Christoph Menke and the fate of Law/ Christoph Menke e o destino do direito.

AutorRezende, Gabriel
CargoResena de libro

Introducao

Dono de uma relativamente vasta obra nos dominios da filosofia politica e da estetica, Christoph Menke produziu, recentemente, alguns dos mais interessantes aportes da filosofia continental a reflexao juridica. Treinado na tradicao da Teoria Critica, mas com significativas incursoes no pensamento frances da segunda metade do seculo XX, Menke, leitor de Adorno e Derrida, e ainda um desconhecido do publico brasileiro. Infelizmente, pouquissimos sao os textos publicados no Brasil que fazem referencia a seus escritos, e nenhum de seus livros sofreu traducao para a lingua portuguesa.

Diante desse quadro, o presente artigo propoe um estudo introdutorio do que se poderia chamar--adiante esta relacao sera mais bem explicitada--de uma critica do direito em Menke, sem descurar, porem, da tonalidade afetiva e dos conceitos que, de modo geral, atravessam toda sua producao intelectual.

Publicado no ano de 2011, o opusculo Direito e Violencia (Recht und Gewalt) e o mais condensado esforco reflexivo do filosofo e, por essa razao, revela-se como o candidato ideal a guiar a estrategia argumentativa aqui proposta. Afinal, se Menke apresenta o direito, nesse trabalho, como centro de sua investigacao, fica claro que o objeto estudado so se da a conhecer a luz de um enorme conjunto de sedimentos politicos, eticos e esteticos. Direito e violencia e, assim, um livro que reflete os caminhos trilhados por seu autor ao mesmo tempo em que projeta o porvir de novos problemas e de novas interrogacoes.

Este artigo se divide de maneira bastante intuitiva. Em uma primeira parte, sao expostos os contornos muito peculiares com os quais Menke, valendo-se de uma ampla reflexao sobre o tragico, descreve o funcionamento do direito e diagnostica os problemas centrais do sistema juridico. Em uma segunda parte, estuda-se a Entsetzung, traduzida aqui por destituicao, e tentase pensar como esse conceito metamorfoseia e desloca o destino de violencia do direito.

  1. A tragedia e o destino do direito

    As relacoes entre arte e sociedade marcaram, desde sempre, as preocupacoes filosoficas de Christoph Menke. A tragedia, mais especificamente, ocupou um lugar privilegiado em sua obra: bastaria lembrar do artigo publicado, em 1992, sob o titulo Tragedia e os espiritos livres (Tragodie und die Freigeister), em que cultura e arte sao interrogadas a partir de Nietzsche; ou do livro de 1996, Tragedia na vida etica (Tragodie im Sittlichen), no qual o autor estuda os conceitos de justica e liberdade na reflexao de Hegel sobre a tragedia. O acumulo representado por estes e outros trabalhos e central para que se possa compreender a frase de abertura de Direito e Violencia: "O genero da tragedia e a instituicao do direito estao, em sua origem e em sua estrutura, atados um ao outro." (Menke, 2011, p. 13). 1 O que poderia significar essa atadura, essa ligacao umbilical que e, a um so tempo, originaria e estrutural? Mais ainda, qual seria sua atualidade?

    1.1 Direito e vinganca

    Menke ja havia defendido em A atualidade da tragedia: ensaio sobre julgamento e atuacao dramatica (Die Gegenwart der Tragodie: Versuch uber Urteil und Spiel) que, ao contrario do que propoem certos autores, a tragedia guarda ainda atualidade "'[p]ara nos'--isto e, nos sentidos de Hegel e Schlegel: para nos modernos." (Menke, 2005, p. 7). (2) Sua aposta e a de que a relacao entre direito e tragedia nao e anedotica ou puramente diletante. Ela implica, de fato, algo para a compreensao do tempo presente a medida que diz do destino de ambos os generos. Sua tese e bastante clara: se e possivel identificar nos apelos individuais, nos debate das partes, na responsabilidade dos agentes, nas consequencias das decisoes e nos imbroglios da interpretacao elementos comuns a direito e tragedia, e porque ambos pertencem a uma mesma forma de justica. O direito nao seria outra coisa senao a forma-justica produzida pela reflexividade da tragedia, por ela erigida, por ela revelada em contraposicao a outra forma-justica: a vinganca. Esse ultimo ponto nao deve jamais ser lido de forma trivial. Menke promove aqui uma importante inflexao em relacao ao senso comum dominante na teoria do direito. Afinal, o direito da tragedia, que efetivamente lhe interessa, "nao e uma especie qualquer de ordem garantida pela forca que estabeleceria um minimo de seguranca quanto a expectativas, mas [a] forma especifica do direito trazida pelo trabalho de reflexao da tragedia." (Menke, 2011, p. 14). (3)

    E preciso insistir na ideia de que a emergencia do direito nao representa o nascimento da ideia de justica nem atesta suas condicoes de possibilidade. A aparicao historico-fenomenica do direito e mais bem explicada como reformulacao, como dacao de (nova) forma a justica. Ao contrario dos discursos filosoficos que justificam o direito por via da possibilidade de saida do estado de natureza, Menke ve o juridico como a sobreposicao da violencia do direito a violencia da vinganca, remodelando, com efeito, a forma-justica. Surge de imediato a pergunta: como compreender a vinganca como regime normativo? Nao seria ela pura expressao de um imperativo de gozo, de uma satisfacao nao mediada de exigencias pulsionais? Nao pertenceria a vinganca a ordem de uma compulsao de repeticao a servico da pulsao de morte, o que so poderia acarretar sua exclusao, a priori, do plano da normatividade?

