Children, political participation and recognition/ Crianca, participacao politica e reconhecimento.

AutorTironi, Sara

Introducao

O artigo tem por objetivo apresentar elementos teoricos que fundamentem a necessidade de promocao do direito de participacao politica infantil--direito fundamental da crianca expresso em diferentes normas em ambito internacional e nacional desde 1989, com a promulgacao da Convencao das Nacoes Unidas sobre os Direitos das Criancas (CNUDC).

Para tanto, recorre a teoria do reconhecimento hegeliana, considerando principalmente sua sistematizacao empirica feita por Axel Honneth (2011). Com o proposito de demonstrar a possibilidade de insercao da crianca nos processos de reconhecimento intersubjetivo, utiliza-se a reconstrucao desta teoria conforme proposto por Vladimir Safatle (2012), bem como a nocao de hibridismo e atores-rede apresentada por Bruno Latour (2011). Busca-se, com isso, embasar teoricamente a consideracao de que crianca e uma pessoa de direito que possui capacidades peculiares para agir social e politicamente.

As constatacoes de Honneth acerca da necessidade humana de reconhecimento mutuo permitem considerar que a exclusao infantil da possibilidade de participacao politica e em si mesma a causa de uma situacao de desrespeito para com a integridade social e para com a dignidade da crianca, sendo capaz de impedir seu processo de autorreconhecimento subjetivo, afetando sua autoconfianca, autorrespeito e autoestima.

Alem disso, tal exclusao corresponde a importante fator na invisibilizacao da crianca durante os processos politicos de tomada de decisao e na desconsideracao dos impactos geracionais no momento da elaboracao de politicas publicas (1). Em consequencia, a privacao da crianca da possibilidade de participacao politica tambem pode frustrar a concretizacao dos demais direitos fundamentais infantis civis, economicos, sociais e culturais, configurando situacoes em que a propria integridade fisica da crianca resta ameacada.

  1. Participacao politica infantil: previsoes normativas

    Como considera Boaventura de Sousa Santos (1999: 232-233), a democracia representativa tem se constituido como o maximo de consciencia politica possivel nos sistemas capitalistas (2). Uma vez que a teoria politica liberal confinou o politico ao Estado, aquele se transformou em uma dimensao setorial e especializada da pratica social--a cidadania. Concomitantemente, todas as outras dimensoes da pratica social foram despolitizadas e mantidas afastadas da possibilidade de participacao.

    Tendo isso em vista, para que se possa compreender a possibilidade de participacao e contribuicao efetiva da crianca na politica, esclarece-se, a principio, que a nocao de "participacao politica" utilizada neste artigo e ampla nao se restringe a sua acepcao enquanto metodo politico para a manutencao da maquina eleitoral em funcionamento satisfatorio, por meio da discussao e voto no processo de competicao de cidadaos pela lideranca governamental dentro de um determinado territorio (SCHUMPETER, 1975; DAHL, 2001). Um alargamento do conceito de participacao politica exige, entretanto, que a propria ideia do que seja "politico", ou "poder politico", seja expandida (PATEMAN, 1992: 140).

    Recorre-se, para tanto, a contribuicao de Peter Bachrach e Morton Baratz (BACHRACH; BARATZ, 2011), em sua tese acerca das diferentes formas de poder politico. Para os autores, ha duas maneiras possiveis de se exercer tal poder: a primeira diz respeito a possibilidade de tomada de decisoes coletivas, enquanto a segunda se refere a criacao ou reforco de determinados valores sociais politicos e de praticas institucionais que, levados a apreciacao publica, tem a capacidade de influir no processo politico de tomada de decisoes. E dentro desta ultima forma de exercicio de poder politico que se insere a nocao de participacao politica utilizada neste artigo.

    Em segundo lugar, a possibilidade de participacao politica infantil exige tambem que se delimite o proprio conceito de "crianca" e, por conseguinte, o adjetivo "infantil". A Convencao das Nacoes Unidas sobre os Direitos das Criancas (CNUDC) de 1989 (3) define como crianca "todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a nao ser que, em conformidade com a lei aplicavel a crianca, a maioridade seja alcancada antes". Em ambito nacional, todavia, a Lei no. 8.069/1990--Estatuto da Crianca e do Adolescente (ECA)--, mais restritiva, considera crianca toda pessoa com ate 12 anos incompletos, sendo definidos como adolescentes os individuos com idade entre 12 e 18 anos. Adotam-se, neste artigo, os parametros etarios dispostos na legislacao nacional, focandose em discutir os direitos de participacao daqueles que possuem ate 12 anos incompletos (4). Este recorte foi feito tendo em vista que aqueles que sao considerados adolescentes pelo ECA, sao detentores de direitos diferenciados de participacao, inclusive na democracia representativa, como a garantia constitucional de voto facultativo aos que possuem entre 16 e 18 anos (5).

