A Criminalização do Aborto e o Supremo Tribunal Federal

AutorGabriel Klemz Klock - Livia Solana Pfuetzenreiter de Lima Teixeira
CargoMestrando em Direito (Uninter). Pós-graduado em Direito Contratual da Empresa (Unicuritiba) - Mestranda em Direito (Uninter). Pós-graduada em Direito Criminal (Anhanguera-UniderP)
Páginas30-41

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1. A controvérsia jurídica

O presente ensaio cientí-fico trata da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 - interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com apoio do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) - que tem como pedido principal, com eficá-cia geral e efeito vinculante, que o Supremo Tribunal Federal declare a não recepção parcial dos artigos 1241 e 1262 do Código Penal frente à principiologia trazida pela Cons-tituição Federal de 1988. Pedem, outrossim, seja excluído do âmbito de incidência dos mencionados dispositivos a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras doze semanas, por serem incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, cidadania das mulheres e promoção da não discriminação como princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, pois, do contrário, os artigos violariam os direitos fundamentais

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das mulheres à vida, à liberdade física, à integridade física e psicológica, à igualdade de gênero, à proibição de tortura ou do tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar.

Por intermédio de referida ação constitucional, pretende-se garantir às mulheres o direito de interromper a gestação de acordo com sua autonomia, sem necessidade de qualquer forma específica de auto-rização do Estado, garantindo, em consequência, aos profissionais de saúde o direito de realizar o proce-dimento abortivo.

Inicialmente, acerca da ação veiculada, cumpre destacar que a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) foi introduzida no direito brasileiro pela Constituição Federal de 1988, sendo, portanto, um mecanismo recente de controle concentrado de constitucionalidade, cuja competência para seu processo e julga-mento ficou reservada ao Supremo Tribunal Federal. A ação, de cará-ter subsidiário, somente é cabível quando não existir qualquer outro meio processual-constitucional e?-caz para resolver a questão jurídica com a mesma efetividade e ampli-tude.

Quanto à legitimidade ativa para sua propositura, é idêntica à das de-mais ações de controle normativo em abstrato, tendo como legitimados universais o presidente da República, a mesa do Senado Federal, a mesa da Câmara dos Deputados, o procurador-geral da República, o conselho federal da Ordem dos Advogados do Brasil e os partidos políticos com representação no Con-gresso Nacional - como é o PSOL. Já os legitimados especiais, de quem se exige a demonstração de pertinência temática, são as mesas das assembleias legislativas e da câmara legislativa do Distrito Fede-ral, os governadores de estado e do Distrito Federal, e as confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional (Novelino, 2015, p. 249-250).

Em relação ao objeto de ca-bimento da ação, o art. 1º da Lei 9.882/99, que passou a disciplinar o art. 102, § 1º, da Constituição Fede-ral, estabelece a hipótese de arguição autônoma que tenha por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do poder público. Há um nítido caráter preventivo no verbo "evitar" e repressivo na função "reparar", de-vendo haver nexo de causalidade entre a lesão ao preceito fundamental e o ato do poder público, seja de que esfera for, não se restringindo a atos normativos, podendo a lesão resultar de qualquer ato administrativo, inclusive decretos regula-mentares. Já o parágrafo único do art. da Lei 9.882/99 prevê a pos-sibilidade de arguição quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição (Lenza, 2012, p. 356).

Observa-se ainda que, para cabimento da ação constitucional em apreço, o parâmetro constitucional violado deve ser preceito fundamental, compreendido como "norma (princípio ou regra) da Constituição Federal imprescindível para preservar sua identidade ou o re-gime por ela adotado" (Novelino, 2016, p. 251).

No julgamento da ADPF 333, o relator ministro Gilmar Mendes assim se posicionou:

Parâmetro de controle. É muito di-fícil indicar, a priori, os preceitos fundamentais da Constituição passíveis de lesão tão grave que justifique o proces-so e o julgamento da arguição de des-cumprimento. Não há dúvida de que alguns destes preceitos estão enunciados, de forma explícita, no texto consti-tucional. Assim, ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias individuais (art. 5º, dentre outros). Da mesma forma, não se poderá deixar de atribuir essa qualificação aos demais princípios protegidos pela cláu-sula pétrea do art. 60, § 4, da Constitui-ção, quais sejam, a forma federativa de Estado, a separação de Poderes e o voto direto, secreto, universal e periódico. Por outro lado, a própria Constituição explicita os chamados "princípios sen-síveis", cuja valoração pode dar ensejo à decretação de intervenção federal nos Estados-membros (art. 34, VII). [...] Os princípios merecedores de proteção, tal como enunciados normalmente nas chamadas "cláusulas pétreas", parecem despidos de conteúdo específico. O que significa, efetivamente, "separação de Poderes" ou "forma federativa"? O que é um "Estado de Direito Democrá-tico"? Qual o significado da "proteção da dignidade humana"? Qual a dimensão do "princípio federativo"? Essas indagações somente podem ser respon-didas, adequadamente, no contexto de determinado sistema constitucional. É o exame sistemático das disposições constitucionais integrantes do modelo constitucional que permitirá explicitar o conteúdo de determinado princípio.

Vê-se, portanto, a indeterminação de certos conceitos, estes essenciais para a averiguação do cabimento, ou não, da arguição de descumprimento de preceito funda-mental. No caso em tela, os precei-tos fundamentais indicados como violados são os da "dignidade da pessoa humana", da "cidadania", e da "não discriminação", além dos direitos fundamentais à inviolabili-dade da vida, à liberdade, à igual-dade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar, todos da Constituição Federal4.

No atual ordenamento jurídico brasileiro, o aborto só é legalmente permitido se for fruto de estupro da mulher gestante, se ela estiver correndo risco de vida, ou, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, em caso de anencefalia (ADPF 54). Ocorre que estes per-missivos não se sustentam perante

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uma realidade social em que, conforme indicado pelo PSOL na inicial da ADPF, a cada minuto uma mulher realiza aborto clandestino no Brasil.

Diante deste cenário, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), agremiação política com representação no Congresso Nacional, ingressou com o primeiro pedido, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, para legalização ou descriminalização da prática do aborto no Brasil se realizada nos doze primeiros meses de gestação.

A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO É ASSUNTO SENSÍVEL QUE, DE MANEIRA RECORRENTE, CHAMA A ATENÇÃO DOS OPERADORES DO DIREITO E DE TODA A SOCIEDADE

Já nas notas introdutórias da peça vestibular da ADPF, questiona-se a legitimidade da criminalização do aborto induzido e voluntário, indagando se os artigos 124 e 126 do

Código Penal seriam compatíveis com os preceitos fun-damentais mencionados. De registrar que o art. 125 não foi comba-tido, pois trata da punição daquele que provoca aborto sem o consen-timento da gestante. Daí a tese fundamental da ação: as razões jurídi-cas que motivaram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não se sustentam, pois violam as noções atualizadas dos preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas.

Em seguida, a fundamentação da ADPF se volta para a problematização da ideia de proteção da vida do embrião: se seria, efetivamente, um direito previsto no ordenamento constitucional, indicando que, na verdade, a questão do aborto se torna um hard case em razão do apelo moral que provoca, na medida em que opõe o direito de proteção à vida do embrião e os direitos funda-mentais da mulher grávida. Ocorre que, num Estado que se diz laico, garantidor das liberdades de consciência e crença, enfrentar a cons-titucionalidade do aborto "significa fazer um questionamento legítimo sobre o justo: qual a razoabilidade constitucional do poder coercitivo do Estado para coibir o abor-to?"5Para além das mazelas que envolvem, inevitavelmente, a desproporção econômica que atinge a sociedade brasileira, a tensão jurídica reside na desproporcionalidade da proibição do aborto, pois viola o direito fundamental da mulher, a dignidade humana e a cidadania das gestantes, discriminando-as, e colocando em pé de igualdade o direito dos fetos, estes que, segundo o próprio STF, ainda não são pessoas constitucionais.

Para demonstrar as violações da criminalização do aborto, a exordial da ADPF 442 se divide em duas se-ções: a primeira analisa como as cortes constitucionais se tornaram, a partir dos anos 1970, instâncias legítimas para os questionamentos constitucionais provocados pela questão do aborto. Já na segunda seção, aqui objeto de estudo, através de dois métodos interpretativos diferentes, a ADPF enfrenta a constitucionalidade da criminalização do aborto: primeiro pela construção do conceito de dignidade da pessoa humana; segundo pelo teste de proporcionalidade (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito), a demonstrar que a criminalização do aborto não se fundamenta como objetivo constitucional legítimo6.

Para os fins do presente texto, portanto, busca-se fazer...

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