Comércio informal em tempo de festas

AutorJulie Sarah Lourau-Silva
CargoAntropóloga, Pós-Doc no Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Violências, Democracia, Controle Social e Cidadania (NEVIDE), no PPG de Políticas Sociais e Cidadania, Universidade Católica do Salvador. Email: juliesarahba@gmail.com
Páginas74-92
Comércio informal em tempo de festas
Caderno s do CEAS, Salvador, n. 235, p. 74-92, 2015 74
COMÉRCIO INFORMAL EM TEMPO DE FESTAS
Informal commerce at party time
Resumo
O Artigo relata os resultados de uma pesquisa etnográfica do
comércio informal das festas populares e do carnaval de
Salvador (Bahia, Brasil), a qual examinou os conceitos de
formalidade/informalidade (do ponto de vista legal) e
tolerância/intolerância (do ponto de vista moral). As festas
populares, ditas “festas de largo”, e o carnaval diferenciam-se
nitidamente, tanto no plano simbólico quanto no plano legal. Se
as primeiras são o reflexo da velha Bahia, o segundo representa
a modernidade e destaca-se como motor econômico do turismo
baiano. Tendo em vista esses contextos específicos e opostos
dos pontos de vista simbólico e econômico, são analisadas as
distintas legislações do comércio informal, no âmbito das festas
populares e do carnaval e a ação dos agentes públicos, na
fiscalização desses distintos campos, entre 2007 e 2012.
Finalmente, discute-se como o conceito de região moral, que
tem demonstrado possuir poder analítico no campo da
Antropologia Urbana, mostra-se produtivo, no tratamento do
comércio informal, revelando as hierarquias morais da cidade.
Palavras-chave: Comércio informal. Festas. Região moral.
INTRODUÇÃO
Tomando em conta que o contexto festivo pode ser considerado como um espaço-
tempo particular, acreditamos ser interessante observar qual a aceitação que nele tem o
comércio informal. Sempre objeto de reformulação por parte dos poderes públicos em nome
da ordem e da organização da cidade, a questão do comércio informal passa a impressão que
nunca será resolvida. O carnaval, considerado como a festa que encerra o ciclo das festas
populares de Salvador, capital do estado da Bahia (Brasil), é hoje uma “megafesta” cujas
regras seguem uma lógica particular. As festas populares sincréticas, seguindo o ciclo de
festividades católicas, celebrando os santos1 de dezembro a fevereiro, ao contrário, são hoje
desqualificadas e frequentemente associadas à decadência da região da cidade em que elas
estão inseridas (o antigo centro e bairros tradicionais) e marcadas pelos qualificativos de
violência, marginalidade, sujeira e falta de organização pela mídia e pelos moradores da
1 No sincretismo, cada santo católico é associado a uma divindade do candomblé. Assim, quando se festeja
Santa Bárbara na igreja, os adeptos do candomblé estão fazendo uma homenagem a Iansã, etc.
Julie Sarah Lourau-Silva
Antropóloga, Pós-Doc no Núcleo de
Estudos e Pesquisas
Interdisciplinares em Violências,
Democracia, Controle Social e
Cidadania (NEVIDE), no PPG de
Políticas Sociais e Cidadania,
Universidade Católica do Salvador.
Email: juliesarahba@gmail.com
Comércio informal em tempo de festas
Caderno s do CEAS, Salvador, n. 235, p. 74-92, 2015 75
cidade de Salvador. Poucos são os que ainda vão celebrar o santo católico ou o orixá do
candomblé a ele associado no sincretismo religioso que marca a história das festas populares
da cidade. Assim, na maioria dos casos, hoje as festas ocorrem em zonas abandonadas do
centro da cidade ou em bairros populares antigos, ficando reservadas para as populações que
vivem nos arredores
1.
Porém um segmento da população defende as festas populares em nome de uma
tradição: os “barraqueiros (as) das festas populares”. Organizados em um sindicato e em uma
associação, relembram o tempo em que trabalhavam com orgulho e prosperidade nas festas
populares de Salvador. Tanto estes barraqueiros quanto os trabalhadores de rua são
categorizados de “comércio informal” pelos poderes públicos. Vítimas de perseguição por
parte desses poderes, sofrem restrições impostas, sobretudo, pelas normas de padronização em
geral, principalmente quando se trata do carnaval, principal foco das mídias e dos interesses
ligados ao setor de turismo. Contra a ideia de que o baiano é preguiçoso, pelo fato de a Bahia
estar em estado de festa permanente, afirmamos junto com Zanlorenzi (2003) que a economia
festiva é uma fonte de renda importante para os baianos, que, em muitos casos, trabalham na
festa enquanto os turistas desfrutam, brincam e pulam o carnaval, por exemplo.
O CONCEITO DE “REGIÃO MORAL”
Para definir o conceito de região moral, vamos-nos referir a Agier (2009). Ele
explica o recorte «regional» que já foi usado pela Escola de Chicago e pela antropologia
urbana (HANNERZ, 1983) da forma seguinte:
[...] O ponto de vista “regional” ganharia, me parece, se fosse aplicado a qualquer
espaço, sem preconceito de limite ou escada. Poderíamos assim registrar a maneira
em que um lugar está sen do definido por qualquer tipo de ato r urbano (do
planificador ao morador de beco). Este sentido do lugar pressupõe a cidade toda
como contexto de referência. Ele corresponde a uma cartografia ima ginária dos
cidadãos que vivem em uma certa parte da cidade mas que tem pelo menos alguma
ideia, imagem ou experiência das outras partes da cidade2. (AGIER, 2009, p.36,
tradução nossa).
1 Com exceção de algumas festas que fazem mais sucesso e trazem turistas e moradores de outros bairros, como
no caso da festa do Nosso Senhor do Bonfim ou Iemanjá.
2 «[…] le point de vue « régional » gagnerait, il me se mble à être appliqué à tout espace sans a priori de li mite ou
qu’ils soient (du pl anificateur à l’habitant d’un fond de ruelle). Ce sens du lieu suppose la ville entière comme
d’échelle. On s’autoriserait ainsi à enregistrer la manière dont un lieu est d éfini par les acteurs urbains quels
contexte de référence. Il correspond à une cartographie i maginaire des citadins qui vivent dans certaines parties
de la ville tout en ayant sur les autres espaces au moins quelques expériences, idées ou images ».

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