    No ambito da CNUDC, o direito infantojuvenil a participacao politica encontra reflexo nos seguintes dispositivos: direito das criancas (e adolescentes) a livre expressao e direito de terem suas opinioes respeitadas (artigos 12 e 13); direito a associacao (artigo 15); direito a liberdade de pensamento e a escolha da religiao (artigo 14). Em 2003, o relatorio The State of the World's Children do Fundo das Nacoes Unidas para a Infancia (UNICEF), ao tratar desse tema, ressaltou os beneficios da promocao da participacao politica infantil, apontando alguns casos exemplares de participacao infantil que obtiveram sucesso, como a criacao de parlamentos infantis, a participacao juvenil nas Nacoes Unidas e na midia. Nesse sentido, e apresentada uma participacao que ocorre paulatinamente, tendente a aumentar conforme a crianca ganha idade (RIZZINI et. al., 2007: 165).

    No contexto brasileiro, o ECA, de forma similar, preve como direitos fundamentais (6) da crianca e do adolescente a participacao na vida familiar e comunitaria, sem discriminacao (artigo 16, V); a participacao da vida politica, dentro dos limites legais (artigo 16, VI); bem como a organizacao e participacao em entidades estudantis (artigo 53, IV). Aprofundando tais previsoes e ate mesmo indo alem delas, a recem-aprovada Lei no. 13.257/2016 --Marco Legal da Primeira Infancia (7)--determinou que as politicas publicas direcionadas ao atendimento da primeira infancia devem "incluir a participacao da crianca na definicao das acoes que lhe digam respeito, em conformidade com suas caracteristicas etarias e de desenvolvimento" (artigo 4[degrees], II). Tal diretriz tem por intuito, nos termos do texto legal, promover a inclusao social da crianca com ate seis anos como cidada, devendo ser conduzida por profissionais qualificados em processos de escuta que sejam adequados as diversas formas de expressao infantil e de acordo com as especificidades de cada idade (artigo 4[degrees], paragrafo unico).

  2. Exclusao infantil das esferas sociais de influencia e invisibilidade politica da crianca

    Nao obstante tais previsoes em ambito internacional e nacional, a infancia permanece, de forma geral, excluida dos processos de decisao na vida coletiva da sociedade na qual esta inserida (SARMENTO et. al., 2007: 184). Alem disso, os mecanismos e as possibilidades de participacao para criancas em ambientes que lhes sao proprios--tais como o espaco escolar--, permanecem restritos (RIZZINI et. al., 2007: 165-166). Como considera Alessandro Baratta (2001: 65), "a infancia se tornou a questao limite da democracia".

    A propria construcao da ideia de infancia pelas sociedades ocidentais, principalmente apos o advento da modernidade (ARIES, 1981), reflete a exclusao a qual as criancas, sobretudo as menores, estao submetidas (8). Foi por meio de sucessivas exclusoes de criancas de esferas sociais de influencia (como a esfera do trabalho, do convivio social com adultos que nao facam parte de seu circulo familiar, da participacao na vida comunitaria e politica) que a nocao de infancia se erigiu. Nesse processo, o mundo das criancas separou-se do mundo dos adultos, suas areas de atividade se distinguiram e delimitaram. Foram, ainda, criados espacos sociais restritos as criancas, condicionados e controlados por adultos de forma direta (sobretudo no espaco familiar) ou institucional (como no caso da escola) (SARMENTO et. al., 2007: 184).

    Constituiu-se, com isso, uma rigida hierarquia entre idades, na qual o adulto figura no topo de uma piramide hierarquica marcada por uma nitida relacao de dominacao e controle entre as categorias etarias. Como efeito, podem ser observadas duas atitudes basicas dos adultos em relacao as criancas: paternalismo--combinando sentimentos como amor, sentimentalismo com um senso de superioridade das capacidades dos adultos em relacao a compreensao equivocada de quais sejam as capacidades infantis --e marginalizacao, o que, por sua vez, determina a invisibilizacao da crianca (ROSEMBERG, 2008: 1-3; QVORTRUP, 2011: 208-210; SARMENTO et. al., 2007: 184).

    Tais atitudes, por sua vez, sao fatores relevantes na institucionalizacao (9) de um entendimento generalizado de que as criancas, "por natureza", sao inuteis e meras receptoras (QVORTRUP, 2011: 206). Essa compreensao pode ser encontrada ja na filosofia iluminista. Como considerava John Locke (1999), a crianca seria uma "tabula rasa" que inicia a vida sem nada e a partir de nada. Diante disso, sua imagem ora incorporava o imaginario coletivo como um ser inocente e puro a quem deveria ser aplicado uma pedagogia construtivista centrada no prazer da aprendizagem (ROUSSEAU, 2009), ora como um ser irracional, rebelde e caprichoso cuja educacao deve se concentrar no dever do esforco e nos estimulos controladores (MONTAIGNE, 2010). A equiparacao da crianca a uma "tabula rasa", no entanto, faz com que ela seja a ser encarada como um capital humano apenas em potencial (DALHBERG et. al., 2003: 65), nao havendo razao para lhes estender a possibilidade de exercicio da participacao politica (SARMENTO et. al., 2007...

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