'Código negro': reverberações de Teixeira de Freitas entre os penalistas brasileiros do século XIX

AutorRicardo Sontag
Páginas205-221
FILLIPE GUERRA DAVID REIS • 205
“CÓDIGO NEGRO”
REVERBER AÇÕES DE TEIXEIRA DE FREITAS ENTRE
OS PENALISTAS BRASILEIROS DO SÉCULO XIX36
*
Ricardo Sontag
1. INTRODUÇÃO
Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer vivamente aos
organizadores do evento, na pessoa do caríssimo colega prof. Gior-
dano Bruno Soares Roberto, pelo gentil convite para estar aqui hoje
e pelo evento em si. Infelizmente, eu não pude acompanhar todas as
mesas, mas todas que eu vi foram muito ricas!
O ponto que eu gostaria de abordar pertence a duas escalas
diametralmente opostas. Por um lado, quando eu falo de reverbe-
rações de Teixeira de Freitas entre os penalistas brasileiros do sé-
culo XIX no que diz respeito à noção de “código negro”, estou me
referindo a algo pequeno. Ou seja, são dois ou três fragmentos. Por
outro lado, o uso da noção de “digo negro” como instrumento de
crítica - no qual a dimensão penal, como veremos, era forte - parece
apontar para questões mais amplas e profundas no âmbito da cultu-
ra jurídico-política brasileira do século XIX. Por isso, inclusive, eu
pretendo mencionar não só os textos dos penalistas, mas, também,
alguns discursos cuja esfera de circulação era maior, isto é, alguns
36 * Palestra apresentada no II Congresso Mineiro de Direito Civil - O Bi-
centenário de Teixeira de Freitas (1816-2016) realizado entre os dias 21 e
23 de setembro de 2016 em Belo Horizonte, na Faculdade de Direito da
UFMG. Para esta versão escrita acrescentei algumas informações, notas e
referências, mas mantive o tom oral da apresentação, bem como o caráter
ensaístico, que nem tem a pretensão, portanto, de sugerir respostas funda-
das em levantamento sistemático e análises minuciosas da documentação
e da historiograa, mas, simplesmente, lançar ideias que, talvez, possam
abrir horizontes de pesquisa.
206 • TEIXEIRA DE FREITAS E O DIREITO CIVIL
fragmentos que eu encontrei em jornais da época - tarefa hoje muito
facilitada em função da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Chegaremos nisso em breve. Mas o nosso ponto de partida
é o famoso trecho da “Consolidação das Leis Civis” de Teixeira de
Freitas publicado pela primeira vez em 1857 em cuja introdução ele
menciona a expressão “digo negro”.1 Se a “Consolidação” já é um
dos livros mais famosos e importantes da cultura jurídica brasilei-
ra oitocentista, exatamente essa passagem talvez seja a mais célebre.
Como veremos, ela já causara interpretações díspares na época, e,
ainda hoje, divide os historiadores.
2. “GOLPEAR A ESCRAVATURA” I: O FAMOSO FR AGMENTO
DA “CONSOLIDAÇÃO” DE FREITAS
Muito embora essa passagem de Freitas seja muito conheci-
da, vale a pena recapitulá-la:
[c]umpre advertir, que não há um só lugar do nosso texto,
onde se trate de escravos. Temos, é verdade, a escravidão en-
tre nós; mas, se esse mal é uma exceção, que lamentamos;
condemnado á extinguir-se em uma época mais, ou menos,
remota; façamos também uma excepção, um capítulo avul-
so, na reforma das nossas Leis Civis; não as maculemos com
disposições vergonhosas, que não podem servir para a pos-
teridade: que o estado de liberdade sem o seu correlativo
odioso. As Leis concernentes á escravidão (que não são mui-
tas) serão pois classicadas á parte e formarão nosso Código
Negro.2
O código negro, por assim dizer, como uma legislação espe-
cial atinente à escravidão. Porém, o signicado da expressão não se
esgota nisso. Na esteira de algumas sugestões de Quentin Skinner,3
J. G. A. Pocock,4 entre outros, concebidas para a história política,
1
Apesar disso, vou citar a terceira edição de 1876.
2
FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis. Rio de Janei-
ro: Garnier, 1876, p. XXXVII.
3
SKINNER, Quentin. Visions of politics. Cambridge: Cambridge Universi-
ty Press, 2002, v. 1.
4
POCOCK, John Greville Agard. O conceito de linguagem e o métier d’his-

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