Incentivos fiscais concedidos por Lei e revogados por Resolução Ilegalidade e Inconstitucionalidade - inteligência da Resolução Normativa da ANEEL 234/2006, da Lei 5.655/1971 e da MP 2.199-14/2001 - incentivos para desenvolvimento regional ou setorial objetivam beneficiar o investidor diretamente e só indiretamente o consumidor pela criação de serviço antes inexistente - parecer

AutorIves Gandra da Silva Martins
CargoProfessor Emérito da Universidade Mackenzie, em cuja Faculdade de Direito foi Titular de Direito Constitucional
Páginas38-54

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Consulta

Formula-me a Consulente, Consulta complementar àquela já respondida por mim e por minha sócia Fátima Fernandes Rodrigues de Souza, em dezembro de 2010, e cuja ementa foi:

Incentivo fiscal regional. Art. 1° da MP n. 2.199-14, na redação que lhe deu a Lei 11.196/2005. Redução de tributos sobre a renda. Finalidade de fomento às pessoas jurídicas que promovessem investimentos no setor de distribuição de energia elétrica nas regiões da Sudene e SUDAM. Nota Técnica n. 262/2010/SRE/Aneel que prevê a captura da redução de tributos em prol da modicidade da tarifa. Administrador público que pretende substituir-se ao legislador e ao constituinte. Desvirtuamento do incentivo fiscal legalmente instituído. Inconstitucionalidade por violação aos arts. 3o, III, 37 (princípios da legalidade, eficiência e moralidade) e 43 da CF. Ofensa ao art. 178 do CTN e ao art. 5o, XXXVI, da CF. Violação ao art. 9o, § 3o, da Lei 8.789/1995-Parecer.

Está consubstanciada nos seguintes quesitos:

"a) Pode Aneel, por meio de Resolução, caracterizar o incentivo fiscal Sudene como um aporte de recursos do governo federal, em investimentos na concessão, de forma que, pelas regras setoriais, esse incentivo seja deduzido da Base de Remuneração Regulatória - BRR (RN Normativa Aneel 234/2006), eliminando tanto a re-

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muneração sobre os investimentos realizados com o valor dos incentivos fiscais, quanto a recuperação desse investimento por meio da depreciação?

"b) Caso a resposta seja negativa, poderia a Lei 5.655/1971, específica do setor elétrico, que trata inclusive do Investimento Remunerável (BRR), ter sua redação alterada no sentido de estabelecer que o valor dos incentivos fiscais, previstos no art. 1o da MP 2.199-14/2001, seja excluído para fins de determinação do 'Investimento Remunerável' (BRR), anulando o benefício financeiro concedido por uma Lei tributária?

"c) Caso a resposta anterior seja positiva, a exclusão dos incentivos fiscais, do 'Investimento Remunerável' (BRR), poderia ser extensiva aos valores de incentivos fiscais constituídos antes da edição da nova Lei ouMPque altere a redação da Lei 5.655/ 1971?

"d) Considerando que, antes de se constituir a Reserva de Lucros - Incentivos Fiscais, prevista no art. 195-A da Lei 6.404/1976, o valor do incentivo fiscal Su-dene será contabilizado como Receita, poderia a Aneel capturar parte ou integralmente o correspondente valor para repassá-lo como redução no momento do cálculo da tarifária a ser homologada, sem qualquer alteração da legislação aplicável?"

Resposta

Reitero, no presente Parecer, todas as respostas ofertadas na Consulta anterior, que, de certa forma, contém implícitas as respostas para as indagações ora formuladas.1

Procurarei examinar, todavia, os possíveis questionamentos da Aneel na busca

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de alteração de incentivos fiscais concedidos e que, após sua concessão, são de impossível modificação por força do art. 178 do CTN, por se constituírem incentivos onerosos.2

A própria Súmula 544 do Supremo Tribunal Federal, que assim dispõe, "Isenções tributárias concedidas - Condição onerosa - Liberdade de supressão. Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas",3 é considerada em vigor, mesmo após a LC n. 24/1975, pela maioria esmagadora da doutrina.

Tecerei, todavia, breves considerações sobre a política de incentivos fiscais juridicizados no Brasil e os princípios constitucionais e de legislação comple-mentar explicativa, que regem a matéria, para só depois responder às questões formuladas pela entidade Consulente.

Muito antes da sistematização do direito tributário no País, isto é, quando ainda se tinha um complexo de leis não organicamente conformado, nada obstante as Constituições anteriores a 1967 terem cuidado de aspectos fiscais, a extrafiscalidade já era objeto de reflexão pelos especialistas, então em Finanças Públicas. Refiro--me à época em que se discutia, inclusive, se haveria ou não autonomia do direito tributário em relação ao direito financeiro, no qual estavam seus estudos inseridos.4

Sendo o tributo o mais relevante instrumento das receitas públicas - que, como Aliomar acentua, supera as receitas de exploração própria, financeiras, indenizató-rias, confiscatórias ou de qualquer outra natureza -, nitidamente, tem como objeti-

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vo viabilizar o Estado prestador de serviços públicos, mas também a função, não menos relevante de estimular o desenvolvimento econômico e a justiça social. Vale dizer, mediante a utilização de variada gama instrumental, pode o Estado desde reduzir a tributação, até conceder incentivos fiscais, com objetivos determinados.

