Classe social, identidade e luta por Direitos Humanos no Movimento de Atingidos por Barragens - Brasil/Social class, identity and struggle for Human Rights in the Movement of Affected by dams--Brazil.

AutorRibeiro, Ana Maria Motta
  1. Introducao

    Em 22/11/2010, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), orgao oficial do Estado Brasileiro em materia de direitos humanos publicava - apos mais de quatro anos de analises e visitas de campo - um amplo relatorio da Comissao especial encarregada de investigar as denuncias sobre a situacao dos "atingidos por barragens no Brasil" (CDDPH, 2010).

    Atraves de estudos de caso e analisando os elementos contextuais e socioambientais ligados ao tema, a Comissao especial verificou a situacao de sete barragens (Usinas Hidreletricas (UHE) de Canabrava, Tucurui, Aimores e Foz do Chapeco; Pequenas Centrais Hidreletricas (PCH) de Fumaca e Emboque; e Barragem de Acaua, unica para abastecimento humano) - (CDDPH, 2010, p. 5), constatando um numero significativo de violacoes de direitos humanos no processo de construcao/implementacao dessas de barragens. A Comissao encaminhou, por fim, um conjunto de recomendacoes ao Estado Brasileiro a fim de reparar e/ou mitigar os impactos, alem de apontar a necessidade de construcao de politicas publicas especificas para essa populacao.

    Este documento se reveste de importancia nao somente por identificar e sistematizar as denuncias de violacoes de direitos humanos - apontando para a existencia de um padrao de violacoes - mas sobretudo porque se trata de um documento oficial do Estado Brasileiro realizado com a participacao efetiva e decisiva da sociedade civil. Ademais, trata-se de um Relatorio publicado por um dos orgaos mais representativos em materia de direitos humanos no Brasil reconhecendo esse padrao e apontando medidas de compensacao necessarias, que deveriam ser vinculantes.

    Ha, portanto, um processo em curso extremamente conflituoso de negacao de direitos quando tratamos da situacao das barragens, que tem sido pratica recorrente do Estado brasileiro especialmente motivado pela necessidade de ampliacao da producao e oferta de energia e agua para "dar suporte" ao crescimento economico. Tais empreendimentos engendram um profundo e complexo processo de mudanca social, interligado a alteracao de modos de vida tradicionais de diversas populacoes, resultando em expulsoes e despejos forcados, desterritorializacoes e rompimentos dos lacos afetivos e simbolicos. Tais acoes tem sido realizadas tanto pelo poder publico estatal quanto por empresas ou concessionarias envolvidas nas construcoes e/ou no desenvolvimento das atividades produtivas delas decorrentes.

    Estes processos, por outro lado, nao ocorrem sem resistencias, confrontos e contestacoes por parte dos grupos afetados em todo o Brasil. Ironicamente, afirmava Carlos Vainer, que o principal efeito nao desejado dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA's) em grandes empreendimentos como as barragens e a "ocorrencia" de resistencias e lutas, pois "a impactologia ad hoc dos experts continua sendo incapaz de prever as lutas, a resistencia, a organizacao das populacoes" (VAINER, 2002, p. 1).

    Mas, afinal, quem sao esses atingidos? Quais os processos sociais que fizeram emergir essa identidade? Buscaremos neste artigo nos aproximar do historico de atuacao do principal movimento de resistencia relacionado a este tema: o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) no Brasil.

    Partimos do pressuposto de que a situacao atual de violacoes de direitos mantem-se - e em diversos casos tem sido inclusive intensificada, como na conjuntura brasileira apos um golpe de Estado em 2016 (1) - gerando conflitos socioambientais cada vez mais amplos e complexos para compreender e analisar.

    Por este motivo e importante resgatar os fluxos - sobretudo as continuidades e menos as rupturas - que permitiram a emergencia desse movimento social no Brasil, num processo que se inicia em meados dos anos 1970 e que perdura ate hoje. Para tal, buscaremos descrever sucintamente as conjunturas sociais que motivaram a criacao do MAB, sobretudo com base no percurso historico construido por Vainer (2002). Alem disso, como decorrencia dos estudos realizados na nossa revisao bibliografica em sede de doutorado, buscaremos tambem nos aproximar de algumas chaves analiticas para aprofundamento, sobretudo a partir do conceito de classe enquanto "categoria historica e heuristica indissociavel do processo de luta" (THOMPSON, 1979; 2001), a fim de entender suas repercussoes na questao das identidades e na luta por direitos humanos, com aporte em Herrera Flores (2009).

    Este caminho teorico foi escolhido pela necessidade de efetuar uma analise do "fazer-se da classe", em movimento, para perceber e destacar quando e em que medida a acao coletiva produz uma intervencao significativa e esclarecedora da realidade. Mesmo reconhecendo a amplitude tematica e variedade de abordagens possiveis, nosso esforco se centra no estabelecimento dessas conexoes, partindo inclusive da propria pratica do Movimento, pois em geral nos casos concretos as questoes "teoricas" ligadas a classe, a identidade e a luta por direitos sao atravessadas - inundadas - pelas conjunturas, e por esse mesmo motivo, sao objetivadas de uma forma mais relacional e complementar do que excludente, como veremos.

