Cultura popular, crimes passionais e relações de gêneros

AutorMagali Gouveia Rangel
Páginas86-101
86
Cultura popular, crimes passionais e relações de gêneros
(Rio de Janeiro, 1890-1930)”
*
Magali Gouveia Engel
**
Resumo:
Este artigo levanta algumas questões a partir de resultados preliminares da pesquisa que roa
desenvolvo sobre os crimes passionais atribuídos a indivíduos de ambos os sexos, ocorridos na
cidade do Rio entre fins do XIX e as três primeiras décadas do XX. A avaliação das tensões e
interseções entre os modelos formulados a partir dos valores dominantes e os diferentes padrões
sócio-culturais que informavam as relações homem-mulher disseminados entre os segmentos
populares apresenta-se como uma das dimensões fundamentais da abordagem proposta.
Dimensão que será aqui privilegiada, buscando-se estimular uma reflexão acerca das fronteiras
e da diversidade do conceito de cultura popular.
Abstracts:
This article is a preliminary analysis of research findings on male and female passional crimes in
Rio de Janeiro late 19
th
and early 20
th
century. It focus on the tensions and interactions between
behavioral models created from the dominant standards and social values that organized the
interactions between women and men. The article also seeks to stimulate the debate about the
concept of popular culture.
Palavras-chaves: Relações de gêneros; crimes passionais; cultura popular
Key-words: Gender relations; passional crimes; popular culture
Este artigo levanta algumas questões a partir de resultados preliminares da pesquisa que ora
desenvolvo sobre os crimes passionais atribuídos a indivíduos de ambos os sexos, ocorridos na
cidade do Rio entre fins do XIX e as três primeiras décadas do XX
1
. Em termos gerais, tal estudo
orienta-se em dois sentidos básicos. De um lado, investigar as estratégias normatizadoras das
relações afetivas e sexuais da população urbana formuladas e difundidas por médicos e juristas
e, de outro, os possíveis significados dos mais variados comportamentos sexuais e afetivos
vivenciados, na prática, por homens e mulheres na cidade do Rio durante o referido período.
Neste sentido, a investigação tem como preocupação fundamental avaliar e discutir as
aproximações e rupturas entre os projetos e as vivências, bem como a multiplicidade de
significados que perpassam as dimensões dos saberes e das práticas relativas à sexualidade e à
*
Uma versão resumida deste artigo será apresentada na Mesa Redonda intitulada, “Cultura popular: nas
fronteiras da diversidade”, no IX Encontro Regional da ANPUH-RJ, História, Memória e Comemorações.
**
Pro fessora do Departamento de História d a UFF. Autora de - Meretrizes e doutores: saber médico e
prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo, Brasiliense, 1989.
1
A pesquisa intitulada “Paixão e crime: um estudo das relações de gênero no Rio de Janeiro (1890-1930)”
conta com o apoio do CNPq e da FAPERJ. Participaram da etapa, cujos resultados são aqui apresentados,
como bolsistas de Iniciação Científica: Alexandre E. da Silva, Cláudia P. da Trindade, Gabriela C. Buscácio,
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afetividade, buscando-se compreender o universo das diversidades a partir das diferenças de
classe, de gênero e de etnia e, portanto, das inter-relações com o contexto social mais amplo,
marcado por profundas transformações.
A avaliação das tensões e interseções entre os modelos formulados a partir dos valores
dominantes e os diferentes padrões socioculturais que informavam as relações homem-mulher
disseminados entre os segmentos populares apresenta-se, pois, como uma das dimensões
fundamentais da abordagem proposta. Dimensão que será aqui privilegiada, buscando-se
estimular uma reflexão acerca das fronteiras e da diversidade do conceito de cultura popular.
Proposta que nos coloca de imediato diante de uma questão crucial: como definir “cultura
popular”? O primeiro ponto a ser considerado nos remete à defesa da utilização do referido
conceito (apesar de “pouco satisfatório”) feita por Carlo Ginzburg, ao afirmar ser sempre
preferível “uma análise de classes” do que “uma interclassista”(GINZBURG, 1987, p. 32).
Reconhecer a dimensão social ou de classes como a mais profunda e essencial na determinação
das diferenças culturais apresenta-se, ao meu ver, como uma perspectiva indescartável.
Mas, como dar conta das tensões e interseções entre universos culturais distintos? Como
sabemos, a noção de “circularidade cultural”, cunhada por Ginzburg sob a inspiração das
concepções desenvolvidas por Bakhtin (BAKHTIN, 1987), torna-se fundamental, de um lado,
para o questionamento da homogeneidade cultural e, de outro, para o reconhecimento da
existência de canais de comunicação entre a cultura das elites e a cultura popular. Caberia,
contudo, perguntar até que ponto tal noção é capaz de romper de forma profunda e radical com a
oposição dicotômica “cultura popular” versus “cultura erudita” (LENHARO; CUNHA; SLENES;
CHALHOUB; LARA 1994).
Buscando dar conta do jogo com plexo entre as especificidades e as partilhas que
caracterizariam a pluralidade do universo cultural, o conceito de apropriação proposto por Roger
Chartier (CHARTIER, 1990) revela-se, sem dúvida, útil e enriquecedor. Mas ao redefinir o social
desvinculando-o das concepções que o circunscrevem necessária e prioritariamente às
condições materiais de existência, o referido autor não comprometeria a articulação entre cultura
e dominação? É certo que dominação e conflito não se encontram ausentes das preocupações
de Chartier, contudo, ao privilegiar a dimensão da cultura como o seu locus privilegiado, não
acabaria por cair, como afirmam alguns de seus críticos, num reducionismo cultural?
Talvez o caminho mais promissor para este debate seja aquele indicado por Edward Thompson
(THOMPSON, 1998) ao sublinhar os riscos de generalizações contidos na expressão “cultura
popular” ou mesmo no termo “cultura”. Insistindo na diversidade do universo cultural popular, de
um lado, e, de outro, na complexidade do caráter conflitivo da arena cultural, marcada por
embates, mas também por partilhas “entre o escrito e o oral, o dominante e o dominado, a aldeia
e a metrópole”, o autor propõe que se busquem possibilidades conceituais mais operacionais,
através de análises concretas que situem a “cultura popular”, “no lugar material que lhe
corresponde” (THOMPSON, 1998, p. 17).
Vejamos, pois, como todas estas questões vêm sendo colocadas na análise sobre conflitos de
João Daniel L. de Almeida, Sílvia Amaral P. de Pádua e Tania Mittelman.

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