Crimes Contra a Liberdade Individual

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas387-467

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12.1. Constrangimento ilegal

Objetividade jurídica. O art. 5º da CF edita, no capítulo dedicado aos direitos e garantias individuais, em seu inciso II, que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Prestando reforço sancionador a este cânone constitucional, o Código Penal consagrou, em seu art. 146, com a denominação constrangimento ilegal, objetivando tutelar a liberdade pessoal (v. n. 1.8), o crime por meio do qual, ante a submissão da autodeterminação da vítima ao querer do sujeito ativo, ela é compelida, pelo apoderamento de sua vontade mediante violência ou grave ameaça ou depois de ter reduzida a sua capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que ela não manda. Em suma, como perlustra Nélson Hungria, o sujeito passivo é tolhido, pelo injusto e opressivo arbítrio do agente, na sua capacidade de fazer o que quer ou deixar de fazer o que não quer1170.

Núcleo do tipo e meios executivos. A ação incriminada se expressa pelo núcleo constranger, que significa impor, coagir, compelir, obrigar, submeter alguém à força para fazê-lo ceder no cumprimento de um propósito determinado pelo agente.

O sujeito ativo tem o escopo, mediante a sujeição da vontade e autodeterminação da vítima ao seu desejo, de obter a prestação de um ato a que a lei não a obriga, visando a uma atividade positiva e dotada de desprendimento de energia de parte do sujeito passivo (comportamento comissivo), ou a abstenção de um fato (conduta negativa) cuja

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prática é legalmente facultada. Exemplifica Flávio Augusto Monteiro de Barros: obrigar alguém a atravessar a rua (conduta comissiva) ou impedir que uma pessoa frequente determinado local (conduta omissiva)1171.

Pode-se, portanto, obrigar a vítima a fazer ou não fazer alguma coisa. A lei não registra expressamente a conduta de alguém ser forçado a tolerar que se faça algo (como permitir que seja cortado o cabelo, por exemplo), entendendo Hungria, porém, que a tolerância não é senão uma modalidade de abstenção ou omissão1172, compreendida igualmente no dispositivo incriminador.

São meios executivos do delito, explicitados no figurino típico do constrangimento ilegal: a violência ou a grave ameaça, que podem ser praticadas contra pessoa diversa daquela a quem se procura constranger, mas que é cara e estimada ao sujeito passivo, ou, finalmente, a redução da capacidade de resistência da vítima, forma de execução do delito que somente em relação a ela mesma pode ser exercida.

A violência é representada pela vis corporalis ou vis atrox, vale dizer, pela aplicação de energia física sobre o corpo da vítima para determinar-lhe a fazer ou deixar de fazer alguma coisa segundo os ditames da vontade do agente. Esta energia física pode exteriorizar-se não só pelo emprego da força muscular, mas, ainda, pela aplicação de outros agentes como cordas, fogo, corrente elétrica, gases etc. A violência pode ser direta, que é aquela cujo ponto de incidência é o próprio corpo da vítima, como ocorre nos casos em que ela é amordaçada, amarrada, arrastada etc., ou indireta, quando é infligida sobre outras pessoas ou coisas, mas de modo a repercutir na determinação da vontade vitimária, como sucede, nos clássicos exemplos aventados pelos doutrinadores, de privar-se um cego de seu guia, tirar as muletas do aleijado, irritar um cavalo para o cavaleiro apear ou, no exemplo de Luiz Regis Prado, esconder as roupas de uma pessoa que se banha, para impedir que deixe o local1173ou, ainda, esclarece Anibal Bruno, destelhar uma casa para o morador retirar-se dela, romper com um tiro um pneu do automóvel para obrigar o motorista a parar1174etc.

Ameaça é a vis compulsiva ou conditionalis. Promana do poder suasório e persuasivo da intimidação, consistente em atemorizar, inspirar medo e receio. A ameaça deve ser séria e verossímel, de molde a paralisar e inibir a autodeterminação da vontade do sujeito passivo. Assim, ilustra Odin Americano, prometer a deportação para a Lua não é ameaça séria, como prometer o anel de Saturno não constitui sedução1175. Ademais, a ameaça deve ser iminente, isto é, um mal sério vaticinado para realização próxima, pois, obtempera Magalhães Noronha, projetada para um futuro longínquo perderia sua força coatora e se apresentaria destituída do vigor necessário1176. É imperioso, ainda, que a

