O crédito hipotecário na União Europeia e a tutela negativa do consumidor

AutorMário Frota
CargoFundador e primeiro presidente da AIDC - Associação Internacional de Direito do Consumo. Fundador e presidente da apDC - Associação Portuguesa de Direito do Consumo
Páginas235-257

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EXCERTOS

"A crise do subprime arrastou, como se não ignora, inúmeras instituições de crédito para situações de insolvência, comprometendo a fiabilidade e a fidedignidade do sistema financeiro e provocando significativos rombos no património de indivíduos como de empresas"

"Os dadores de crédito não poderão restringir a avaliação às informações carreadas pelo consumidor"

"Aos Estados-membros se reserva a faculdade de sancionarem drasticamente tanto consumidores que falseiem as informações que disponibilizam às instituições de crédito ou outros dadores como a tais instituições que, sem curarem dos poderes-deveres a seu cargo, se permitam conceder irresponsavelmente o crédito, como até então ocorreu, como em geral se não ignora"

"Elemento essencial para uma criteriosa concessão do crédito ao consumidor é o de uma avaliação rigorosa dos imóveis com base em parâmetros fidedignos e nos mais elementos fundantes de mercado ao alcance do avaliador"

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I Preliminares
1. Antecedentes

O crédito hipotecário tem sido um autêntico quebra-cabeças em distintos continentes: do subprime nos Estados Unidos2a análogas situações em Espanha e, por que não, em Portugal, para nos atermos à Península ibérica.

A crise do subprime arrastou, como se não ignora, inúmeras instituições de crédito para situações de insolvência, comprometendo a fiabilidade e a fidedignidade do sistema financeiro e provocando significativos rombos no património de indivíduos como de empresas3.

A iliteracia financeira dos consumidores foi insuperável obstáculo que aos ordenamentos se deparou aquando da crise, ainda subsistente, aliás, na concessão do crédito, tanto pelos artifícios e embustes adotados pelos dadores de crédito como na compreensão do clausulado dos contratos, em regra demasiado hermético e insusceptível de descodificação e sobretudo do preço do dinheiro (da TAEG calculada de modo errante pelos mutuantes).

Daí que haja a esse propósito peculiares cuidados, expressos tanto no livro verde, como no livro Branco dos serviços Financeiros, e hoje materializados na Diretiva do crédito hipotecário, que cumpre, em dados termos, evidenciar.

Eis o que sabiamente se prescreve no considerandum 26, que importa, a justo título, realçar:

A fim de aumentar a capacidade dos consumidores para tomarem decisões com conhecimento de causa sobre contracção responsável de créditos e gestão responsável da dívida, os Estados-membros deverão promover medidas destinadas a apoiar a formação dos consumidores nessa matéria, em particular no domínio dos contratos de crédito hipotecário.

É particularmente importante dar orientações aos consumidores que contratam um crédito hipotecário pela primeira vez.

A este respeito, a comissão deverá identificar exemplos de boas práticas tendentes a facilitar a continuação do desenvolvimento de medidas destinadas a aumentar a sensibilidade dos consumidores para as questões financeiras.

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Tais directrizes têm expressão no artigo 6º da Diretiva, sob a epígrafe "formação financeira dos consumidores".

Eis os seus termos:

  1. Os Estados-membros promovem medidas para apoiar a formação dos consumidores no que diz respeito à contracção responsável de créditos e à gestão responsável de dívidas, em especial no que se refere a contratos de crédito hipotecário. São necessárias informações gerais claras sobre o processo de concessão de crédito para orientar os consumidores, especialmente aqueles que contraiam um crédito hipotecário pela primeira vez. São igualmente necessárias informações sobre as orientações que as organizações de consumidores e as autoridades nacionais podem dar aos consumidores.

  2. A comissão publica uma avaliação da formação financeira a disponibilizar aos consumidores nos Estados-membros e identifica exemplos de boas práticas que poderão ser desenvolvidas para aumentar a sensibilidade dos consumidores para as questões financeiras.

Clamorosa falha colmatar-se-ia se acaso países como Portugal tivessem institucionalizado a educação para o consumo nas grelhas escolares4. Desta forma, episódicas ações, nada consequentes, a nada conduzirão.

E importa envidar esforços para que tão profundos fossos se superem e os jovens como os menos jovens dos consumidores se apetrechem para cuidarem, de fato, dos seus legítimos interesses e direitos neste particular.

