ao ouvi-la, também somos levados a refletir sobre outra dimensão, perversa, naquilo que pode significar de sofrimento quando a pessoa fica privada do direito de poder trabalhar: a face amarga do desemprego.

De outro modo, também não se pode deixar de pensar em outra faceta, tão cruel quanto a própria ausência do trabalho: o adoecimento por ele gerado e as duras consequências da perda da capacidade produtiva, parcial ou definitiva, temporária ou permanente.

Os números impressionam. No Brasil, no ano de 2013 - última estatística oficial disponível -, foram registrados 559.081 acidentes, os quais ocasionaram 2.797 mortes. Os casos de invalidez temporária por mais de quinze dias alcançaram 271.314, aos quais se somam 14.837 de invalidez permanente.

Por outro lado, representam apenas 50% dos acidentes efetivamente ocorridos1, sobretudo a partir de 1991, em face da introdução no ordenamento jurídico brasileiro da garantia de emprego acidentária2, o que motiva a subnotificação da ocorrência do infortúnio, a fim de impedir que o empregado desfrute da proteção legal e cria a curiosa situação em que os números oficiais apontam para a redução do índice de acidentes, embora se constate elevação do número de mortes no trabalho.

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Alie-se a circunstância de muitas doenças ocupacionais serem diagnosticadas e tratadas como doenças comuns. Ainda assim, como visto, ocorrem cerca de oito mortes a cada dia por acidente do trabalho, equivalendo a uma situação de "guerra civil", na expressão de Dorival Barreiros3.

Dentro dessa lógica dos números, um dado importante é destacado por Oswaldo Michel, que aponta diferentes perspectivas em torno da abordagem do conceito de acidente do trabalho, do ponto de vista da legislação e do ponto de vista da prevenção.

No primeiro caso, somente são computados aqueles dos quais resultam ferimentos, mas a sua definição técnica é mais abrangente e pode ocorrer sem provocar lesões pessoais. O número, contudo, é ainda muito maior, causando prejuízos incontáveis à produção.

A respeito da incidência de acidentes e seus reflexos na atividade produtiva, assinala o citado autor:

A experiência demonstra que para cada grupo de 330 acidentes de um mesmo tipo, 300 vezes não ocorrem lesões nos trabalhadores, enquanto que em apenas 30 casos resultam dados à integridade física do homem. Em todos os casos, porém, haverá prejuízo à produção e sob os aspectos da proteção ao homem, resulta serem igualmente importantes todos os acidentes com e sem lesão, em virtude de não se poder prever quando de um acidente vai resultar, ou não, lesão ao trabalhador.4

Tal evidência é confirmada pelo Ministério da Saúde, que reconhece a existência de subnotificação dos acidentes no Brasil5. Somente são considerados como tais aqueles que envolvem os empregados com carteira assinada, o que equivale a aproximadamente menos da metade da população economicamente ativa, além de não serem computados os casos de curta duração (não exigem afastamento do trabalho), que, em sua maioria, não são notificados6.

Para ilustrar essa afirmação, os dados oficiais do Minis-tério da Previdência Social, em 1995, indicam a existência de 20.246 casos notificados de doenças ocupacionais, ao passo que nos Estados Unidos, de acordo com o United States Bureau of Labor Statistics, foram registrados, no ano anterior, 332.000 casos apenas de Lesões por Esforço Repetitivo - LER e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho - DORT7 e é difícil acreditar que as condições de trabalho brasileiras sejam melhores do que as norte-americanas.

Em 2013 e de acordo com as mesmas fontes8, foram notificadas 4.585 mortes por acidentes do trabalho nos Estados Unidos, as quais superam em 64% os dados brasileiros.

Acrescente-se, como último ingrediente, nessa análise introdutória, a elevação do trabalho e a redução dos riscos como direitos fundamentais do trabalhador, consoante disposto no caput do art. 6º e inciso XXII do art. 7º, da Consti- tuição, este último como elemento integrante do meio ambiente de trabalho sadio, o qual, na análise de Felipe Gondim Brandão:

[...] possui caráter bivalente; é dotado de dois espectros de proteção, condicionados pela qualificação utilizada pelo intérprete. Partem do mesmo comando constitucional duas forças dirigidas, uma à proteção singular, individual, e outra para toda a classe de trabalhadores.