    Buscaremos, por fim, estabelecer alguns dialogos entre esta caracterizacao do MAB com uma concepcao critica dos direitos humanos (FLORES, 2009) e com a tradicao do direito achado na rua, que formula o conceito de "sujeito coletivo de direitos" (SOUSA JUNIOR, 2008, p. 270-276).

  2. Breves notas sobre o Movimento dos Atingidos por Barragens: luta por direitos, identidade e classe

    Fundado oficialmente enquanto Movimento em 1992, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e fruto de um conjunto de lutas e confrontos politicos ocorridos nos ultimos 40 anos, decorrentes da implantacao de diversos empreendimentos de grande porte destinados, em geral, a producao de energia eletrica, mas tambem para abastecimento e irrigacao (2). Conforme aponta Leonilde Medeiros (1989), a criacao do MAB pode ser relacionada com quatro "centros irradiadores" de lutas e que serao apresentados sucintamente a seguir.

    Primeiramente identifica-se as lutas de Itaipu, no Parana e a criacao do Movimento Justica e Terra, em 1978, com forte influencia da Comissao Pastoral da Terra:

    As reivindicacoes que entao foram elaboradas diziam respeito as indenizacoes, consideradas muito baixas, e a melhores condicoes para o assentamento dos trabalhadores deslocados. Uma segunda assembleia, no inicio de 1979, ampliou as reivindicacoes anteriores, exigindo inicio imediato das desapropriacoes, reassentamento no proprio estado, indenizacao discriminando o valor da terra nua, correspondente a area real, adquirida ou de posse, dos lucros cessantes, das benfeitorias e beneficios existentes no imovel a ser indenizado. No processo de elaboracao das reivindicacoes e de denuncia a sociedade da outra face de ltaipu, a CPT teve papel essencial na organizacao dos trabalhadores, com o movimento sindical aderindo a luta somente num segundo momento (MEDEIROS, 1989, p. 142). Tambem na decada de 1970 identifica-se outro territorio importante na compreensao da historia do MAB. Nos Estados da Bahia e Pernambuco o contexto da construcao das Barragens de Sobradinho e Moxoto ligadas a CHESF (Companhia Hidreletrica do Sao Francisco) resultou no impressionante numero de 4.214 [km.sup.2] alagados - formando um dos maiores lagos artificiais do mundo - na expropriacao de 26.000 propriedades em sete municipios diferentes e na expulsao compulsoria de cerca de 72.000 pessoas (VAINER, 2002, p. 09; COSTA, 2013, p. 09). Em geral a literatura aponta que no caso de Sobradinho e Moxoto houve um processo diferenciado de resposta entre os camponeses, onde a articulacao e luta dos atingidos se centrou no acesso a agua e na ocupacao das terras de vazante as margens do lago formado, num modelo de expropriacao chamado de "retirada insolita" por Costa na sua dissertacao de mestrado (COSTA, 2013).

    Este contexto de violacoes foi importante para servir de "espelho" no processo de organizacao e resistencia no caso da Barragem de Itaparica - num deslocamento de mais 40.000 familias - dando origem a uma inovadora coalizacao sindical, o Polo Sindical do Sub-medio Sao Francisco, que foi o principal ator responsavel por levar adiante as pautas das populacoes atingidas. Naquele contexto, aponta Parry Scott para a existencia de um descaso planejado, utilizado para

    [...] descrever uma sensacao que persistentemente acompanha a experiencia de interagir com os agricultores diante desse mega-projeto de desenvolvimento. E um termo que reconhece que, mais vezes que nao, projetos destas dimensoes prejudicam quem reside proximo aos locais destinados para a sua implementacao. Detalhe tras detalhe, aparecem ambiguidades multiplas que, quando cuidadosamente examinadas, criam um padrao de prejuizos maiores para os que sao mais fracos, por mais bem organizados e apoiados que estejam (2009, p. 09). Como aponta Vainer, tais lutas atravessam o inicio dos anos 1980, inclusive com diversos relatos de acoes diretas, ocupacoes de canteiros das obras e producao de documentos com "diretrizes" para o reassentamento das familias, ate que um acordo e firmado, em dezembro de 1986, com as seguintes demandas: "terra por terra", 2,5 salarios minimos ate o inicio da producao, participacao dos trabalhadores na compra de terras e na administracao do reassentamento (2002, p. 10).

    No caso do Norte do Brasil, a referencia historica mais importante foi a construcao da Usina Hidreletrica de Tucurui (UHE), na Bacia do Rio Tocantins, no Para, que foi construida pela Eletronorte no final da decada de 1970 e concluida em 1984. Esta Barragem e reconhecida como "a primeira grande barragem construida em uma zona de floresta tropical umida e uma das maiores da America Latina" (Comissao Mundial de Barragens, 2000, p. iv).

    A narrativa se assemelha aos casos anteriores, com a insercao de alguns elementos importantes como a questao do impacto do empreendimento em areas indigenas: "Dentre os grupos indigenas que vivem na regiao, os...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT