Coloniality, subalternity and narratives of resistance in an afro-ecuadorian community/Colonialidade, subalternidade e narrativas de resistencia numa comunidade afro-equatoriana.

AutorFerreira, J. Flavio

> (Silvia Rivera Cusicanqui. 'Oprimidos pero no Vencidos'; [1984] 2010: 29).

  1. Introducao (1)

    Em que lugar encontram-se os afro-equatorianos na sociedade em geral? Esta e uma "pergunta simples"--mas nao simplista!--que dirige o espirito deste trabalho. Porquanto aparentemente abstrata, por vezes vale a pena pensar que a construcao de um saber bem-localizado tem inicio num recuo para apreciar-se uma problematica inserida no seu panorama como um todo; abrindo-se mao, portanto, de um vanguardismo apetrechado de recursos teoricos para aceder aos fatos e aos seus atores.

    Nao e facil, paradoxalmente, responder a esta "pergunta simples". Ocorre que, ate certo ponto, ela resvala na "violencia estrutural", diria Paul Farmer (2004), que acomete as populacoes negras e amerindias nas Americas, as quais constituem a base da escala societal em termos de insercao social, representacao politica, estrutura economica, distribuicao de renda, saude e capital educacional. Em outras palavras: na "violencia estrutural" que engendra mecanismos continuados de hierarquizacao societal, os quais redundam, direta ou indiretamente, numa "economia moral da opressao" contra extratos especificos de uma sociedade (: 307). Trata-se de um ethos deixado pelo passado colonial e perpetrado pela > (Quijano, 2010) do Estado-Nacao e da sua conivencia, nos nossos tempos, com a franca expansao das mares neoliberais do sec. XXI.

    Como afirma John Anton, muito embora representem entre 20% a 30% da populacao latinoamericana, os afrodescendentes

    en muchos paises son tratados como minorias, aunque tal vez no lo sean, y por tanto no son tenidos en cuenta como actores sociales relevantes en las dinamicas socioeconomicas, situacion que permite profundizar su condicion de excluidos historicos y por tanto relegados de las politicas sociales (2005:04).

    De fato, mesmo considerando-se que o artigo de Anton data de 2005 e que, portanto, ha um defasamento com os dados mais atuais, a subrepresentacao negra pelas Instituicoes governamentais latinoamericanas [A.L.] e gritante. Nestes termos, explica-se a grande variacao das projecoes acerca da populacao negra na A.L. Somente no Brasil, os dados mais recentes apontam para cerca de 100 milhoes de pessoas que se autodeclaram como "negras" e/ou "pardas" [categorias governamentais de referencia a populacao afrodescendente].

    No caso do Equador, o > (2001) revelou dados alarmantes sobre as condicoes de vida desse grupo: o nivel de pobreza dos negros e o segundo maior do pais [atras da conhecida precariedade acusada nos indices de referencia dos povos indigenas]. A taxa de analfabetismo e de 10,3%, acima da media nacional de 9%; o grau de escolaridade e de 6,1 anos, enquanto a media nacional e de 7,2 anos e a media da populacao "branca" e de 9,2 anos; os afro-equatorianos possuem o nivel mais elevado de desemprego, ascendendo a 12%, um percentual acima do das populacoes "brancas", "mesticas" e "indigenas"; 80% da populacao negra encontra-se totalmente desprotegida de qualquer assistencia medica (Anton, 2005).

    Os afro-equatorianos padecem, portanto, dos piores indices de pobreza, distribuicao educacional e de situacao laboral que a historia do Equador, a imagem de tantas convergencias com os seus paises vizinhos, conseguiu produzir: um processo historico de negacao, racismo [social e Institucional] e de exclusao "incubados en la sociedad colonial esclavista y sostenidas luego en la Republica y vigentes aun en la sociedad moderna" (Anton, 2007: 163).

    Esta historia tem o seu ponto alto no colonialismo, com a leva de populacoes negras para o trabalho escravo nas Americas que, embora tenhase dado de forma colossal nos EUA, Brasil e Caribe, foi expressiva nos paises Andinos, como o Equador. (2)

    Nao a toa, Boaventura de Sousa Santos (2010) trata o que chamamos aqui de Sul Global como a metafora do sofrimento e da espoliacao historica a que negros e amerindios, a titulo de tantas outras populacoes de zonas excoloniais/Imperiais, foram submetidos: uma metafora que transcende o plano da abstracao e que concretiza-se por uma "fenomenologia da morte e da precariedade", acrescentaria Farmer (2004), esculpida desde a apropriacao do territorio, passando pela subjugacao dos povos negros traficados de Africa e amerindios a sombra das economias escravocratas e, talvez o mais grave, na sedimentacao da > [no sentido saidiano de representacao e de alteridade (cf. Said, 1994)] de que as suas culturas e epistemologias em nada serviriam a construcao da modernidade e da Nacao.

