A constituição da obrigação tributária pelo lançamento por arbitramento

AutorMarcos Caleffi Pons
Páginas165-178

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1. Introdução

S eguindo a linha normativista da teoria kelseniana, temos para nós que o direito é o complexo de normas jurídicas válidas de um determinado país. Este complexo de normas jurídicas, enquanto produzidas pelo ser humano, manifesta-se através da linguagem e tem como finalidade disciplinar as condutas sociais. Ou seja, o direito é fruto da vontade e da atividade do homem que, através de uma determinada linguagem, cria e mantém um complexo de normas que visam disciplinar as condutas sociais em um determinado tempo e lugar.

As premissas acima, amplamente desenvolvidas na obra do Prof. Paulo de Barros Carvalho, servem para entendermos que as normas jurídicas só são criadas e aplicadas mediante a atividade humana. Nas palavras do referido professor, "as normas não incidem por força própria. Numa visão antropocêntri-ca, requerem o homem, como elemento intercalar, movimentando as estruturas do direito, extraindo de normas gerais e abstratas outras gerais e abstratas ou individuais e concretas".1

Nesta senda, é através do chamado processo depositivação que o aplicador, partindo de normas jurídicas de hierarquia superior, produz novas normas, objetivando maior individualização e concretude. Isso porque o direito não dispõe de uma infinidade de normas individuais e concretas para regular cada caso específico. A quase totalidade das normas do sistema são normas gerais e abstratas, as quais dependem do processo de positivação para, através da emissão de normas individuais e concretas, atuarem

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especificamente sobre cada caso, chegando o mais próximo possível das condutas intersubjetivas para fins de modificá-las. Para tanto, o processo de positivação deve ser realizado em conformidade com as regras do sistema, observando forma e conteúdos normativamente previstos.

No âmbito do direito tributário, o processo de positivação ou, em outros termos, a aplicação da norma geral e abstrata de direito tributário2 pode ser realizada, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, pelo contribuinte ou pela autoridade administrativa. No primeiro caso, trata-se da figura do autolançamento, impropriamente chamado de "lançamento por homologação" pelo Código Tributário Nacional, no qual o particular é responsável pela emissão da norma individual e concreta, constituindo, assim, a obrigação tributária, sem a interferência da autoridade administrativa.3 Na segunda hipótese, tem-se a constituição da obrigação tributária pela autoridade administrativa, através de ato administrativo denominado lançamento tributário, nos moldes do art. 142 do Código Tributário Nacional.

O tema objeto do presente artigo trata justamente da constituição da obrigação tributária pela autoridade administrativa, nas situações em que o ordenamento autoriza a utilização da figura do arbitramento. Neste sentido, as notas realizadas até então possuem o condão de alertar o leitor de que o estudo ora proposto busca justamente explorar os aspectos do lançamento tributário, sob o ponto de vista da fenomenología da incidência das normas que autorizam a utilização do arbitramento, em particular no caso do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas.

2. Arbitramento no lançamento tributário do imposto de renda das pessoas jurídicas

Tem-se por arbitramento a apreciação valorativa de fatos ou coisas, das quais não se têm critérios certos de avaliação.4

Especificamente no que tange ao Imposto de Renda, o Código Tributário Nacional admitiu o arbitramento como um dos meios de apuração da base de cálculo do imposto, conforme se verifica pelo teor do seu art. 44, verbis: "Art. 44. Abase de cálculo do imposto é o montante, real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis".

Desta forma, pode-se afirmar com segurança que o arbitramento é uma das formas de apuração da grandeza do fato imponível, no caso: o lucro.

Entretanto, como veremos, acreditamos que o lucro real, presumido e arbitrado não podem ser utilizados indistintamente para apuração da base de cálculo do imposto. O lucro real é o que melhor representa a noção constitucional de renda, e, por esse motivo, tem primazia sobre os demais, podendo ser utilizado por qualquer pessoa jurídica. O lucro presumido é facultado pela lei a determinadas pessoas jurídicas que, caso entendam conveniente e não estejam obrigadas à tributação pelo lucro real, podem optar por essa forma de tributação. O lucro arbitrado, por sua vez, é um método excepcional de apuração da renda, e só pode ser aplicado nos casos em que não for possível a apuração do lucro por um dos outros dois métodos.