    Retomando alguns dos argumentos ja avancados em Reflexoes da igualdade (Spiegelungen der Gleichheit), Menke nega a vinganca esses predicados de senso comum. Para ele, "[a] vinganca segue a lei da igualdade" (Menke, 2011, p. 16), (4) uma vez que a logica da retaliacao expressa um regime de equalizacao dos danos. Expressoes como "pagar na mesma moeda" ou "olho por olho, dente por dente" atestam a centralidade de uma justica que se orienta pela igualdade: "[a] justica da vinganca reside no fazer do mesmo" (Menke, 2011, p. 17), (5) isto e, em responder ao excesso do malfeito passado com um malfeito de identica medida. Sob essa logica, entretanto, o ato vingador merece ser ele proprio vingado, de modo que o fechamento de um ciclo de vingancas carrega em si a possibilidade efetiva de abertura de um novo. A estrutura de repeticao infinita que assim se desenha tornou dramatica e, com o tempo, tornou tambem socialmente insustentavel a ordem da vinganca.

    O direito surge como mecanismo de quebra dessa condicao. Ao contrario, porem, daqueles que preferem ver nesse movimento a superacao de uma ordem de pura violencia por uma de absoluta pacificacao, Menke inscreve no coracao do direito a necessidade de uma violencia interruptiva. Ora, a forca do direito decorre do completo assenhoramento da regulacao dos conflitos ocorridos na sociedade e, portanto, da subordinacao dos mecanismos privados de vinganca. Ainda que as duas ordens normativas comunguem a certeza de que o malfeito nao pode ser deixado impune, o direito responde a injustica acolhendo-a em uma dinamica procedimental na qual se sabe, de antemao, que todo fato social pode ser narrado de forma antagonistica.

    1.2 O procedimento juridico: um, dois, tres

    Ha muito se consolidou, sobretudo nos paises de lingua inglesa, um campo de estudos que aproxima literatura e direito a partir da nocao de ficcionalidade. Apesar dos inegaveis pontos de contato com a producao teorica do campo, ha que se tracar uma linha divisoria entre as propostas de Menke e aquelas da Law and Literature em sentido estrito. As razoes para tal, alias, permitem adentrar o amago da discussao sobre direito e violencia.

    Primeiramente, deve ficar claro que Menke nao tem a intencao de simplesmente religar direito e literatura; tampouco pretende defender uma unidade elementar de sentido entre o procedimento judicial e a novelistica moderna (como propoe parte expressiva da Law and Literature). As camadas por ele buscadas sao mais antigas e mais profundas. Em conhecida passagem da Poetica, afirma Aristoteles que, na gradual evolucao da tragedia, Esquilo fora o primeiro a elevar de um para dois o numero de atores. (ARISTOTELES, 1968, p. 8). E esse movimento de duplicacao, de dobracao empreendido pela tragedia que a aproxima da forma juridica da justica. A justica do direito, ao contrario da justica da vinganca, se da de par com a aparicao de dois partidos; dois lados que vem a palavra podendo oferecer razoes, podendo narrar de modo alternativo a historia que desencadeia a lide. Inusitada facanha que alca autor e reu a condicao de concidadaos, e instaura, tanto no plano horizontal como no vertical, a igualdade como dinamica propria do agrupamento politico: "Em seu procedimento, com efeito, o direito sempre realiza a igualdade politica do cidadao de dois modos: no fato de os dois partidos virem, por si e de igual maneira, a palavra; e no fato de o juiz decidir em nome da igualdade de todos os cidadaos." (Menke, 2011, p. 30). (6) O partidarismo das partes so e possivel, portanto, a partir da neutralidade do juiz, representante de uma unidade politica constantemente reafirmada no ato de julgar. Ausente por completo da ordem da vinganca, a coexistencia de dois partidos que disputam a narrativa dos fatos se apresenta aos olhos de Menke como o acontecimento que irmana direito e tragedia. Ha algo de bakhtiniano nesse enfoque: ao inves de privilegiar uma temporalidade escatologica de tipo hegelo-lukacsiana, que afirmaria a transcendencia da arte com a "[...] morte do epos classico e a deslocacao do interesse moderno da obra de arte para a reflexao sobre a mesma obra de arte." (Campos, 1992, p. 127), Menke obriga seu leitor a ver, tanto no discurso literario como no discurso juridico, a convivencia entre diversas camadas anacronicas. Como se le em A forca da arte (Die Kraft der Kunst) que: "[n]unca na modernidade houve mais arte, a arte foi mais visivel, presente e importante na sociedade que hoje." (Menke, 2013, p. 11), (7) pode-se tambem pensar que a tragedia, em Menke, esta longe de ser apenas a figura icastica de um protodireito. O tragico da a ver um...

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