A compatibilidade latinoamericana do MERCOSUL

AutorPaulo Emílio Vauthier Borges de Macedo
Páginas451 - 483

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Palavras-Chave

Mercosul; compatibilidade; ALADI.

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Abstract

This work seeks to analyze the compatibility of the Asuncion Treaty with prior legislation on regional integration and foreign trade in Latin America. Compatibility refers to the application of the rules of treaty accumulation/ succession of the Vienna Convention on the Law of Treaties. Hence, this article opposes the Asuncion Treaty with the Brazil-Argentina Bilateral Agreements and the Montevideo Treaty of 1980, which created the LAAI. This analysis will be useful for determining which legislation prior to the South Cone Market has been modified and which is still in force.

Key Words

Mercosul; Compatibily; ALADI.

1. Introdução

O propósito do presente trabalho é o de verificar a compatibilidade do Tratado de Assunção com as regulamentações latinoamericanas pertinentes. Quando este tratado entrou em vigor, havia uma série de normas que incidiam sobre os mesmos conteúdos, ou, ainda, sobre matérias relacionadas. Procura determinarse, pois, o que o Tratado de Assunção modificou, o que restou intocado, e de que forma ocorrem as relações entre esse tratado e essas normativas.

Compatibilidade jurídica significa a coexistência simultânea de duas normas ou ordenamentos. Não é uma expressão técnica, mas se faz mister precisar a que se refere. Salientar a compatibilidade de duas disposições é dizer que estas duas medidas são válidas ao mesmo tempo e que, além disso, podem ser aplicadas em conjunto. Existem, pois, duas dimensões: uma de validade e outra de eficácia.

A primeira seção aborda o que pode ser vulgarmente chamado de a “compatibilidade do Tratado de Assunção com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados”. De fato, esses termos não são apropriados. Considerase a Convenção de Viena uma “metanorma” do Direito Internacional que regula, de modo parcial, o regime aplicável a uma de suas fontes: o tratado. Argüir a nulidade de um tratado não é o mesmo que afirmar que ele não observa a Convenção de Viena, pois ela própria é que define as nulidades. Na eventualidade de não se circunscrever aos preceitos da Convenção – mesmo as disposições referentes a nulidades –,Page 453um tratado não é válido ou inválido; simplesmente, não é um tratado (ou é oral). O que se busca nesta primeira seção é compreender melhor a natureza mesma do Tratado de Assunção.

A segunda seção descreve, de forma breve e ilustrativa, os princípios gerais sobre cumulação e sucessão de tratados. Quando há a interpenetração de sucessivos tratados, ocorre o fenômeno da cumulação, e a analogia com o direito interno serve apenas para confundir o intérprete, mais do que esclarecer. Por isso, fazse necessário averiguar as regras próprias do Direito Internacional sobre o assunto. As duas primeiras seções devem ser entendidas em conjunto, como preliminares às demais partes deste texto.

A seguir, iniciase o propósito específico deste trabalho: procedese ao exame de compatibilidade entre o Tratado de Assunção e os Acordos Bilaterais Brasil-Argentina anteriores a ele. A partir da década de 1980, os dois maiores países do cone sul deixaram de lado as desavenças e formalizaram acordos comerciais de cooperação e, até mesmo, de integração. Depois, Uruguai e Paraguai juntaramse aos dois e celebraram o Tratado de Assunção. Entretanto, os compromissos bilaterais não foram denunciados.

Por fim, propõese a analisar as relações entre o Tratado de Assunção e o Tratado de Montevidéu de 1980, que criou a Associação Latino-Americana de Integração. De modo diverso ao que dispunha sua antecessora ALALC, a ALADI apresentase como uma organização bem mais flexível, que comporta diferentes maneiras de atingir seu objetivo final, que é a integração latinoamericana. O Mercosul revelase uma dessas formas, e a relação que se estabelece entre ambas organizações é de gênero e espécie. A tarefa aqui é, portanto, dupla: de um lado, é necessário determinar se o Tratado de Assunção observou os requisitos que o Tratado de Montevidéu de 1980 impõe à sua modalidade; de outro, o intérprete deve aferir a existência de mecanismos no Tratado de Assunção que assegurem sua autonomia face ao tratado constitutivo da ALADI.

2. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados

O primeiro documento a ser verificada a sua compatibilidade com o TA é a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969. A convenção, em vigor desde 27 de janeiro de 1980, foi ratificada pela Argentina, em 5 de dezembro de 1972, pelo Paraguai, emPage 4543 de fevereiro do mesmo ano, e pelo Uruguai, em 5 de março de 1982, mas não foi ratificada pelo Brasil. Ela foi assinada por este País em 23 de maio de 1969, no dia em que a convenção foi aberta à assinatura, foi encaminhada ao Congresso Nacional, em 20 de abril de 1992, e aprovada 3 anos depois pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional; porém, até o momento, não obteve confirmação parlamentar. Ainda assim, a convenção é válida até mesmo para o Brasil, pois ela representa o trabalho final de codificação de um costume universal préexistente, realizado pela Comissão de Direito Internacional da Assembléia Geral da ONU na sua tarefa de codificar e promover o desenvolvimento do Direito Internacional. O costume continua a existir, e a referida convenção nada mais é do que seu jus scriptum e constitui uma verdadeira metanorma na regulação de tratados.

