O conceito de "atingido" por barragens - direitos humanos e cidadania/The concept of "affected people" by dams--human rights and citizenship.

AutorCorrea dos, Santos, Mariana

Introducao

Levando em consideracao que a pesquisa da sociedade nao e uma relacao de externalidade, que a relacao entre pesquisador e objeto de pesquisa e uma relacao em que o primeiro esta implicado no segundo, este artigo vem trazer sua proposta considerando que nao e possivel uma neutralidade cientifica sobre o estudo (NETTO, 2009), mas sim sua objetividade sobre o mesmo.

Assim, a concepcao abordada considera como referencia a definicao de Vainer (2008) para o conceito de "atingido" que vem sendo estudado, de que "a nocao de atingido diz respeito, de fato, ao reconhecimento, leia-se, legitimacao de direitos e de seus detentores". Para esse autor, "estabelecer que determinado grupo social, familia ou individuo e, ou foi, atingido por certo empreendimento significa reconhecer como legitimo--e em alguns casos como legal--seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenizacao, reabilitacao ou reparacao nao pecuinaria." (VAINER, 2008, p. 40).

O termo atingido e disputado em diferentes instancias: (i) no campo da afirmacao de direitos, do reconhecimento de violacoes, rebatendo sobre processos indenizatorios, (ii) no seio dos movimentos sociais como identidade politica coletiva e na disputa por contra-hegemonia na sociedade; (iii) no meio academico, na busca por sua afirmacao como conceito.

Para compreender como se constitui a disputa pela utilizacao do termo, foi necessario resgatar o processo historico de formacao, no contexto mais amplo do desenvolvimento do pais, do sujeito politico que o formula inicialmente, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB).

Considerando que no periodo de redemocratizacao politica, iniciado em final dos anos de 1970, permite a emergencia das primeiras reivindicacoes dos atingidos pelas grandes obras por reparacoes, a resposta do Estado passa a se materializar mais atraves de acoes indenizatorias, do que na perspectiva de construcao de direitos e de justica ambiental. E necessario considerar, entao, se a disputa pelo preenchimento da nocao de "atingido" por barragens representa elemento estrategico no processo de afirmacao de direitos humanos e de que forma isso se da.

Consolidacao das lutas e a construcao de uma percepcao de "atingido" atraves do Movimento de Atingidos por Barragens

Como a maioria dos novos movimentos sociais, o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) surge de lutas espontaneas e locais, como resposta a politica nacional de energia de matriz hidreletrica, que desalojava compulsoriamente os moradores de areas a serem atingidas ou com o alagamento do reservatorio, ou com a construcao da estrutura das barragens em si. Numa linha temporal clara, atraves da analise da construcao de usinas no Sul e no Norte do pais, e possivel ver a emergencia do Movimento dos Atingidos por Barragens surgindo do ja esgarcado tecido social entre agricultores atingidos e Estado.

Essa populacao atingida por investimentos do setor hidreletrico, o setor considerado como o mais importante para o desenvolvimento dos negocios e da economia brasileira, e tratada pelo poder dominante como "empecilho ao progresso e, via de regra, acuadas em locais mais desvalorizados e improprios ao trabalho" (BENINCA, 2011, p.94). A qualidade da terra que conseguem comprar ou para onde sao reassentados quase nunca tem as mesmas propriedades e qualidades que a terra anterior, que foi desocupada pelo empreendedor.

A perda da qualidade de vida na realidade da populacao atingida, que inclui a perda de qualidade ambiental, fez com que o MAB se aproximasse muito das demandas dos ambientalistas. As bandeiras do movimento, como agua e energia nao serem mercadorias, fortalecem a nocao de direitos nao somente no ambito dos direitos humanos, mas dos direitos ambientais. Sua principal bandeira, "agua para a vida e nao para a morte" ja ilustra essa proximidade de lutas.

Beninca (2011) identifica tres grandes momentos na trajetoria do MAB, com diferentes discursos e praticas de seus militantes. O primeiro momento vai de final dos anos 1970 a 1991 com a consolidacao do Movimento Nacional. Era um momento complexo, em que o pais vivia uma ditadura militar, e logo depois viveria a transicao para a democracia.

Durante essa fase de efervescencia das lutas por direitos, a postura central era de oposicao a construcao de barragens e o posicionamento politico adotado diante da impossibilidade de frear os projetos hidreletricos direcionava-se sobretudo na busca de "indenizacao justa" dos atingidos (BENINCA, 2011, p.106) No inicio dos anos de 1980, a reivindicacao e "terra por terra", buscando reassentamento em terras de qualidade similar as que seriam perdidas para o empreendimento, confrontando a estrategia das empresas de oferecer e pagar indenizacoes individuais aos agricultores atingidos para desarticular o movimento coletivo. Terra por terra presumia um impeditivo ao pagamento em dinheiro e tornou-se estrategia do movimento, principalmente relacionado as Usinas de Ita e Machadinho, no Rio Pelotas (RS/SC).