Tendo por foco de análise o trabalhador, pessoa humana singular, com todas as suas individualidades e características, inserido no seio produtivo da empresa, tem-se que se expressa na defesa da saúde, em evitar (ou erradicar) que elementos nocivos, sejam eles químicos, físicos, biológicos, ergonômicos e até psíquicos, fragilizem a integridade física e psíquica, consideradas as condições específicas do ambiente laboral em concreto. Portanto, busca-se, aqui, impedir o adoecimento, que o trabalhador tenha o corpo e mente abalados em razão das condições adversas da execução do seu labor.

Essa perspectiva pretende evitar não só o seu afastamento, seja temporário ou permanente, mas também resguardá-lo, por meio da sua harmonização com as condições de desenvolvimento do trabalho. A maior expressão desse tipo de proteção parte da Consolidação das Leis do Trabalho, quando trata das normas de Segurança e Medicina do Trabalho, constante do Capítulo V, arts. 154 e seguintes. Nesses dispositivos, vê-se a reunião de prescrições voltadas aos órgãos estatais encarregados de coordenar, orientar, controlar, fiscalizar e de adotar os meios necessários para o cumprimento da suas determinações, inclusive, com a imposição de sanções (multas) pecuniárias.

Além disso, ainda dirigem seus comandos aos empregados e empresas, ao determinar o cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho, bem como a colaboração entre os sujeitos do contrato de trabalho.9

Ao se falar, portanto, no direito ao trabalho, exsurge a compreensão do trabalho sadio; ninguém trabalha para

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adoecer e o adoecimento não deve ser visto como consequência inexorável, quase natural, do labor; é extraordinário, excepcional, uma anomalia mesmo e como tal deve ser considerada. Deve merecer não apenas o repúdio quando deixa sequelas, visíveis ou não, nas pessoas, mas ser alvo de luta permanente para que seja evitado.

Em consonância com o caráter preventivo da tutela, as Convenções Internacionais da Organização Internacional do Trabalho ns. 148, promulgada pelo Decreto n. 93.413 de 15.10.86, com vigência nacional a partir de 14 de janeiro de 1983, e 155, promulgada pelo Decreto n. 1.254 de 29.09.94, com vigência nacional a partir de 18 de maio de 1993, adicionaram ao ordenamento jurídico normas sobre técnicas de prevenção e proteção necessárias à eliminação dos riscos para a segurança e a saúde dos trabalhadores.

O art. 9º da Convenção n. 148 da OIT registra: deverá ser eliminado todo risco devido à contaminação do ar, ao ruído e às vibrações no lugar de trabalho: a) mediante medidas técnicas aplicadas às novas instalações ou aos novos procedimentos no momento de seu desenho ou de sua instalação, ou mediante medidas técnicas aportadas às instalações ou operações existentes, ou quando isto não for possível; b) mediante medidas complementares de organização do trabalho.

Por sua vez, a Convenção n. 155 da OIT, no artigo 16, consigna que cabe aos empregadores garantir que "os lugares de trabalho, a maquinaria, o equipamento e as operações e processos que estejam sob seu controle são seguros e não envolvem risco algum para a segurança e a saúde dos trabalhadores". A disciplina contida na aludida norma revela, ainda, que é dever da empresa adotar providências adequadas para manter os agentes insalubres sobre controle, de modo que não envolvam riscos individuais para saúde dos que ali laboram (item 2) e, apenas quando necessário, ou seja, nos casos em que as práticas anteriores se revelem incapazes, deverá ela fornecer roupas e equipamentos de proteção apropriados (item 3).

O desfecho a que se chega, ao interpretar sistemática e teleologicamente os dispositivos citados, é a consagração da prevenção como diretriz maior do sistema de proteção ao trabalho, consagrado mundialmente.

A prioridade do sistema jurídico, por conseguinte, é eliminar o risco, retirar o agente agressivo e, somente quando não for possível, em virtude das características inerentes à atividade em si, se encontra fundamento para a compreensão da regra prevista no inciso XXIII do art. 7º, ao assegurar o direito à percepção do acréscimo remuneratório para as atividades penosas, insalubres e perigosas, que representa manutenção da tradicional postura de monetização10 do risco e contraria a tendência moderna de redução da jornada em atividades insalubres aliada à implantação de práticas destinadas à eliminação do agente agressivo11: XXIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei.

Essa...

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