Em outras palavras, como inúmeros especialistas nacionais e estrangeiros afirmaram, mais do que a mera arrecadação para sustentar o Estado prestador, os objetivos de justiça tributária, desenvolvimento econômico e social deveriam ser a meta primeira de uma correta política tributária. É que, se crescer o desenvolvimento econômico e a justiça social, o aumento da arrecadação será consequência natural. Entre estes estudos destaca-se o relatório da Royal Commission on Taxation of Canadá, na década de 60 do século passado.5

A extrafiscalidade, pois e ainda em período no qual o direito tributário era par-

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te do direito financeiro, merecera estudos brasileiros, na linha dos escritos dos melhores especialistas estrangeiros, que viam, nos incentivos, fantástico instrumento de adequada política tributária para obter ambos os objetivos (justiça social e desenvolvimento econômico).6

Ora, a partir da sistematização do direito tributário brasileiro, após a EC n. 18/ 1965 e a Lei 5.172/1966 (CTN) - que ganhou forças de lei complementar com a Constituição de 1967, pelo princípio da recepção - a matéria comportou, inclusive, tratamento separado (arts. 175 a 182 do CTN, Livro II, Título III, Capítulo V, Se-ções I, II e III), embora mais dedicado à principal forma de estímulo, que é a isenção.7

Mais do que isto, a Constituição de 1988 claramente hospedou -já com definição doutrinária, legal e jurisprudencial -o direito tributário como ramo autônomo do direito, explicitando, por outro lado, que a política de incentivos fiscais é alicerce para o desenvolvimento, como se vê, por exemplo, no art. 151, inciso I ou 155, § 2°, inciso XII, letra "g", assim redigidos:

"Art. 151. É vedado à União:

"I - instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País; (...)."8

"Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (redação dada pela Emenda Constitucional n. 3, de 1993)

"(...);

"II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e inter-municipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (redação dada pela Emenda Constitucional n. 3, de 1993)

"(•••)•

"§ 2o. O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: (redação dada pela Emenda Constitucional n. 3, de 1993)

"(...);

XII - cabe à lei complementar:

"(...);

"g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados" (grifos meus).

Em outras palavras, toda a política tributária não objetiva apenas obter recursos para o Estado prestador de serviços e mantenedor dos detentores do poder, mas também servir de instrumento de justiça social e desenvolvimento econômico.9

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Ora, a política de incentivos fiscais tem uma finalidade clara: levar a sociedade a interessar-se pela prática de ações, que, sem eles, poderiam jamais despertar o seu interesse.

As próprias imunidades constitucionais, nitidamente, têm por escopo estimular a comunidade a atuar principalmente na educação e assistência social, suprindo a ação do Estado, que não faz o que deveria fazer, com nossos tributos. Assim, para estimular que a sociedade atue nessas áreas, a Constituição veda que essas atividades sejam objeto da tributação, mediante impostos e contribuições sociais, como contrapartida ao trabalho realizado pelos cidadãos.10

De rigor, essas desonerações representam uma pequena contrapartida, visto que o que os hospitais, estabelecimentos de ensino ou órgão de assistência social de iniciativa privada fazem, supera, de muito, a participação governamental nas respectivas áreas. Isso levou o constituinte de 1988 - como assim já tinham procedido os anteriores - a criar a proibição ao poder de tributar, para evitar veleidades exegéticas dos governos, na tentativa de reduzir sua contrapartida pelo amesquinhamento das garantias constitucionais.

Para o desenvolvimento econômico, todavia, não está o País perante determinações absolutas do legislador supremo, que interditem as atividades dessa natureza da presença impositiva do Estado, a não ser na hipótese do art. 40 do ADCT. Tornam, porém, dependente, tal desiderato de política concessiva de incentivos por parte daqueles que, tendo o poder de tributar, deixem de fazê-lo, afim de atrair investidores e segmentos da sociedade para suprir o que o Estado deveria fazer com os nossos tributos e não o faz.

O espírito é, portanto, permitir aos governos a adoção de políticas desonerativas estimuladoras, semelhantes à imunidade. Só que o ato de desonerar é ponderado à luz de conveniência e oportunidade política ou social para atração de investimentos na área escolhida, e não decorrente de vedação constitucional ao pode de tributar.

E, neste campo dos estímulos, insere--se uma gama variada de formas de atuação do Estado para atrair interessados em desenvolvimentos setoriais, regionais ou nacionais.11

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No estímulo fiscal, há sempre duas facetas...

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