Um outro fator considerado favoravel aos atingidos, foi a exigencia dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e Relatorio de Impacto de Meio Ambiente (RIMA) (1), que teve como base a Lei Federal no 6.938/81, que instituiu a Politica Nacional de Meio Ambiente, regulamentada pelo Decreto Federal no 99.274/90, tornando-se uma exigencia dos orgaos ambientais brasileiros a partir da Resolucao CONAMA no001/86.

Com o fortalecimento do neoliberalismo, a classe trabalhadora viu-se obrigada a se ressituar em suas estrategias de organizacao e de luta. Particularmente, os atingidos por barragens encontraram forcas para se lancarem como Movimento nacional (1991), com o objetivo de se tornar massivo (BENINCA, 2011, p.107) O segundo momento identificado foi a do periodo entre os anos de 1991 e 2002, onze anos em que o MAB expandiu suas bases de atuacao e suas relacoes com movimentos sociais nacionais e internacionais, inclusive com a Comissao Mundial de Barragens (World Commission on Dams).

Com o avanco do neoliberalismo, o Movimento passa a questionar o modelo energetico vigente e a buscar fontes alternativas de energia, ampliando o debate sobre o meio ambiente e sobre os empreendimentos hidreletricos capitalistas (BENINCA, 2011). Com as privatizacoes do setor energetico da decada de 1990, e preciso repensar as estrategias de luta. Alem de reivindicar indenizacoes justas e lutar contra as barragens, era preciso pensar nesse novo personagem que surgia no cenario: a empresa privada. Mas, com sua nova condicao de Movimento Nacional, ele ampliou suas articulacoes politicas, e torna sua pauta de lutas mais abrangente, mais inclusiva de interesses e demandas de outros setores populares.

Com o apoio de diversas entidades foi realizado em marco de 1997 o 1 Encontro Internacional dos Povos Atingidos por Barragens, na cidade de Curitiba (PR). O Encontro Internacional contou com a participacao de atingidos por barragens e organizacoes de apoio de 20 paises. Durante o encontro, atingidos por barragens da Asia, America, Africa e Europa compartilharam as suas experiencias de lutas e conquistas, denunciaram e discutiram as politicas energeticas, a luta contra as barragens em escala internacional, bem como, formas de defender os direitos das familias atingidas e o fortalecimento internacional do Movimento. Do encontro, resultou a Declaracao de Curitiba, que unifica as lutas internacionais e institui o Dia 14 de Marco, como o Dia Internacional de Luta Contra as Barragens (MAB, 2011).

Devido a pressao e articulacao dos movimentos de atingidos por barragens de todo o mundo, foi criada em 1997, na Suica, a Comissao Mundial de Barragens (CMB), ligada ao Banco Mundial e com a participacao de representantes de ONGs, Movimentos de Atingidos, empresas construtoras de barragens, entidades de financiamento e governos. A Comissao Mundial de Barragens levantou e propos solucoes e alternativas, para os problemas causados pelas construtoras de barragens em nivel mundial. Deste debate, que durou aproximadamente tres anos, resultou no relatorio final da CMB, que mostra os problemas causados pelas barragens e aponta um novo modelo para tomada de decisoes.

O IV Congresso Nacional do MAB aconteceu em novembro de 1999, em Minas Gerais, onde foi reafirmado pelo movimento a luta contra o modelo capitalista neoliberal e a busca por um Projeto Popular para o Brasil que inclua um novo modelo energetico. O metodo de organizacao de base do MAB foi mantido, permanecendo atraves dos grupos de base, instancia de organizacao, multiplicacao das informacoes e resistencia ao modelo capitalista.

O terceiro momento elencado por Beninca (2011) comeca em 2002 e segue ate os dias de hoje, com um reposicionamento do MAB na busca por uma democracia representativa. Integra-se a Assembleia Popular Nacional, em 2005, exatamente com o objetivo de discutir um projeto popular para o Brasil.

Com a eleicao de Luis Inacio Lula da Silva em 2002, um candidato do Partido dos Trabalhadores, conhecido por sua militancia como sindicalista, o MAB sente uma certa esperanca de conseguir a construcao de um projeto mais progressista que levasse em conta as necessidades do povo. Entretanto, no governo Lula, atraves do Programa de Aceleracao do Crescimento (PAC), diversos projetos de mega-usinas, engavetados desde a ditadura, foram retomados em nome do "progresso e soberania nacional".

Em junho de 2003, aconteceu o 1 Encontro Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens, em Brasilia, no qual se reafirmou a luta popular como o unico instrumento capaz de obter conquistas concretas para o povo. No ano seguinte, o movimento realizou a Marcha Nacional "Aguas pela Vida", que percorreu o trecho de Goiania a Brasilia, para exigir do governo federal o cumprimento dos direitos dos atingidos. Essa marcha contou com a participacao de atingidos por barragens, pequenos agricultores, sem terra, indios, pescadores, ribeirinhos e quilombolas (SCHERRER-WARREN & REIS in, ROTHMAN, 2008, p.76).

Com o avanco do capital...

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