Crueldade consentida ? Crítica à razão antropocêntrica

AutorLaerte Fernando Levai
CargoPromotor de Justiça de São José dos Campos/SP
Páginas171-190

Page 172

Introdução

Apesar de a Constituição Federal brasileira ser contrária à violência para com os animais, preconizando a ampla proteção da fauna, o que ocorre na prática é justamente o contrário. Nosso sistema jurídico, permissivo de condutas cruéis, admite, aceita e muitas vezes até estimula as atrocidades cometidas pela espécie que se diz racional e inteligente. Basta abrir os olhos para a miséria das ruas ou para a perversa realidade rural, na qual animais são maltratados e explorados até o limite de suas forças. Basta ver o que acontece sob o véu dos espetáculos públicos, nas fazendas, nas arenas, nas jaulas e nos picadeiros. Basta olhar o drama dos animais submetidos às agruras da criação industrial, aos horrores dos matadouros e às terríveis experiências científicas, dentre outras situações em que se lhes impinge dor e sofrimento.

Cegos da razão e da sensibilidade, vivemos em um mundo repleto de insensatez. O ciclo da existência humana tantas vezes se limita à satisfação de vaidades pessoais, ambições econômicas e prazeres frívolos. Nesse espaço, não há lugar para a compaixão. Sob o prisma antropocêntrico, a natureza e os animais deixam de ser um valor em si, transformando-se em meros recursos ambientais. Tal sistema, ao desconsiderar a singularidade de cada criatura e o caráter sagrado da vida, justifica a tutela da fauna conforme a serventia que os animais possa ter. Tratados, via de regra, como mercadoria, matéria-prima ou produto de consumo, os animais - do ponto de vista jurídico - têm negada sua natural condição de seres sensíveis. Isso precisa mudar. Não pode mais prevalecer o silêncio diante de tamanha opressão.

Há séculos que o homem, seja em função de seus interesses financeiros, comerciais, lúdicos ou gastronômicos, seja por egoísmo ou sadismo, compraz-se em perseguir, prender, torturar e matar as outras espécies. O testemunho da história mostra que a nossa relação com os animais tem sido marcada pela ganância, pelo fanatismo, pela superstição, pela ignorância e, pior ainda, pela total indiferença perante o destino das criaturas subjugadas. Para que se possa mudar esse triste estado de coisas, há que se incluir os animais na esfera das preocupações morais humanas, porque eles - ao contrário do que se pensa - também são sujeitos de direito. A questão não é apenas jurídica, mas, sobretudo, filosófica. Faz-se urgente, pois, uma revisão do nosso tradicional modelo de ensino, buscando uma fórmula que nos permita respeitar a vida independentemente de onde ela se manifeste. Este caminho, sem dúvida, passa longe do antropocentrismo.

1. Justiça dos homens

Denomina-se antropocentrismo o sistema filosófico que pôs o homem no centro do universo, concepção essa que nos atribuiu - em nome da supremacia da razão - o poder de dominar a natureza e os animais. O termo, originário do grego (homem) e do latim (centrum), relaciona-se à idéia religiosa da essência divina do ser humano.

Page 173

Vale lembrar que a escolástica e a teologia medievais firmaram a postura antropocêntrica com base no preceito bíblico de que a terra é o centro do mundo criado por Deus para usufruto do homem. Ao se curvar inicialmente perante os deuses do Olimpo e depois aos santos das Escrituras, assumindo ser "a medida de todas as coisas" - conforme a célebre fórmula de Protágoras - a espécie humana passou a subjugar as demais criaturas vivas. Para o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), cujos ensinamentos foram acolhidos e repassados por São Tomás de Aquino (354-430), a pirâmide natural da existência tem em sua base os vegetais, que existem para servir aos animais, enquanto estes, finalmente, servem ao homem. Trata-se do círculo vicioso da dominação, que deferiu à espécie tida como racional - especialmente no Ocidente - um poder ilimitado sobre tudo que a cerca.

É certo que a domesticação dos animais e seu uso pelo homem remonta a tempos longínquos. Nas sociedades primitivas a marca desse domínio ficou registrada nos desenhos rupestres simbolizando a caça de bisões, mamutes e renas, sendo que os mais remotos vestígios de sedentariedade humana coincidem com a sujeição de cães, carneiros, bodes, bois, porcos, cavalos, iaques, camelos e alguns tipos de aves. Séculos mais tarde, os filósofos da Escola de Atenas e a tradição judaico-cristã sacramentaram essa posição de superioridade humana em relação ao mundo natural. Finda a Idade Média, a era das grandes navegações e das conquistas territoriais permitiu aos países colonialistas consolidar não apenas a sanha de dominação sobre os povos vencidos, mas a matança indiscriminada de animais nativos visando a propósitos mercantis ou à satisfação da vaidade do caçador, simbolizada pelo cruel aprisionamento e subjugação dos bichos.

