Contraditório efetivo: uma interseção constitucional entre o processo do trabalho e o processo civil

AutorLorena de Mello Rezende Colnago/Ben-Hur Silveira Claus
Páginas81-95

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1. Contraditório
1.1. Brevíssima contextualização histórica

Iniciando-se este sintético apanhado histórico pela Era Medieval, tem-se que a conformação do modelo processual vigente à época, o denominado ordo iudiciarius, privilegiava o que, atualmente, é conhecido como “princípio do contraditório”, constituindo-se um método dialético de investigação da verdade provável no processo1. Nesse contexto, valorizava-se a ordem processual interna isonômica, não apenas no tratamento igualitário entre as partes, mas também entre as partes e o juiz, com o fito de se alcançar o resultado provavelmente verdadeiro. As alegações proferidas pelos interessados e as provas a serem produzidas deveriam ser, invariavelmente, submetidas ao crivo crítico do contraditório2.

Na Baixa Idade Média, pelos idos do século XV, consolidou-se a atribuição da origem jusnaturalista ao princípio do contraditório3, atrelando-o, inclusive, a uma passagem do livro bíblico do Gênesis (Capítulo 3, versículo 9: “Deus chamou Adão”), indicando que a citação do réu e a oitiva de ambas as partes, acusador e acusado, seriam medidas indispensáveis ao proferimento da decisão4.

Avançando na História, chega-se aos séculos XVII e XVIII, quando uma atmosfera cultural diversa tomou conta da Europa, com o fortalecimento do laicismo e o consequente distanciamento do jusnaturalismo, o que contribuiu para a “passagem do ordo iudiciarius medieval ao processo em sentido moderno” associada a uma “radical mudança no próprio modo de conceber o fenômeno processual: da ‘ordem isonômica’ à ‘ordem assimétrica’”5. O início da fase de positivação de regras, inclusive, processuais, bem como o desenvolvimento de uma racionalidade objetiva, científica, formal e mecânica foram fatores que impactaram na depreciação dos princípios jusnaturalistas outrora soberanos.

Nesse passo, a clássica concepção de verdade provável obtida ao fim do processo é, paulatinamente, substituída pela crença na real possibilidade de obtenção de uma verdade absoluta e objetiva. Passou-se a sobrevalorizar a prova documental em detrimento da prova testemunhal (oral) e, igualmente, a privilegiar-se a manifestação escrita das partes em prejuízo do diá-logo entre os interessados e o juiz. A medieval ordem isonômica vigente no desenrolar procedimental do ordo iudiciarius cedeu espaço à ordem processual assimétrica, marca do processo moderno, baseada na autoridade burocrática e na elevação hierárquica do juiz em relação

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às partes e advogados6. A condução do procedimento pelo magistrado ganhou relevância, enquanto a concepção processual dialética foi definhando. Em suma: o princípio do contraditório perdeu, aos poucos, sua fundamentação jusnaturalista, seu estofo metafísico, axiológico, passando a ser identificado com a mera obediência ao conteúdo de regras positivas. O desprestígio do modo dialético atingiu tamanha expressão que houve até corrente doutrinária que defendesse a supressão do contraditório no processo civil, durante o período de domínio nacional-socialista na Alemanha7.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a revelação do genocídio e das demais atrocidades cometidas com base na lei, iniciou-se uma fase de descrença em relação ao paradigma positivista, diante de sua apontada insuficiência para proteger os mais caros direitos humanos, culminando, na seara jurídico-processual, na revalorização da clássica acepção do princípio do contraditório, que vem retomando seu lugar principal no processo8. A doutrina teve papel central no recrudescimento do contraditório, passando a percebê-lo como absolutamente essencial à obtenção de uma decisão justa e adequada e, muito além disso, resgatando a identificação do conceito de processo com a concepção de contraditório, o que pode ser ilustrado com a emblemática assertiva de que “há processo quando no iter de formação de um ato há contraditório”9. É dizer, a contrario sensu: sem contraditório, não há processo.

Nessa esteira, nas palavras de Elio Fazzalari:

Existe, em resumo, ‘processo’, quando em uma ou mais fases do iter de formação de um ato é contemplada a participação não só – e obviamente – do seu autor (julgador), mas também dos destinatários dos seus efeitos (partes), em contraditório, de modo que eles possam desenvolver atividades que o autor do ato deve deter-minar, e cujos resultados ele pode desatender, mas não ignorar.10

Nesta quadra, o princípio do contraditório recupera sua estatura decisiva no processo, revitalizando-se a concepção axiológico-dialética que tem por intento o proferimento de uma decisão final robustecida pela efetiva participação dos interessados e, por isso, dotada de legitimidade.

