Avanços da biotecnologia, bioética e a formação do (bio) direito

AutorSalete Oro Boff
CargoDoutora em Direito. Professora da URI - Programa de Pós-Graduação da URI – Mestrado e Graduação. Advogada.
Páginas323-342

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Considerações iniciais

Não1 se deve olvidar que as inovações na área biotecnológica contribuem significativamente para o bem-estar da humanidade. Entretanto, ao lado dos benefícios podem existir riscos à integridade e à identidade do homem. Nesse contexto, surge a bioética como forma de subordinar o desenvolvimento da biotecnologia à sobrevivência da vida humana digna, “porque as técnicas não são fins em siPage 324mesmas, elas não existem senão para servir ao homem, que é o fim de todas as instituições sociais e políticas.”3 Os avanços da biotecnologia revestem-se de tamanha complexidade e exigem respostas sofisticadas e justificadas, como, por exemplo, a que diz respeito à questão da regulamentação sobre a apropriação dos genes. O Direito, junto com a Filosofia, a Teologia, a Sociologia, a Medicina, entre outras áreas, empenham-se, numa seara multidisciplinar, em oferecer a eqüalização dos ‘novos’ dilemas, porém a tarefa de apresentar respostas adequadas às novas situações exige um repensar da “compreensão e a regulação das relações sociais e econômicas surgidas na sociedade tecnocientífica”.4

1 A ética da vida e o desenvolvimento da (bio) tecnologia

A bioética tem como pano de fundo a crise moral, ligada à crise de convicções éticas e ontológicas5 e pode ser definida como o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências sociais, a partir de valores e princípios morais. A bioética preocupa-se em “estabelecer critérios de orientação para a invenção e a utilização de descobertas científicas e tecnológicas, relativas ao corpo, às funções humanas ou órgãos e seus elementos e que, em princípio, devam trazer benefícios para toda a humanidade.” 6

As características da bioética são a ética nas ciências, entendida como a reflexão ou juízo crítico de valores; o pluralismo, a multi e transdisciplinaridade e a preocupação com os avanços científicos, o que permite compreender a complexidade dos problemas relacionados à área.7

Após a Segunda Guerra Mundial, acentuam-se as preocupações em defender o homem, diante da crescente especialização do saber, em garantir a sua singularidade e individualidade, impondo limites à investigação científica. Essas inquietações intensificam-se, uma vez que o final do confronto não trouxe a esperada liberdade, igualdade e fraternidade.8 A bioética passa, então, a assumir papel de destaque a partir da Declaração dos Direitos Humanos, que procurou traçar princípios basilares, estabelecendo prioridades e controlando as possibilidades “científicas y tecnológicas emergentes, propugnando, propiciando y garantizando el respeto a la liberdad, a la igualdad y a la dignidad de todos y cada uno de los seres humanos”9 .

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Apresenta-se como preocupação fundamental da bioética, a manutenção do homem como sujeito, evitando que se torne objeto em meio ao progresso biotecnológico. A missão da bioética é orientar as técnicas neste momento decisivo.10É também o que propõe Habermas, quando apresenta a passagem da razão instrumental, caracterizada pela instrumentalização do conhecimento pelo poder, para uma razão comunicativa, “responsável pela criação de um espaço público no qual o diálogo, como condição de possibilidade, deve permitir a construção de uma sociedade eticamente responsável”11 . Nesse sentido, a bioética “(...) deve abrigar em seu interior dialógico as várias disciplinas que representam as riquezas e peculiaridades do pensamento humano.12

Registra-se o surgimento do termo bioética em 1970, com o cientista norte-americano Van Rensselaer Potter13 e, posteriormente, com as obras de Beauchamp & Childress e de Engelhardt. O objetivo de Potter era “desenvolver uma ética das relações vitais, ou seja, dos seres humanos entre si e dos seres humanos com o ecossistema.” Dessa forma, o cerne de seu projeto possuía, como característica principal, o diálogo da ciência com as humanidades. “É a edificação de uma ponte entre essas duas culturas que tornará possível a construção de um caminho para o futuro.”14

Delimitar pontos de vista comuns por meio da racionalidade e da argumentação, é papel a ser desempenhado por uma base principiológica. Então, nada mais pertinente do que considerar os princípios da bioética como matrizes para o desenvolvimento da biotecnologia. Considera-se, como fonte da bioética principialista15 , o resultado do Relatório Belmont, publicado em 1978, pelos Estados Unidos, o qual estabeleceu como princípios a autonomia, a beneficência e a justiça.16 Esses princípios são baseados no utilitarismo, cuja premissa é “maximizar o bem global”17 . A obra de Beachamp e Childress deu a dimensão universal aos três princípios, como “fundadores de uma ética e de um biodireito na sociedade pluralista e democrática”18 e representativos dos valores dos direitos humanos.