2. As cautelas da União europeia

A União Europeia, através de um relevante instrumento normativo5, ainda não transposto para os ordenamentos pátrios, pretende sanear intra muros o sistema financeiro dos 28, por um lado evitando as imparidades e, por outro, propondo-se reconduzir os mecanismos de concessão de crédito a critérios que se distanciem de um nefasto período, que ocorreu até à eclosão da crise financeira de todo ainda não

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superada, em que preponderara sobretudo a atribuição irresponsável de empréstimos para a habitação no quadro da celebração de mútuos com hipoteca de forma autenticamente selvagem com gravame sobretudo para a condição dos consumidores, sem olvidar os efeitos perniciosos sobre o sistema financeiro em geral.

Nos consideranda de uma tal diretiva se alude de forma impressiva ao imperativo indeclinável de avaliação preliminar da solvabilidade do consumidor, sob pena de graves penalidades se deflagrarem para as instituições de crédito que de modo negligente ou irresponsável se predisponham a conceder créditos a quem não reúna os indispensáveis requisitos para o efeito.

E aí pode, na realidade, entrever-se tamanhas cautelas, como se imporia, de resto, fossem quais fossem as circunstâncias em que tal se viesse a processar.

É que, parafraseando uma máxima da ancestral sabedoria dos angolanos: "Só se empresta um cabrito a quem tem um boi". E daí advêm precauções que não seria lícito subestimar:

É essencial, antes da celebração de um contrato de crédito, avaliar a capacidade e propensão do consumidor para reembolsar o crédito.

Essa avaliação da solvabilidade deverá ter em conta todos os fatores necessários e relevantes susceptíveis de afetar a capacidade do consumidor para reembolsar o crédito ao longo da sua vigência. Em particular, na capacidade do consumidor para assumir o serviço da dívida e reembolsar integralmente o crédito deverá ser incluído o valor de pagamentos a efetuar no futuro, de pagamentos mais elevados necessários em caso de amortizações negativas ou de pagamentos diferidos de capital ou de juros, e deverá ser apreciada atendendo a outras despesas regulares, dívidas e outros compromissos financeiros, bem como a rendimentos, poupanças e ativos. Deverá haver lugar também a adaptações razoáveis associadas a acontecimentos futuros durante a vigência do contrato de crédito proposto, por exemplo a diminuição de rendimento que ocorre na parte do período do crédito que extravasa para a fase da vida durante a reforma ou, se for caso disso, o aumento da taxa

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devedora ou uma evolução negativa da taxa de câmbio. Embora o valor do imóvel seja um elemento importante na determinação do montante do crédito que pode ser concedido a um consumidor no âmbito de um contrato de crédito com garantia associada, a avaliação da solvabilidade deverá incidir na capacidade do consumidor para cumprir as obrigações decorrentes do contrato de crédito. Consequentemente, a possibilidade de o valor do imóvel exceder o montante do crédito ou aumentar no futuro não deverá, de um modo geral, ser condição suficiente para conceder o crédito em questão.

Todavia, caso a finalidade do contrato de crédito seja a construção ou renovação de um bem imóvel existente, o mutuante deverá poder ter em conta essa possibilidade.

Os Estados-membros deverão poder emitir orientações adicionais sobre esses critérios ou critérios adicionais e sobre métodos de avaliação da solvabilidade do consumidor, por exemplo estabelecendo limites para o rácio entre o valor do empréstimo e o valor da garantia, ou o rácio entre o valor do empréstimo e o rendimento, e deverão ser incentivados a aplicar os princípios do conselho de Estabilidade Financeira em matéria de boas práticas de constituição de hipotecas para habitação.

3. Fontes a que recorrer para uma criteriosa avaliação da solvabilidade do pretendente ao crédito: o consumidor

De harmonia com as recomendações do conselho de Estabilidade Financeira, como se estabelece no considerandum 58, "a avaliação de solvabilidade de verá basear-se em informações sobre a situação económica e financeira, incluindo as receitas e as despesas, do consumidor".

Tais informações poderão advir de distintas fontes. Mormente do consumidor, principal interessado em todo o processo de concessão de crédito neste passo referenciado.

Nesse particular, peculiares deveres de cuidado se estabelecem no que tange à informação atinente ao consumidor, como o estabelece o artigo 20 do diploma em apreciação, sob a epígrafe:

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Divulgação e verificação da informação relativa ao consumidor

  1. A avaliação de solvabilidade a que se refere o artigo 18º deve basear-se em informação necessária, suficiente e proporcionada sobre os rendimentos e as despesas do consumidor e outras circunstâncias financeiras e económicas que lhe digam respeito. A informação deve ser obtida pelo mutuante junto de fontes internas ou externas relevantes, incluindo junto do próprio consumidor, e incluir a prestada ao intermediário de crédito ou representante nomeado durante o...

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