Especificamente quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, releva destacar que a Constituição Federal promulgada em 1988 (CF/1988) expandiu expressamente a incidência do princípio do contraditório para os processos de toda e qualquer natureza, judicial ou administrativa, conforme estampado no art. 5º, inciso LV11, ao passo que no texto constitucional anterior – Constituição Federal de 1969 (CF/1969)12, o contraditório era assegurado tão somente no âmbito do processo criminal, não obstante a doutrina jurídica, de há muito, já defender a sua aplicação sobre todos os tipos processuais, com fulcro na igualdade e na concepção alargada de devido processo legal13.

O novo Código de Processo Civil Brasileiro, promulgado em 2015 e vigente desde março de 2016, caminha no mesmo passo delineado pela CF/1988. Trata-se de um diploma normativo bastante auspicioso e exemplar dessa contemporânea valorização da dialética processual, primando pela participação colaborativa das partes entre si e para com o julgador, como será minuciosamente analisado nos tópicos que seguem.

1.2. Conteúdo do princípio do contraditório

O novo Código de Processo Civil (CPC/2015) traz como regra explícita o corolário máximo da ampla defesa, qual seja, o contraditório. O CPC/2015 preenche uma lacuna normativa, considerando-se que o CPC/1973

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não era específico quanto a esse aspecto. A CF/1988 já cumpria o papel de garantir às partes processuais a oportunidade de se comunicarem dialeticamente, consoante previsto no art. 5º, inciso LV.

Mesmo assim, o novo CPC pretendeu ser mais específico e estabeleceu parâmetros para a realização do contraditório14:

Art. 7º. É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.

A leitura tradicional do comentado princípio percebia duas facetas a ele inerentes: informação e reação15, que podem ser assim sistematizadas:
a) Informação: também chamada de ciência, corresponde ao dever de o Estado-juiz conferir ciência às partes litigantes de todos os atos processuais relevantes, como a realização de provas (art. 369) ou a prolação de decisões (arts. 269 e segs.); e

b) Reação: também chamada de oportunidade, é assegurada às partes a manifestação a respeito dos atos processuais e, mais ainda, a produção de provas quanto à veracidade dessa manifestação16.

Hodiernamente, entende-se o contraditório como extensão do princípio democrático. Nas lições de Fredie Didier Jr.17, democracia é participação, que no processo civil se dá pela efetivação da garantia do contraditório. Dessa maneira, conclui o autor que o “princípio do contraditório deve ser visto como exigência para o exercício democrático de um poder”. A decisão judicial, como ato de poder estatal que é, deve ser, portanto, legítima. Nessa linha, compreende-se que a legitimidade da atuação do Poder Judiciário, por não se basear no sufrágio livre e universal, como ocorre com os demais Poderes do Estado, deve encontrar seu respaldo na correta e efetiva aplicação do contradictorium18, que assegura a participação das partes interessadas no iter procedimental que culminará com o provimento jurisdicional19. Na feliz definição de Lúcio Delfino, “no Estado Democrático de

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Direito o contraditório é a ponte de ouro entre jurisdição e democracia”20.

Por conta disso, uma releitura do contraditório se faz necessária, integrando-se à informação e à reação um terceiro e imprescindível componente: a consideração judicial. Isso porque seria inócuo o atendimento aos dois elementos anteriores, se os atos realizados pelas partes fossem ignorados pelo órgão julgador:

O primeiro componente do contraditório é a imprescindibilidade de informação sobre atos processuais realizados ou a ocorrer. O réu precisa ser citado, as partes comunicadas da audiência e da oportunidade para apresentação do rol de testemunhas e tantas situações em que o conhecimento é a primeira etapa do contraditório. (...). É inócuo informar a parte de uma ação proposta, da juntada de documentos, de contestação, do laudo pericial, se não se lhe confere oportunidade para manifestação e comprovação de seus argumentos. Cumpre-se aqui o segundo estágio do contraditório. (...) Finalmente, de nada adianta o cumprimento das duas etapas prévias, ciência e oportunidade, quando o ato realizado é desconsiderado pelo juiz. (...) O exposto não significa que tudo que a parte alega ou mesmo todas as provas apresentadas devem constar sempre exaustivamente nas decisões judiciais, o que representaria ônus excessivo e inútil. O que é inadmissível é a desconsideração.21

Não à toa, o art. 7º, in fine, do CPC/2015 estabelece que compete ao juiz “zelar pelo efetivo contraditório”. Significa isso que o...

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