O princípio da autonomia surge com o reconhecimento da dignidade da pessoa humana e sua liberdade de escolha. A autonomia manifesta-se na capacidade de o sujeito autolegislar-se, “ele não recebe normas éticas de fora, da natureza ou da divindade, mas ele dá a si mesmo sua norma ética com a exigência que sejaPage 326universalizável. Então é o ser humano autônomo que prescreve a si mesmo o imperativo categórico.” E a autonomia resulta no “respeito à pessoa, o direito a autoderminação, a vida, a saúde e a confidencialidade.”19

Assim, o pesquisador ou quem esteja envolvido diretamente no processo científico, não possui o poder de decidir pelo paciente. A este cabe, no exercício de sua autonomia e responsabilidade, escolher as medidas que mais lhe convierem (poder de opção), com base em informações tanto sobre o diagnóstico, quanto sobre a doença, passando o médico a atuar a partir do consentimento informado. Então, a autonomia impõe limitação “à intromissão dos outros indivíduos no mundo da pessoa que esteja em tratamento”20 , confere valor à vontade do ser humano envolvido no ato biomédico, garante a decisão “realizada por pessoa autônoma e capaz, tomada após um processo informativo e deliberativo, visando à aceitação de um tratamento específico ou experimentação, sabendo da natureza do mesmo e dos seus riscos.”21

A pessoa humana possui um valor incondicional em si mesmo e capacidade para decidir sobre seu próprio destino: “cada ser humano responde por si, sem relação com outros e sem relação com sua própria natureza (...)”22 . Kant atribui a autonomia à natureza do ser humano. Segundo o filósofo, “todo ser racional, nele incluso o homem, deve ser reconhecido como fim em si mesmo e não simplesmente como meio”. De acordo com Kant, a autonomia “é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional”. Pode ser entendida como “a constituição da vontade, pela qual ela é para si mesma uma lei – independentemente de como forem constituídos objetos do querer. O princípio da autonomia é, pois, máximas da escolha, no próprio querer, sejam ao mesmo tempo incluídas como lei universal”.23

A beneficência e a justiça são os outros princípios da bioética. A beneficência “tem suas origens na mais antiga tradição da medicina ocidental”24 e representa o respeito próprio transposto a terceiros. É um princípio substancial que “confere um conteúdo axiológico e deôntico às diversas comunidades morais: define o bem e determina que este se cumpra”25 . Pressupõe o compromisso do médico em empenhar “todos os esforços e empregar todos os meios técnicos tornados viáveis pela ciência e pela tecnologia para manter vivo o paciente”.

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O princípio da justiça reúne o valor da autonomia e da beneficência e objetiva dirimir os riscos de discriminação social, fortalecendo o respeito mútuo e impondo ao Estado garantir o tratamento de forma justa, com distribuição eqüitativa dos recursos na área da saúde e do desenvolvimento de pesquisas sobre seres humanos.26 Visa impedir a discriminação social, religiosa, econômica ou de outro tipo, ao tempo que enfatiza a distribuição eqüitativa e universal dos benefícios da ciência, com direito de acesso às novas técnicas e produtos.

2 (Bio) tecnologia, (Bio) ética e o (Bio) direito: em busca do equilíbrio

Uma questão pertinente à biotecnologia é a que se refere ao direito de propriedade imaterial, principalmente quanto ao Direito de Propriedade Industrial, cuja abrangência ultrapassa as fronteiras nacionais, protegendo em nível global as invenções e descobertas das empresas transnacionais que investem em pesquisa científica.27 . Nesse meio, o Direito corre o risco de abandonar a sua lógica de justiça, para servir a uma lógica de dominação. Entre os caminhos possíveis - a aceitação pacífica ou a recusa da tecnociência - encontram-se a responsabilidade e os limites da técnica. Algumas regras de prudência podem auxiliar nas escolhas de bens diversos, assim como no estabelecimento de relações com a ciência e a tecnologia. Francesco Bellino28 enumera algumas medidas para avaliar as escolhas:

  1. a regra da solução dos problemas: não se considera progresso científico ou tecnológico aquele que, realizado, cria mais problemas do que soluções;

  2. a regra do ônus da prova: quem apresenta um novo conhecimento científico, quem defende uma inovação tecnológica, quem abre uma empresa industrial, deve demonstrar que sua empresa não causa danos nem sociais nem ecológicos;

  3. regra do bem comum: o interesse do bem comum tem a pessoa em seus direitos humanos;

  4. regra da urgência; o valor mais urgente tem a precedência sobre o valor em si superior;

  5. eco regra: o ecossistema tem sua proeminência sobre o sócio sistema (a sobrevivência é mais importante do que viver melhor);

  6. regra da reversibilidade: nos progressos técnicos os progressos reversíveis devem ter proeminência sobre os irreversíveis, que...

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