    Bem pelo contrario, tanto as posicoes politicas dos povos outrora escravizados foram pintadas como essencialmente desnecessarias como as suas epistemologias (3) seriam, salvo seja, tornadas irrelevantes a interpretacao do mundo. (4)

    Maria Paula Meneses (2014) acresce a perspectiva boaventuriana sobre os efeitos do colonialismo/Imperialismo no Sul Global a desconstrucao do processo tentacular e radical de diferenciacao que a colonialidade mantem sob formas contemporaneas do exercicio do poder. Boaventura reforca a importancia de que os povos subalternizados possam tambem "experimentar o mundo como seu" (cf. Santos, 2014) e, logo, que gestem condicoes contracorrentes de apossar-se dele e dos seus rumos, de sentir que dele fazem "parte ativa" e que nao mais ocupam, por assim dizer, um papel invisibilizado a cargo das historicidades subalternas que lhes foram amalgamadas face a uma Historia Universal que os exclui e periferiza. Meneses, por sua vez, dilucida que o conhecimento > (Meneses, 2014: 98). Reconhecer que estas formas de estar e de ser sublevamse por um sistema estabelecido da opressao significa, pois, acima de tudo um posicionamento voltado a >. Sem a >, nao poderemos falar plenamente de emancipacao para alem da hierarquia social ou do mundo das representacoes:

    O contraste entre um discurso hegemonico liberal e praticas economicas cada vez mais heterodoxas, associadas a lutas contra o neoliberalismo, anuncia um questionamento crescente as perspectivas economicas hegemonicas como consequencia da colonialidade do poder. Ao questionar o lugar de poder dos projetos neoliberais, apela-se explicitamente a uma reflexao substantiva das historias subalternas geradas pela imposicao da economia moderna, assumindo, numa perspectiva de justica cognitiva, o reforco de outras experiencias e reflexoes, subalternizadas e marginalizadas porque consideradas impuras ou atrasadas (idem).

    O presente trabalho emerge, pois, da pergunta inicialmente lancada, a qual coloca em relevo realidades concretas e sujeitos/protagonistas imersos em um contexto historico, social e politico que desde o periodo colonial os tem obrigado a ser "os ultimos outros" da Nacao. Como sugere Catherine Walsh, e fundamental perceber-se como a hierarquia social no Equador > (2012b: 17).

    Tal hierarquia, no entanto, longe de espelhar apenas uma ordenacao interessada da sociedade, da economia e dos privilegios das elites no seio do mundo politico e da exclusividade de direitos face a objetificacao dos negros e amerindios reflete, sobremaneira, uma classificacao nao meramente racializada da sociedade, mas fundamentalmente epistemologica: uma divisao pretensiosamente total de que enquanto as elites espelham os rumos da civilizacao, a "negritude" [assim como a indigeneidade] parodiava o arcaismo ou um estagio ultrapassado da humanidade.

    Fundamentado numa pesquisa empirica realizada ao longo do ano de 2015, este trabalho debruca-se sobre um estudo de caso envolvendo a luta de uma comunidade negra no norte do Equador--autodenominada La Chiquita pelo direito de permanecer no territorio que ocupa ancestralmente.

    O estudo parte, antes de tudo, da pluralidade de vozes dos moradores desta comunidade, cuja historia de luta e resistencia denuncia a condicao de subalternidade em que estao forcados a viver face a ausencia do Estado e das Instituicoes, bem como os consequentes danos ambientais causados em seus territorios por projetos extrativistas, notadamente aqueles praticados por empresas produtoras de oleo de palma.

    A luz deste caso, a pergunta inicialmente formulada somam-se outras interrogantes: Que papel o Estado tem desempenhado em relacao aos afroequatorianos ou as comunidades negras que lutam por seu territorio ancestral? Como estas comunidades tem enfrentado o quadro historico de violencia, silenciamento e subalternizacao da sua identidade e de seus modos de vida? Quais sao, por fim, as questoes epistemologicas que cruzam a historia e parecem naturalizar tamanha precariedade?

    Nossa premissa e a de que os afro-equatorianos ocupam um duplo lugar na tessitura social do seu pais: por um lado, o lugar subalterno da sua condicao negra-colonial e do >, com > das suas identidades (cf. Cusicanqui, 2010b: 35-36 e 42), produzidos por uma sociedade e um Estado marcados pela 'colonialidade'; e, por outro lado, o lugar de afirmacao e resistencia a esta realidade, fundados, no dizer de Catherine Walsh, num pensamento e numa praxis-outra como essencia das chamadas > (2012: 68).

    Tal premissa sera desenvolvida, do ponto de vista teorico, com base em algumas proposicoes dos estudos Pos-coloniais, que buscam compreender o mundo contemporaneo a partir das relacoes desiguais entre o Norte e o Sul globais, constituidas historicamente pelo colonialismo e que perduram nao mais como relacao politica, mas como relacao politica de subordinacao expressa inscrita socialmente e cognitivamente: > (Santos, 2006: 28). Do ponto de vista empirico, sera examinada a partir do complexo panorama em que a comunidade negra La Chiquita ve-se refem.

    O Estado equatoriano tem desempenhado o ambiguo papel de reconhecer constitucionalmente direitos coletivos territoriais a estas comunidades afrodescendentes, ao mesmo tempo em que estabelece uma relacao de dominacao economicista intimamente ligada a politica extrativista e que resulta na > destes grupos (cf. Walsh e Garcia, 2010: 57-59).

    Esta pratica Estatal, mais afinada com um projeto desenvolvimentista...

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