Conferência: interpretação da lei tributária e segurança jurídica

AutorEros Grau
Páginas218-225

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O título desta minha exposição é "Interpretação da Lei Tributária e Segurança Jurídica", mas comporta o seguinte subtítulo: "O voto que não deu tempo de dar [risos na plateia] no RE 566.621". Vou tomar um caso, e a partir desse caso tratar do tema. Para os que não estão lembrados, a Lei Complementar 118 diz que, para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 do CTN, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso do lançamento sujeito a homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1o do art. 150. Depois o parágrafo disse assim: "Esta Lei [a Lei Complementar 118] - entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após a sua publicação, observado quanto ao art. 3° [esse que eu acabei de ler] o disposto no art. 106, inciso I, do Código".

O que diz o art. 106, I? Que a lei se aplica a ato ou fato pretérito em qualquer caso quando seja expressamente interpre-tativa, excluída a aplicação de penas. E o art. 168 menciona cinco anos, prazo em que o contribuinte poderia pleitear a restituição de tributo.

Em suma, a interpretação conferida ao inciso I do art. 168 pelo art. 3o da lei complementar aplicar-se-ia retroativamen-te. Consegui brevemente situar o problema. O art. 3° dá uma interpretação, diz que dá uma interpretação ao art. 168, I, do CTN, e o art. 4o da lei complementar diz que ela se aplica retroativamente.

Essa interpretação briga com a interpretação corrente do STJ. A interpretação do STJ, em inúmeros recursos especiais, é de que, não tendo ocorrido homologação expressa, o direito a pleitear a restituição só ocorrerá após o transcurso do prazo de cinco anos, contados da ocorrência do fato gerador, acrescido de mais cinco anos, contados da data em que se deu a homologação.

Então, na verdade, o que se tinha, segundo a jurisprudência do STJ, eram 5 anos mais 5, 10 anos. A partir da Lei Complementar 118 se daria uma redução do prazo, de 10 anos para 5 anos. Está claro isso? Os Srs. relembram bem isso? Relembraram? Tem gente que não relembrou...

Muito bem, o que aconteceu nesse RE 566.621? No dia 5.5.2010 um Ministro ficou no seu gabinete fazendo qualquer coisa extremamente urgente e chegou tarde à sessão, bem tarde. Quando ele chegou, inclusive não sabia se entrava ou não entrava, faltavam poucos minutos para a hora do lanche. Aí, quando o "cara" entra, o Presidente diz: "V. Exa., como vota?". [Risos na plateia] Estava cinco a quatro. [Risos na plateia] Estava cinco a quatro, o Min. Joaquim Barbosa estava licenciado, e aí esse "cara" que entrou falou: "Peço vista". Era eu... [Risos na plateia] Então, qual foi o voto que prevaleceu? Prevaleceu um voto que afastava a retroatividade por cinco a quatro. Estava naquele momento, como está hoje, afastada a retroatividade. Se esse "cara" que chegou votasse no sentido contrário, ficava cinco a cinco, porém isso seria apenas antecipação de uma tragédia que veio a ocorrer depois. Mas eu não vou ficar falando a respeito dessas coisas de cinco a cinco. [Risos na plateia]

Muito bem. Esse processo ficou, então, com pedido de vista, até que o tempo

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passou, com a graça de Deus. E no processo será dado um voto por quem suceder esse "cara". Mas eu agora posso até dizer como é que seria esse voto, porque não estou preso mais por absolutamente nenhuma reserva. O argumento refutado, por cinco a quatro, é o de que o art. 3o da lei complementar seria dotado do caráter de interpretação. Quer dizer, o art. 3o da Lei Complementar 118 interpreta o inciso I do art. 168 do CTN.

Por isso eu vou desenvolver essa minha exposição falando sobre a interpretação para tentar mostrar, ao final desta digressão, que é inteiramente insustentável, é inteiramente insustentável, a afirmação da retroatividade do que seria uma interpretação, mas que na verdade não é uma interpretação. Pois não é uma norma, é um texto. Então, me permitam entrar na segunda parte desta exposição. Depois retomarei o ponto principal.

Os arquétipos teóricos que constituem a base do raciocínio dos juristas não são mais adequados à compreensão, nem mesmo à explicação da realidade. Por isso, é extremamente doloroso para um jurista admitir que há uma distinção entre a elaboração de texto normativo e a construção, produção, de normas jurídicas. É extremamente difícil aceitar a ideia de que uma coisa é o texto e outra coisa é a norma.

Vou repetir algumas coisas que tenho dito sempre, me perdoem se os Srs. já tiveram a desventura de me ouvir antes, mas vou repeti-las. Cícero dizia no De Legibus que o magistrado é a lei falante. A lei, o magistrado mudo. O Judiciário, no quadro da separação dos Poderes, seria apenas a boca que pronuncia as palavras da lei; o magistrado não é mudo, mas só diz o que a lei diz, e, por isso, toda a sua ação se esgota na subsunção, não é? A ideia de que primeiro se compreende o que a lei disse, depois se aplica, faz-se a subsunção, pega-se aquele enunciado e se coloca sobre um fato. No extremo a ideia da subsunção levou quase à proibição da interpretação, e na França conduziu a um momento que me parece extremamente importante, o momento da criação do referée legislative. Quer dizer: se a matéria é complicada o juiz não decide, pergunta ao Legislativo o que deve dizer. Por isso, a Corte de Cassação é atachada, vinculada ao Poder Legislativo até hoje.

Esse modelo é ainda - me permitam acusar - o modelo que determina a visão que a maioria de nós, juristas, tem da interpretação do Direito. Interpretar seria sub-sumir, seria fazer subsunção. Mas hoje sabemos (alguns o sabem, nem todos), a partir da nova Hermenêutica, que texto normativo e norma não se identificam, que a norma é produzida pelo intérprete. O que é interpretação do Direito? Não é a mera reconstrução do pensamento do legislador. A interpretação é uma relação entre duas expressões, a primeira, que porta um significado e é o objeto da interpretação; a segunda, que é a interpretação e cumpre, em relação à primeira, o objeto da interpretação, a função de interpretante.

Por isso é um erro afirmar que vamos interpretar uma norma. Não, a norma é o resultado da interpretação. Eu interpreto o texto, o artigo 3o, do Código Civil, o artigo 237 do Código tal, o artigo 3o da Lei Complementar 118. Esse é o objeto da interpretação, o texto. E da interpretação do texto nasce a norma.

Vou tentar explicitar isso de um modo singelo. Os que estudam as Artes fazem...

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