Cidadania cosmopolita e direito social: a nacionalidade como margem na proteção ao trabalho

AutorMarcelo Maciel Ramos e Pedro Augusto Gravatá Nicoli
Páginas130-137

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1. O trabalho e o sentido cosmopolita da cidadania

As vivências da cidadania no presente só alcançarão contornos de universalidade se associadas necessariamente a um sentido cosmopolita no acesso a direitos sociais, que globalizem, em equilíbrio de forças, um dever de proteção ampla a trabalhadoras e trabalhadores absorvidos, direta ou indiretamente, nas lógicas produtivas transnacionalizadas do capitalismo flexível. A superação dos pertencimentos locais na formulação de uma cidadania também pelo trabalho impõe a indispensável revisão da nacionalidade como parâmetro exaustivo na imposição de deveres e responsabilidades de proteção social. Se o capital é faticamente global, a proteção ao trabalho também deve sê-lo, sob pena de, por debaixo do formal verniz da soberania dos Estados, sustentar-se a prevalência do econômico sobre o ético e o jurídico.

Nas vias de entrada do Direito Social, sobretudo por meio do trabalho, seu veículo básico de expressão, é preciso revisitar a vinculação entre deveres de proteção e o pertencimento nacional, com imposição ampla de responsabilidades aos atores transnacionais, sejam eles estatais ou privados. A realização de um direito fundamental ao trabalho digno conduz à afirmação de trabalhadoras e trabalhadores como sujeitos sociais e de Direito, titulares de prerrogativas que determinam a desconstrução do uso estratégico que se faz da nacionalidade para fins de privação dessas mesmas prerrogativas. É dizer, direitos associados ao trabalho e à proteção social devem ter feições globais, como forma de garantia de um acesso universal à cidadania, que rompa com a lógica de uma cidadania para poucos, sustentada na sua exclusão para muitos.

É importante lembrar, de antemão, que a própria ideia de cidadania foi construída na Modernidade como status jurídico atribuído àqueles que, em razão do pertencimento a determinado Estado nacional, são reconhecidos como destinatários de suas proteções institucionais e como titulares de prerrogativas em face da comunidade e dos demais indivíduos. Para Dominique Schnapper, "o cidadão é um sujeito de direito. Ele dispõe a esse título de direitos civis e políticos"1.

O status de cidadão garante ao indivíduo não só o gozo de liberdades individuais e a correspondente proteção institucional contra as possíveis arbitrariedades das forças políticas e sociais, mas lhe atribui a prerrogativa de participar das decisões comuns. Nesse sentido, a cidadania se constitui como o princípio da legitimidade política. O cidadão não é apenas um sujeito de direito individual; ele é sujeito político, detentor de uma parte da soberania. A categoria cidadania é, portanto, o suporte da prerrogativa de emancipação do indivíduo contra as sujeições jurídicas e políticas impostas pelo Estado moderno, empoderando-o pelas normas e aparatos institucionais do próprio Estado.

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Todavia, em um mundo globalizado, no qual as forças econômicas não reconhecem as fronteiras dos Estados, a cidadania nacional se apresenta como categoria em obsolescência no que diz respeito à emancipação do indivíduo em face dos poderes transnacionais do mercado. A ideia de cidadania como condição para o gozo de direitos humanos parece desmoronar diante da mitigação da soberania nacional não só pelas normas internacionais que se impõem aos Estados como pelos poderes econômicos que se sobrepõem a eles. Além disso, como bem salienta Luigi Ferrajoli, a cidadania "converteu-se no último privilégio pessoal, no último fator de discriminação e na última relíquia pré-moderna das diferenças por status"2. Ela seria, portanto, incompatível com o universalismo dos direitos humanos e com os seus princípios de igualdade e liberdade.

Essa contradição, embora evidenciada com maior força pelas circunstâncias do trabalho na economia global do presente, já se mostrava na gênese dos Estados modernos. Lembra Costas Douzinas que, se os direitos são declarados nas revoluções que forjaram o nosso tempo em nome do "homem" universal, o ato que os enuncia estabelece o poder de um tipo particular de associação política, a nação e o Estado, e de um "homem" em particular, o cidadão nacional, enquanto beneficiário exclusivo de direitos3. Nesse contexto, "o estrangeiro não é um cidadão. Ele não tem direitos porque não faz parte do Estado e é um ser humano inferior porque não é um cidadão"4.