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ameaça seja determinada, porque quando indefinível e vaga não terá grandes efeitos coativos. Deve apresentar-se também como inevitável, posto que, do contrário, se o sujeito passivo puder evitar o mal prometido, não se intimidará. Mais: deve a ameaça ser dependente, no sentido de estar seu eventual cumprimento atrelado à vontade única e exclusiva do sujeito ativo, já que, se depender de outrem, perderá muito de sua inevitabilidade1177. Veja-se bem: nada impede que o agente anuncie um mal a ser praticado por ele mesmo ou por terceiro, mas, nesse último caso, e esse é o aspecto fundamental, o mal vaticinado deve parecer à vítima que seja dependente da exclusiva vontade do sujeito ativo. Não se exige, diversamente do que ocorre no crime autônomo de ameaça (v. n. 12.2), que o mal vaticinado seja injusto, sendo suficiente, ressalta Cezar Roberto Bitencourt, que injusta seja a pretensão ou a forma (método) de obtê-la1178. Dessa forma, comete o crime o funcionário que, no caso do art. 66 da LCP, sob a ameaça de denunciar o crime praticado por outrem, dele obtém qualquer vantagem não econômica (se a vantagem é econômica, o crime é de extorsão - art. 158, CP)1179.

A presença do coagido - no caso da vis compulsiva - não é essencial para a realização do delito. Pode a ameaça ser feita em sua ausência, desde que o sujeito passivo tenha conhecimento dela (verbi gratia: recados, bilhetes, sinais etc.)1180.

É ainda azado que o sujeito ativo se valha de outros recursos, denominados violência imprópria, aptos a reduzirem a capacidade de resistência vitimária: utilização de bebida alcoólica, narcóticos etc., desde, é evidente, que sua ministração se dê de forma insidiosa, clandestina, astuciosa ou sub-reptícia, pois o meio utilizado à força se enquadrará na violência constitutiva do delito (violência própria).

Há sempre unidade criminosa, e não continuidade delitiva, se, no mesmo contexto de ação, o agente emprega meios executórios distintos1181. Mas se a vítima, seguidas vezes, de diversas feitas, é constrangida pelo sujeito ativo, mediante meios executivos similares, a realizar ou deixar de praticar condutas semelhantes, o crime continuado se caracteriza. Quando, porém, com única ação, o agente coage diversas vítimas para obter delas determinado comportamento, ganha contornos o concurso formal de crimes. Assim: "se mediante ameaça sob mira de revólver o réu coage as vítimas a ingerirem bebida alcoólica, tipifica-se constrangimento ilegal punível em termos de concurso formal" (JTACrimSP. 61/182).

O elemento nuclear típico é comissivo por excelência, ante o modus operandi assinalado na dicção do dispositivo (mediante violência, grave ameaça ou redução da vítima à incapacidade de resistência). Contudo, excepcionalmente, é possível o cometimento do delito também por omissão, uma vez presente o dever jurídico de agir. Nesse caso, terá

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compleição típica a figura do crime na modalidade omissiva imprópria ou comissiva por omissão. Quem ilustra é Higuera Guimerá: enfermeira que deixa de ministrar a dieta alimentar ao seu paciente para obrigá-lo a certo comportamento ou cônjuge que não abre a porta de casa ao outro, para expô-lo ao frio invernal e assim compeli-lo a certas concessões1182.

Ante o exposto, verifica-se, no acertado escólio de Cezar Roberto Bitencourt, que o delito apresenta execução complexa, pois exige uma duplicidade comportamental: a ação coativa do sujeito ativo e a atividade coagida do sujeito passivo, ao fazer ou não fazer aquilo a que foi constrangido1183.

Componente normativo da ilegitimidade. A pretensão que move o agente e que ele força a vítima a cumprir deve ser ilegítima, vale dizer, sem qualquer respaldo legal: obrigar alguém a ceder seu lugar ao agente ou a terceiro em ônibus lotado ou, ilustra Magalhães Noronha, compelir alguém a permanecer de chapéu durante uma procissão ou cortejo, tirar um distintivo1184, constranger mulher - acentua Euclides Custódio da Silveira, louvando-se em Contieri - à inseminação artificial1185, forçar alguém - arremata Nélson Hungria - a dar vivas a um clube esportivo etc.1186Se a pretensão é legítima, o delito que toma configuração jurídica é o...

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