Criminalidade e violência na sociedade de consumo: uma abordagem interdisciplinar

AutorDomingos Barroso da Costa
CargoAdvogado/MG
Páginas14-18

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Texto de apresentação do livro A Crise do Supereu e o Caráter Criminógeno da Sociedade de Consumo, em processo de publicação pela Editora Juruá.

A sensação é de que se está em queda-livre, e sem rede de proteção. Essa foi a conclusão alcançada pelo psiquiatra e psicanalista mineiro Stélio Lage, ao abordar as peculiaridades da sociedade contemporânea e a comoção dos brasileiros ante a defenestração da menina Isabella, ocorrida na cidade de São Paulo, em março de 20081. Mas esse não é o único caso que permitiria tão apropriada analogia, conforme nos demonstram diariamente os meios de comunicação, que, em postura passível de críticas, não se cansam de exibir - o que é diferente de informar - uma expansão desenfreada de comportamentos violentos e criminosos.

O Estado não tem se mostrado competente na contenção desse fenômeno, fato que, somado ao alarmismo causado pela mídia, gera uma insegurança difusa e generalizada na população. O medo predomina nas relações interpessoais, que vão adquirindo formato cada vez mais diferenciado daquelas que, até trinta anos atrás, tinham por esteio os valores que garantiam às partes uma mútua confiança, pelo menos inicial. O padrão familiar vem se alterando, tendo declinado o Pai que sustentava a verticalidade do antigo padrão familiar, em metáfora que também se aplica ao Estado, à sociedade e ao sujeito.

Ou seja, cuida-se aqui da crise que incide sobre a Lei que representava o elo de harmonização entre os três elementos mencionados, marcando a falta e os limites que os obrigavam a interagir e equilibrar-se. Sinais de um tempo bem diferente do vivido no período que se estendeu marcadamente da Revolução Francesa à Segunda Guerra Mundial, passando por seguidas revoluções industriais, em que disciplina, hierarquia e pontualidade apresentavam-se como os valores que sustentavam um mundo arrimado nos processos de produção.

1. Da Modernidade à Pós-modernidade: a superação da produção pelo consumo

A evolução tecnológica experimentada a partir da segunda metade do século passado transformou o mundo. As comunicações foram aceleradas e a automação vem progressivamente determinando a substituição dos homens por máquinas nas linhas de produção. Nessa dinâmica, de produtores por excelência, os homens foram convertidos em consumidores do excesso de bens resultado da automação, sendo essa a essência do movimento que marcou a transição do período moderno para o que se denomina pós-moderno.

Instrumentalizada pela sociedade de consumo, a Pós-modernidade é hoje uma realidade, substituindo a Modernidade, suas técnicas, métodos e ideais. Conforme ressaltado, os meios organizados que conduziam à eficiente produção já não representam condição para o alcance dos fins impostos pela cultura, que alimenta o consumo desenfreado dos bens através dos quais se coloniza o planeta. Ou seja, de uma sociedade que privilegiava os meios (integração aos processos de produção) como condição para o alcance do fim (consumo), passou-se a um novo modelo no qual se confere valor desmedido a esse fim (consumo), independentemente dos meios escolhidos para seu alcance.

É nessa transição - com especial destaque para o cenário brasileiro -, suas causas e consequências, tanto no âmbito coletivo, quanto no subjetivo, que o presente trabalho se foca, com análise centrada no avanço incontido da violência e da criminalidade, fenômeno que marca a dinâmica transicional em questão, explicitando a quebra do paradigma moderno de conduta e comportamento frente à Lei.Page 15

2. O caráter criminógeno da sociedade de consumo
2.1. Aspectos sociais

De certa forma, não há como negar que este estudo compõe uma linha de continuidade com aquele conduzido por Robert K. Merton, em seu Estrutura Sociale Anomia (1970). Afinal, já em 1938 o sociólogo americano denunciava os efeitos criminógenos de uma cultura que impunha a todos, igualitariamente, padrões de consumo elevadíssimos, sem, contudo, distribuir de forma equânime o acesso aos meios legítimos de alcance desse fim.

Nesse sentido, merecem destaque as seguintes considerações do autor:

Acultura pode sertal que induzaos indivíduos a centralizarem suas convicções emocionais sobre o complexo de fins culturalmente aplaudidos, com muito menos apoio emocional sobre os métodos prescritos para alcançarem essas finalidades. Com tais ênfases diferenciais sobre os objetivos e sobre os procedimentos institucionais, os últimos podem ser tão viciados pela tensão em alcançar os objetivos, que o comportamento de muitos indivíduos fique sujeito apenas a considerações de conveniência técnica. Neste contexto, a única pergunta significativa é a seguinte:

Qual dos processos disponíveis é o mais eficiente a fim de apossar-se do valor culturalmente aprovado? O processo mais eficiente do ponto de vista técnico, quer seja culturalmente legítimo ou não, torna-se tipicamente preferido à conduta institucionalmente prescrita. À medida que se desenvolve este processo de amaciamento das normas, a sociedade torna-se instável e aparece o que Durkheim denominava 'anomia' (ausência de norma) (MERTON, 1970, p. 207).

Como se verifica, a produção em massa de condutas criminosas - e sua consequente normalização - por uma cultura que confere exacerbada ênfase a fins monetariamente mensuráveis, em detrimento da distribuição e valorização dos meios legítimos para o alcance da meta imposta, não é construção recente, embora jamais tenha se mostrado tão atual. Porém, o que Merton não fez - e nem se propôs a isso - e aqui se busca é conjugar a investigação das causas e efeitos sociais dessa cultura com seu equivalente no âmbito subjetivo. Ou seja, numa perspectiva interdisciplinar, analisar as transformações observadas no sujeito e na sociedade, em sua mútua interferência, muitas vezes mediada pelo Direito, na passagem da Modernidade para a Pós-modernidade, marcada pelo surgimento de uma sociedade de consumo em substituição à que se arrimava nos processos de produção.

A produção em massa de condutas criminosas - e sua consequente normalização -por uma cultura que confere exacerbada ênfase a fins monetariamente mensuráveis, em detrimento da distribuição e valorização dos meios legítimos para o alcance da meta imposta, não é construção recente, embora jamais tenha se mostrado tão atual

A propósito, cabe destacar a convicção, explícita no decurso deste trabalho, de que o êxito da abordagem acadêmica a qualquer fenômeno social depende do trato interdisciplinar do objeto escolhido. Assim, levando-se em consideração que o presente estudo sustenta-se no tripé composto por sujeito, sociedade e Estado, bem como na Lei comum que os une e harmoniza, cabe destacar que seu desenvolvimento conduz-se principalmente pelas perspectivas do Direito, da Sociologia, da Filosofia e da Psicanálise, tendo nesta área do saber seu fio condutor.

Aliás, diga-se, um dos pontos positivos do que se anuncia como pós-moderno é justamente a superação da pureza científica inutilmente perseguida na Modernidade. Especificamente no Direito - o que é metaforicamente extensível às demais áreas do saber -, a superação do moderno apego à formalidade representou um reencontro com a ética, logo, com o ideal de justiça2, na superação de uma mera legalidade com vistas ao resgate da legitimidade extraível do conteúdo valorativo das leis. O Direito supera em muito a lei e, atualmente, já não mais se admite que seus operadores eximam-se de toda e qualquer responsabilidade a partir de um...

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