É preciso, portanto, repensar a cidadania e as proteções sociais dela decorrentes em termos cosmopolitas5. A relação entre cidadania e trabalho, aliás, assume condição histórica de protagonista nos arranjos sociais e jurídicos do mundo ocidental. No paradigma clássico, uma dissociação de base garantiu a condição de cidadania justamente àqueles que não trabalhavam. Estruturas escravocratas sustentaram, pelas exclusões que circundavam e constituíam a cidadania como conceito político, a condição de sujeito diante das ordens institucionais àqueles que, pelo pertencimento a uma comuni-dade sociopolítica, atendiam a certos critérios de patrimônio, renda e status social. Progressivamente, um sentido de universalização da cidadania enquanto titularidade de direitos e prerrogativas descolou-se de critérios puramente censitários, fazendo emergir uma noção inovadora de cidadania, a trazer consigo o germe da universalização de direitos políticos. Contudo, aos que efetivamente eram impelidos ao trabalho, a cidadania nunca se colocou como uma experiência vivida e generalizada.

A cidadania moderna avança na direção da titulari-dade de prerrogativas e numa refundação de seu significado em atributos humanos dotados de universalidade. Liberdade e igualdade, como formuladas nos textos jurídicos semi-nais da Modernidade, passam a formatar conceitualmente a cidadania, associando a ela dimensões inerentes ao humano. Nesse momento, como visto, a vinculação nacional também se centraliza, como parte do próprio processo de afirmação do Estado moderno, resultado e garantidor da cidadania. Um universalismo essencialista na formulação convive, então, com um forte "relativismo" nacional na implementação das garantias típicas da cidadania. É o que se passa intensamente com o Direito do Trabalho e com a proteção social em sentido amplo em seus primeiros momentos. A despeito de poderem se afirmar também internacionalmente (como se verificou no corpus de normas de proteção social internacional alimentado sobretudo no século XX), a sua implementação e garantia, viabilizadoras da experiência da cidadania, mantem-se posta como uma questão essencialmente nacional.

Quando o capitalismo se globaliza em intensidade radical nas últimas décadas do século XX, a fronteira nacional da cidadania, naquilo que diz respeito à proteção ao trabalho, revela sua função de exclusão e, com ela, de redução de custos produtivos. O capital, deslocalizado, quase ubíquo, passa a explorar as defasagens entre os níveis de proteção em espaços nacionais e beneficiar-se das feições locais da (des)proteção social. Diante da maximização de tal estratégia é que a revisita às construções normativas modernas, que associaram em múltiplos aspectos o emprego regulado ao espaço nacional, se faz mais do que nunca necessária.

Um repensar dos muitos limites do Direito do Trabalho associados ao "nacional" é um exercício de altíssima complexidade e desdobramentos de impacto. A pergunta básica é: em um capitalismo hiperglobalizado, que toma economicamente a escala global como uma unidade, porque ainda é de cada Estado isoladamente o dever de proteger apenas seus trabalhadores nacionais? Aquelas trabalhadoras e trabalhadores que se integram indiretamente nos esquemas produtivos desconcentrados, tendo seus esforços incorporados em redes de terceirização dirigidas por grupos multinacionais, não seriam também titulares de direitos e prerrogativas amplas? É dizer, uma trabalhadora em Bangladesh, empregada em uma pequena fábrica terceirizada ou quarteirizada de um gigante como Carrefour ou Primark6, não faria jus a padrões de proteção que ultrapassam os limites da pobre regulação trabalhista de seu espaço nacional? E os trabalhadores migrantes,

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não teriam eles o direito de pretenderem melhores condições de vida, diante de um direito universal ao trabalho digno, independentemente de sua condição migratória, regular ou irregular? Não mereceriam, ainda, nas ordens jurídicas inter-nas, igual proteção em toda e qualquer situação de trabalho?

Essas são questões que, evidentemente, o presente ensaio não conseguirá exaurir. Ao analisar, contudo, algumas disposições específicas do texto da Consolidação das Leis do Trabalho referentes ao tema da "nacionalização do trabalho", em leituras constitucionais e de ampliação da igualdade em matéria trabalhista, dá um passo e provoca a reflexão para o repensar do dimensionamento espacial da proteção social. Cidadãs e cidadãos que trabalham têm, como sujeitos, direitos oponíveis em face da opressão e do poder, em equilíbrio que o tempo presente rompe sistematicamente ao explorar as espacialidades e construções tradicionais da cidadania como forma de, ao final, levantar obstáculos à sua efetivação para a maior parte das pessoas.

2. Cidadania, proteção social e o direito fundamental ao trabalho digno

A experiência da cidadania nos horizontes socioeconômicos do presente passa, necessariamente, pelo trabalho juridicamente protegido. Isso porque, na vida da maioria esmagadora dos indivíduos do mundo, o trabalho constitui vetor primordial de subsistência, construção de identidades e de relações sociais7. Assim é que o sentido cosmopolita...

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