Ademais, a Convenção de Viena de 1969 não estipula nenhuma obrigação substancial, à exceção da inviolabilidade do jus cogens. Mesmo assim, deixa aberto o rol de comportamentos que possam ser considerados normas imperativas de Direito Internacional. Dessa forma, o trabalho de análise da compatibilidade do TA com a CV está vinculado a elementos meramente formais, os quais serão muito úteis também em outra seção, quando for aferida a permanência de obrigações assumidas em tratados bilaterais Brasil-Argentina anteriores ao TA. Além disso, o cotejo com a CV permite compreender melhor o próprio TA.

O TA regula sua própria vigência no art. 19. Ele entrou em vigor “30 dias após a data do depósito do terceiro instrumento de ratificação”, perante o Governo da República do Paraguai, o que ocorreu em 29 de novembro de 1991. O modo pelo qual os quatro países escolheram para manifestar o seu consentimento em se obrigar pelo TA encontrase previsto no art. 16 da CV.

O mesmo art. 19 do TA prescreve sua duração indefinida. É, pois, um tratado definitivo. O fato de estabelecer um período de transição (da data de entrada em vigor até 31 de dezembro de 1994) em nada afeta essa característica. A fixação deste período significa que o tratado é “destinado essencialmente a reger o período dito transitório [...] e deverá ser completado, progressivamente, por acordos e protocolos adicionais até que seu texto original se torne automaticamente inoperante.”1 O TA não regula uma data para a sua extinção; no entanto, constituise num “quadro jurídico” no qual obrigações posteriores deverão serPage 455contraídas. Tratados posteriores, ainda que possam entrar em conflito com algumas disposições do TA, não irão propriamente revogálo, mas deverão aperfeiçoar as relações existentes entre os quatro países para melhor atingir os fins – aqueles do mercado comum – que o tratado original, o TA, se propõe.

Todavia, não se deve depreender do que foi dito acima que o TA seria um “tratadoquadro”. Ele seria melhor classificado como um umbrella treaty: uma convenção ampla, de grandes linhas normativas, sob cuja égide outros tratados são celebrados em complementação a seus dispositivos ou com objetivos próprios permitidos pela convenção. São exemplos de tratados guardachuva o Tratado da Antártica de 1959, o Acordo de Marrakesh de 1994 e o Tratado de Montevidéu de 1980. Já as framework conventions, ou tratadosquadro, são espécies novas de tratados multilaterais, bastante genéricas, surgidas na década de 1960, no âmbito do Direito Internacional do Meio Ambiente, com o fito de manter o regime jurídico que disciplinam atualizado, a despeito dos avanços da ciência e da tecnologia, sem precisar recorrer aos procedimentos lentos e solenes de emendas e modificações. Um exemplo seria a Convenção- Quadro das Nações Unidas sobre Modificação do Clima, adotada durante a ECO-92.2

Alguns autores3 invocam o texto do art. 10 da CV para ilustrar o caráter de permanência do TA:

O texto de um tratado é considerado autêntico e definitivo definitivo:

  1. mediante o processo previsto no texto do tratado ou acordado pelos Estados que participam de sua elaboração;

  2. na ausência de tal processo, pela assinatura, assinatura ad referendum ou rubrica, pelos representantes desses Estados, do texto do tratado ou da ata final da conferência que incorpora o referido texto. (grifo nosso).

Embora a posição que defendam seja acertada, o meio utilizado não é adequado. O referido artigo não introduz uma nova classificação de tratado – o tratado definitivo –, mas tãosomente versa sobre a autenticidade do texto de um tratado.4 O TA é, portanto, um tratado multilateral normativo, guardachuva, que institui uma organização internacional5 (fato que, em razão do art. 5º, não afasta a aplicabilidade da CV).

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O TA não incide em nenhum dos vícios do consentimento previstos na CV (arts. 48 a 52), e tampouco atenta contra uma norma de jus cogens (art.53). Não incide em nulidade. Cumpre salientar que, à semelhança dos casos de nulidade por inobservância de jus cogens, expressamente previsto na CV, ocorre ainda uma espécie de nulidade substancial quando um tratado tem precedência absoluta. De fato, o termo mais apropriado seria “revogação”. É o que prevê o art. 103 da Carta da ONU em relação à própria Carta: “No...

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