Desde muito tempo que o cão, lobo domesticado, tornou-se o mais fiel companheiro do homem, enquanto que o gato carregaria em si o estigma das superstições medievais. Já o hábito da caça, inicialmente praticado como necessidade de sobrevivência e depois elegido em esporte da nobreza, difundiu-se pelas classes sociais a ponto de se firmar como um dos mais pusilânimes entretenimentos humanos. Os costumes da cultura popular, como a secular tourada espanhola e alguns rituais de sacrifícios nas festividades religiosas, transformaram martírio em tradição. Nossa indiferença em relação à dor dos animais também contaminou a mentalidade científica. Imerso no paradigma mecanicista de Renê Descartes (1596-1650), que no século 17 propôs a famigerada teoria "animal máquina", o fisiologista Claude Bernard (1813-1978)) fez da vivissecção o método oficial de pesquisa médica. A partir deste momento a experimentação animal torna-se metodologia padrão, submetendo suas cobaias a tormentos inomináveis sob a cômoda justificativa de contribuir ao progresso da ciência. Com o advento da Revolução Industrial e os sistemas de produção em série, o capitalismo emergente agrava ainda mais a situação dos animais. Após a Segunda Guerra Mundial, o avanço da industrialização e as novas descobertas tecnológicas romperam de vez com o sistema tradicional de criação. O antigo modelo pastoril cedeu vez à perversa metodologia utilizada pela indústria

Page 174

do agronegócio, na qual os animais destinados ao consumo humano nascem por

encomenda, vivem em sofrimento e morrem miseravelmente.

Importa dizer que a doutrina antropocêntrica, embora preponderante, contou com ilustres opositores ao longo da história. O pensador grego Pitágoras (565-495 a.C.), após conhecer os principais centros espirituais da Antigüidade (India, Egito e Babilônia), tornou-se adepto da meditação, da alimentação vegetariana e da compassividade, a ponto de adquirir animais cativos nos mercados para soltá-los na mata. Consta que ele fundou, nas colinas de Crotona, uma cidade regida pelo amor e não pelo Direito, utopia essa que acabou sendo impiedosamente destruída. Na Grécia Antiga, época dos filósofos naturalistas, acreditava-se na dinâmica das coisas, na evolução das espécies e na origem animal do homem. Segundo as concepções da Escola de Mileto, a vida é uma contínua transformação, uma luta entre contrários e sujeita às vicissitudes do tempo e do espaço. Tal corrente de pensamento, surgida cinco séculos antes da era cristã e bastante elevada do ponto de vista espiritual, inseria o ambiente em uma perspectiva cósmica. Interessante notar que essa pioneira manifestação filosófica continha pontos de contato com o chamado Direito Natural, cujos princípios - inspirados no bom sendo e na eqüidade - decorrem das próprias leis da natureza.

Se a Filosofia é uma invenção dos gregos, o Direito procede de Roma. Sob este aspecto, o sistema jurídico ocidental está quase todo ele sedimentado em bases antropocêntricas. Ainda que as leis positivas não devessem se afastar das leis naturais, o fato é que as ciências jurídicas nunca se importaram com o valor instrínseco da natureza ou com a extensão de direitos a seres não-humanos. Em meio a tal contexto, os animais acabaram sendo inseridos no regime privatista perante o qual a noção do Direito alcança somente os homens em sociedade, transformando o entorno em res (coisas). Assim, sob o mesmo regime jurídico conferido aos objetos inanimados ou à propriedade privada, a servidão animal foi legitimada pelo Direito. O conceito do justo, porém, nem sempre está compreendido na noção do Direito, cujas leis - surgidas ao sabor das circunstâncias históricas e sujeitas aos múltiplos interesses políticos - podem vigorar em descompasso ao princípio da moralidade, que deveria inspirá-las. Como afirma o professor Nelci Silvério de Oliveira, a Justiça, como virtude moral, não deve ser interpretada apenas no sentido jurídico propriamente dito ou em termos quantitativos ("dar a cada um o que é seu"), mas o de um caminho à solidariedade e aos amor entre todas as criaturas: "Na verdade, o Direito sequer é um bem, é um mal necessário, que atua onde falha a Moral (...) E a moral é infinitamente superior ao Direito" (in ‘Curso de Filosofia do Direito’, p. 136). Ainda que os dois conceitos - Direito e Moral - obedeçam, em tese, ao comando da Ética, somente conjugados entre si é que podem atingir a ordem jurídica verdadeiramente justa.

Não é fácil, porém, convencer as pessoas de uma verdade tão simples. No curso da história alguns pensadores ousaram desafiar o sistema tradicional vigente para afirmar que os animais também possuem direitos. No século II o pensador romano

Page 175

Celso já dizia que a natureza existe tanto para os animais quanto para os homens. Para David Hume (1711-1776), "Nenhuma verdade me parece mais evidente que a de que os animais são dotados de pensamento e razão, assim como os homens. Os argumentos neste caso são tão óbvios que não escapam nem aos mais estúpido e ignorantes." (in ‘Tratado sobre a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT