Consciência na substituição do uso de animais no ensino: aspectos históricos, éticos e de legislação

AutorMone Martins Seixas/João Henrique Araujo Virgens/Stella Maria Barrouin Melo/Alexander Gerard Steevert van Herk
CargoMédica Veterinária do Laboratório de Infectologia Veterinária - Universidade Federal da Bahia/Médico Veterinário do Instituto Anísio Teixeira/Médica Veterinária, Doutora em Imunologia e Professora Adjunto da Escola de Medicina Veterinária - Universidade Federal da Bahia/Médico Veterinário, Mestre em Patologia Veterinária e Professor Adjunto da ...
Páginas71-96

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1. Introdução

Diversos aspectos e consequências surgem diante da convivência entre animais humanos e não-humanos, sendo esse um tema pensado à luz das variadas ciências, perpassando por todos os setores sociais. A partir da difusão de ideias que levam em conta o valor inerente dos animais não-humanos, houve um aumento na demanda por novos conhecimentos e debates também nas universidades. Através desta nova forma de enxergar a vida, torna-se fundamental discutir a ética na utilização de animais como recursos didáticos. A inclusão de temas como ética, métodos alternativos e novos tipos de técnica cirúrgica na análise, avaliação e construção contínua de padrões e condutas, representa a iniciativa na busca de formas de alcançar boas práticas quando da questão do papel dos animais na construção do conhecimento humano na academia (Markus, 2008).

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Com a prática de vivissecção - vivu + seccione, operação e/ou dissecação (abertura por incisão) feita em animais vivos anestesiados ou não - milhares de animais sofreram e vêm sofrendo morte dolorosa, devido à crença de diversos cientistas, desde a antiguidade, de que não haveria forma melhor de se conhecer o corpo humano e animal em todos os seus aspectos, físicos, psíquicos e comportamentais (Cardozo e Vicente, 2007).

Em um estudo abordando a educação em cursos das ciências biológicas, médica e veterinária, nos quais os animais possuem papel central em aulas práticas, Chiuia e Jukes (2006) concluíram que a relação entre estudantes e animais é geralmente prejudicial. Além do prejuízo causado aos animais, os estudantes também passam por um processo de transformação que está diretamente envolvido com as questões éticas e educacionais existentes (Chiuia e Jukes, 2006). O estudante é exposto a contradições, como o "matar para salvar", o "desrespeitar para respeitar", ao ter que cumprir determinadas tarefas e deixar para trás seus princípios éticos, já que no ambiente científico não há muito espaço para as emoções (Tréz, 2003).

O uso prejudicial de animais no ensino universitário ainda é regra na grande maioria das universidades brasileiras, e não há dados acerca das proporções deste tipo de prática em termos de quantidade de vidas animais desperdiçadas. Entretanto, é importante enfatizar que não apenas os cavalos, porcos-da-índia, cães, ovelhas, gatos, vacas, rãs, camundongos, porcos, ratos e outros animais são vítimas nesse processo, mas também os estudantes, a quem tais métodos são impostos (Tréz, 2003).

De acordo com Langley (2006), a educação humanitária, aqui definida como "um conceito de ensino e aprendizado que evita o prejuízo animal e encoraja o pensamento crítico", é muitas vezes desacreditada no ensino das ciências biológicas, fazendo com que muitos estudantes migrem para outros cursos por acre-ditarem que o modelo exposto nunca irá mudar.

Assim, tornam-se necessários estudos que caracterizem e subsidiem diagnósticos da realidade nacional, permitindo a in-

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serção de métodos substitutivos adequados às condições e perfil de cada localidade.

2. Aspectos históricos e éticos da utilização de animais na ciência

As primeiras discussões acerca da vivissecção foram pautadas, principalmente, na presença da alma e na dor. Já na Idade Antiga, segundo Feijó (2005), Aristóteles classificava os seres em inteligíveis ou sensíveis, assim, o conhecimento intelectual era vinculado aos seres inteligíveis e as sensações aos seres sensíveis.

Na Idade Moderna, os animais não humanos passaram a ser classificados como máquinas, principalmente devido à teoria do francês René Descartes, no século XVII, segundo a qual os animais não possuíam alma, bem como capacidade de comunicação. Assim, foi sustentada a idéia de que os animais não sentiam dor ou prazer, nem outro tipo de sensação e emoção (Francione, 2007).

No século seguinte, Voltaire contestou esse pensamento cartesiano, reafirmando a percepção de que os animais possuíam a capacidade de sentir dor. À mesma época, o tema recebeu ainda a contribuição do filósofo alemão Immanuel Kant, cuja teoria afirmava que infringir sofrimentos inúteis aos animais acarretaria prejuízos à saúde moral dos seres humanos (Feijó, 2005).

Já na transição para a Idade Contemporânea, com o evolucionismo, nasce uma nova forma de enxergar os animais. A descoberta de que os humanos e não-humanos partem de uma origem comum refuta a impossibilidade de comparação entre estes. Darwin enfatizou a idéia de que não existem características exclusivamente humanas e que a diferença destes para os demais animais é de grau, mas não de natureza (Francione, 2007).

Um dos acontecimentos fundamentais para o estabelecimento de limites ao uso de animais no ensino, ainda nos anos de

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1860, foi a utilização, pelo fisiologista Claude Bernard, do cão de estimação da sua filha em aula para os seus alunos. Em reação ao ocorrido, a esposa do fisiologista fundou a primeira associação em defesa dos animais utilizados em pesquisas (Raymundo e Goldim, 2007). Hoje, conforme os dizeres de Langley (2006), "a consciência e o respeito pela vida podem ser discutidos em círculos acadêmicos sem a expectativa de uma reação de extra-polação ridícula ou defensiva".

As implicações éticas do uso de animais como recursos científicos e didáticos são de extrema importância e estão inseridas nos mais diversos ambientes, sobretudo na Universidade, já que esta convive com a questão no seu cotidiano e possui a função de ser um espaço de reflexão e construção de novos paradigmas. Apesar das evidências, ainda há entraves a esta questão, assim, no que diz respeito à experimentação animal, existe por parte de instituições de ensino, pesquisadores e docentes uma ausência de questionamentos e estes "não têm utilizado seu talento científico para propor métodos substitutivos e não têm considerado o trabalho de demais professores e pesquisadores renomados que já utilizam em seus trabalhos de pesquisa e ensino várias substituições ao uso de animais." (Cardozo e Vicente, 2007). A vivissecção apresenta-se como uma prática "inercial, acrítica e tradicional", pois os argumentos para a sua sustentação encontram-se fora do sujeito que, imerso na cultura, acaba por reproduzi-los sem qualquer crítica. Este fato explicita uma situação de alienação, somente corrigida através da crítica à cultura e resgate à autonomia do sujeito (Lima, 2008b).

Os estudantes, neste contexto, possuem um papel fundamental, já que, a polêmica acerca do uso de animais em aulas práticas tem gerado discussões éticas, que, na maioria das vezes, "são iniciadas pelos próprios estudantes que se vêem obrigados a praticarem atos que vão contra seus princípios" (Pinto e Rímoli, 2005).

Após estudo acerca da temática "utilização de animais em aulas práticas", realizada com diversos estudantes da área bio-

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médica, Feijó et. al. (2008) afirmam que o tema "ética animal" deve ser trabalhado com os discentes em cursos e/ou aulas, já que serão profissionais e, portanto, formadores de opinião.

A tensão dos estudantes diante da obrigação de causar sofrimento aos animais é uma questão amplamente discutida e que necessita de atenção. Assim, não pode haver um vácuo ético nas profissões relacionadas à vida, sendo a introdução de alternativas ao uso de animais um compromisso com a ética e um claro benefício aos animais pelo fato de não serem machucados ou mortos durante as aulas (Chiuia e Jukes, 2006).

3. Utilização de animais em aulas práticas

Pela forma atual com que as aulas são planejadas, não existe a preocupação em ensinar as ciências de maneira completa, de forma que o estudante tenha contato abrangente com o processo científico, que deve abarcar, além da técnica, os aspectos cultural e humano. Nas aulas práticas em que animais são utilizados é comum a repetição de técnicas amplamente descritas em manuais, assim, a prática assume um caráter teórico e as manipulações experimentais se resumem a demonstrações e ilustração da teoria, como diapositivos em um audiovisual. Com isso, "não se ensina ciência, faz-se propaganda dela" (Lima, 2008a).

Ilustrando tais conclusões, podemos citar os propósitos do uso de animais em aulas práticas, fundamentalmente no ensino da anatomia e fisiologia, de modelos genéticos de determinado grupo, ou de comparação de estruturas de diferentes espécies, dentre outros (Greif, 2003).

Atualmente, existe uma tendência para a modificação dessa realidade. De fato, "o paradoxo de ‘matar para preservar’ vem levando principalmente estudantes a recusarem estas práticas, alegando que procuram em sua formação uma melhor compreensão da vida para poder, de fato, preservá-la e respeitá-la" (Tréz, 2008).

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4. Legislação acerca do uso de animais no ensino

Ainda em 1978, a UNESCO publicou a Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Em seu sexto artigo, a Declaração postula que "nenhum animal deve ser usado em experiências que lhe causem dor" e em seu oitavo artigo determina que:

  1. A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos do animal, quer se trate de uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer que seja a forma de experimentação, e;

  2. As técnicas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas.

Considerando-se a abrangência mundial de uma organização como a UNESCO, de cunho cultural, científico e educacional, é notável a adoção dessa nova filosofia sobre os direitos dos animais, ao reconhecer o valor da vida de cada ser e propor uma conduta humana ética desprovida de especismo (Cardozo e Vicente, 2007).

Do ponto de vista histórico, é importante observar que, embora a Declaração Universal dos Direitos dos...

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