Nesta linha, mostra-se pertinente a lição de Alberto Xavier, ao tratar do lançamento por arbitramento no Imposto de Renda, segundo o qual "[a] base de cálculo do imposto é sempre a mesma: o lucro; o que varia é apenas o meio probatório da sua determinação".5

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No caso do arbitramento, portanto, verifica-se que o legislador cuidou de disponibilizar ao Fisco um instrumento para apurar o tributo devido nas hipóteses em que o contribuinte tenha sido omisso ou relapso nas suas obrigações de prestar declarações e informações ou expedir documentos a que está obrigado, impedindo, assim, que o mesmo se veja livre do cumprimento da obrigação tributária.

Entretanto, considerando que o arbitramento não se trata de penalidade, mas sim de uma modalidade de apuração do lucro, e que a tributação deve sempre ser pautada nos princípios e garantias individuais assegurados pela Constituição Federal, sobretudo os princípios da legalidade, da capacidade contributiva e do não confisco,6 tem-se que a utilização do arbitramento deve sempre respeitar suas estritas hipóteses, assim como os seus limites estabelecidos na legislação, sob pena de se estar tributando fato alheio àquele definido como hipótese de incidência pela Constituição.

Neste sentido, o Código Tributário Nacional, recepcionado como lei complementar à Constituição Federal de 1988, cumprindo o mister constitucional de estabelecer normas gerais sobre lançamento tributário (CF, art. 146, III, b), admitiu o arbitramento como modalidade de valoração da materialidade tributária e estabeleceu, em seu art. 148, as restritas hipóteses em que as autoridades fiscais podem utilizar-se desta medida extrema para fins de exigência fiscal. Veja-se:

"Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial."

Conforme se infere do citado dispositivo, o arbitramento tem lugar nas situações em que a quantificação da materialidade tributária não é possível de se auferir através das declarações ou informações prestadas ou, ainda, dos documentos expedidos pelo sujeito passivo ou por terceiro legalmente obrigado.

O Regulamento do Imposto de Renda (Decreto n. 3.000/1999), por sua vez, ao tratar das hipóteses de arbitramento igualmente determina a sua aplicação nas restritas hipóteses em que o lucro não possa ser determinado através das declarações e documentos a que está obrigado o contribuinte. É o que dispõe o art. 530 do Regulamento do Imposto de Renda (RIR/1999), in verbis:

"Art. 530.0 imposto, devido trimestralmente, no decorrer do ano-calendário, será determinado com base nos critérios do lucro arbitrado, quando (Lei n. 8.981, de 1995, art. 47, e Lei n. 9.430, de 1996, art. P):

"I - o contribuinte, obrigado à tributação com base no lucro real, não mantiver escrituração na forma das leis comerciais e fiscais, ou deixar de elaborar as demonstrações financeiras exigidas pela legislação fiscal;

"II - a escrituração a que estiver obrigado o contribuinte revelar evidentes indícios de fraudes ou contiver vícios, erros ou deficiências que a tornem imprestável para:

"a) identificar a efetiva movimentação financeira, inclusive bancária; ou

"b) determinar o lucro real;

"III - o contribuinte deixar de apresentar à autoridade tributária os livros e documentos da escrituração comercial e fiscal, ou o Livro Caixa, na hipótese do parágrafo único do art. 527;

"IV- o contribuinte optar indevidamente pela tributação com base no lucro presumido;

"V - o comissário ou representante da pessoa jurídica estrangeira deixar de escritu-

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rar e apurar o lucro da sua atividade separadamente do lucro do comitente residente ou domiciliado no exterior (art. 398);

"VI - o contribuinte não mantiver, em boa ordem e segundo as normas contábeis recomendadas, Livro Razão ou fichas utilizados para resumir e totalizar, por conta ou sub-conta, os lançamentos efetuados no Diário."

De acordo com a interpretação sistemática dos dispositivos supra transcritos, conclui-se que o arbitramento é medida de exceção aplicável somente nas situações de inexistência da escrita fiscal do contribuinte ou total imprestabilidade da mesma.

A conclusão se justifica, pois o arbitramento constitui uma espécie de presunção, através da qual, verificada a impossibilidade de se alcançar a verdadeira materialidade prevista na lei como base de cálculo do imposto de renda, presume-se a existência de lucro, admitindo-se, assim, ao Fisco utilizar-se de outros meios para se chegar a esta materialidade.

Por esse motivo, Alberto Xavier7 sustenta que, no arbitramento do lucro da pessoa jurídica, ocorre uma presunção simples ou hominis, já que a administração fiscal parte de um fato conhecido - a impossibilidade de se apurar o lucro real - para demonstrar um fato desconhecido - o objeto da prova (lucro), através de critérios determinados pela lei ou em regras de...

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