Aglutinação das Atividades Cognitivas e Executivas - Evolução da Execução de Liebman ao Processo Civil do Século XXI

AutorDenis Donoso
CargoMestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professor da Faculdade de Direito de Itu (FADITU)
Páginas24-29

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Como de costume, reservei algumas - ou muitas, diria alguém - horas de um final de semana para pôr em dia algumas leituras pendentes. Debrucei-me quase que por acaso sobre estudos acerca da questão central de que me ocupo nestas linhas: o chamado "processo sincrético".

Deleitava-me com aquelas interessantíssimas informações quando fui interrompido pelo toque do telefone: "Você está pronto?" - perguntou-me a doce, porém decidida, voz do outro lado da linha, ao que respondi, mentindo: "Quase. Mais alguns minutos e chego aí".

Banho rápido, vesti-me de forma estabanada. Consegui buscá-la com poucos minutos de atraso e chegamos a tempo ao teatro, programa que fora planejado com bastante antecedência.

A escolha da peça foi muito feliz. Entre tantas que já assisti, com certeza foi das melhores. E, assim como nas demais, sempre me encantou a rapidez com que a equipe de produção muda os cenários. Uma cena se passa no quarto do casal; poucos instantes de escuridão, e estamos diante de uma formosa sala; mais algum tempo e vemos um belo jardim à frente e assim sucessivamente. Sem sair do lugar, no conforto de nossas poltronas, viajamos de uma situação a outra. Muita competência de quem trabalha nos bastidores, decerto.

Ainda embriagado com os estudos que fazia poucas horas antes, ocorreu-me de como seria bom para o processo se tal dinamismo lhe fosse emprestado. No teatro, o palco se adapta à cena e seus ato-res com impressionante velocidade, proporcionando ao público um espetáculo digno dos aplausos que vêm ao final. Já pensou se no processo também pudéssemos aplaudir com tamanha intensidade?

Seria mesmo ilógico que para cada nova cena todo público e todos os atores fossem obrigados a se deslocar a uma nova sala, diante de um novo palco. Ninguém, estou certo disso, se aventuraria neste programa. O teatro, então, se adapta para proporcionar bem-estar ao seu consumidor.

Pois bem. Não levou mais do que alguns segundos e eu já havia "ligado os pontos". Sim, o processo pode ser tão dinâmico quanto se é no teatro, com a diferença de que lá, no processo, as cenas são da vida real, algumas das quais tão dramáticas que poderiam ser reproduzidas aqui, no teatro.

Filtrando o que mais importa para o tema posto em análise, minha proposta central é a de abor-

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dar a questão da aglutinação de tônomo para cada uma das tutelas atividades processuais cognitivas e desejadas1 executivas, tema que está longe de ser uma novidade, mas que ganhou muito fôlego com o advento da Lei 11.232/05.

Em resumo, dita lei teve o inegável objetivo de tornar a satisfação do credor, quanto às obrigações de pagar quantia em dinheiro, uma fase a mais dentro de uma relação processual preexistente.

Numa realidade anterior, dava-se início a um processo voltado à prática de atos de pesquisa da situação jurídica posta em discussão (processo de conhecimento). Posteriormente, novo processo era instaurado, agora com o objetivo de praticar atos para satisfazer o direito reconhecido (processo de execução). Em outros termos, havia dois palcos, cada qual com seus cenários. Para mudar de cena, mudava-se de palco. E lá iam público e atores.

Rompeu-se, após longo desenvolvimento da ciência processual, a clássica bipartição entre cognição e execução para aquelas hipóteses em que a pretensão é o cumprimento de sentença de pagar quantia certa. Aproximou-se, de outro lado, a execução de quantia das execuções específicas, conforme o modelo instituído desde 1994 nos arts. 461 e 461-A do CPC, entre outras experiências.

Figurativamente, então, posso afirmar que o "palco processual" será único - sincrético, preferem alguns - e nele serão montados dinamicamente os cenários das atividades cognitivas ou executivas. Tecnicamente, prescinde-se da instauração de um processo au-

Insisto, todavia, que a questão de se aglutinarem tais atividades num único processo não é nova. Muito pelo contrário, são longevos os debates na doutrina, no que destaco a preciosa contribuição de Enrico Tullio Liebman, jurista italiano que teve forte influência num modelo processual brasileiro do qual o legislador vem, aos poucos e constantemente, buscando se afastar.

A propósito, se sancionado o novo Código de Processo Civil na forma como originalmente redigido, teremos definitivamente alcançado aquilo que denomino de "Processo Civil do século XXI", ao mesmo tempo em que abandonaremos, neste particular, premissas construídas por este brilhante processualista.

Bem por isso, minha trajetória começa pela análise resumida da opinião de Liebman sobre a autonomia dos processos (conhecimento e execução), expondo o contexto histórico de sua construção intelectual. A partir de então, traçando as linhas de uma nova realidade, procuro explicar os porquês do abandono de um modelo construído sob bases tão sólidas e da opção por uma nova técnica processual mais simples.

Não tenho a pretensão de que estas breves linhas recebam os aplausos merecidos aos atores de uma peça de teatro. Dou-me por satisfeito se conseguir contribuir minimamente não apenas para a compreensão do tema, que já é bem tratado por competente doutrina, mas especialmente para o desenvolvimento e para compreensão do fenômeno processual. Este, sim, ao final, é que queremos poder aplaudir.

2. A visão de Enrico Tullio Liebman2 Autonomia do processo de execução

Inicia Liebman seu trabalho de forma direta, já confessando sua posição: "A faculdade de promover a execução, que a sentença condenatória confere ao credor, é uma ação, porque ela consiste também no direito (ou poder) sub-jetivo de provocar o exercício da atividade jurisdicional a favor de um interesse próprio."3

O Código de Processo Civil de 1973, por sua vez, foi fortemente influenciado pela doutrina de Liebman. Não custa lembrar que ele veio da Itália para se estabelecer no Brasil em 1939, ano de edição do primeiro Código de Processo Civil brasileiro. Começou a le-cionar e pôde cultivar ideias até então revolucionárias. De suas mãos, formaram-se notáveis pro-cessualistas, como Alfredo Bu-zaid. Este último, na qualidade de Ministro da Justiça, encabeçou o movimento inspirado na obra e pensamento de seu mestre para reformular institutos mal disciplinados no Código de 1939. Daí nasce o diploma de 19734.

Assim, na concepção original do Código Buzaid - assim me refiro ao CPC de 1973 doravante -, a execução é ação autônoma, manejada em processo autônomo, distinto de seu antecedente processo...

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