Da Assunção de Dívida

AutorSilas Silva Santos
CargoJuiz De Direito No Estado De São Paulo
Páginas289-315

    Juiz De Direito No Estado De São Paulo. Especializando Em Direito Civil Pela Faculdade de Direito de Presidente Prudente.Professor Da Disciplina Direito Processual Civil Na Faculdade de Direito de Presidente Prudente. E-mail: silassilvasantos@hotmail.com

Page 291

1. Introdução

Este ensaio é fruto de breve meditação sobre as inovações do Código Civil em matéria de transmissão das obrigações, especificamente sobre a assunção de dívida, em cumprimento às metas traçadas no curso de especialização em Direito Civil da Faculdade de Direito de Presidente Prudente, vinculada à Associação Educacional Toledo.

Não se pode falar no Código Reale sem, num primeiro passo, traçar, ainda que em linhas gerais, a postura metodológica adotada pelo novel diploma legal, consubstanciada nos princípios da socialidade, da eticidade e da operabilidade.

O princípio da socialidade “reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundamental da pessoa humana”.1 Já o princípio da eticidade “funda-se no valor da pessoa humana como fonte de todos os demais valores”2, priorizando a eqüidade, a boa-fé, a justa causa e demais critérios éticos, de molde a conferir ao juiz maior poder na busca da solução mais justa ou eqüitativa, sempre se levando em conta que o direito existe para ser efetivado, ou seja, para ser posto em prática, saindo do mundo abstrato dos Códigos para ingressar na vida das pessoas. Nisso consiste, aliás, o princípio da operabilidade, o qual traz em seu bojo, mesmo que implicitamente, o princípio da concretitude, já que o Código Civil de 2002, tanto quanto possível, buscou dispor legislativamente sobre a vida das pessoas situadas numa posição concreta: “para o homem enquanto marido; para a mulher enquanto esposa; para o filho enquanto um ser subordinado ao poder familiar. Em mais de uma oportunidade o novo Código optou sempre por essa concreção, para a disciplina da matéria”3.

Sobre essa alteração metodológica, confira-se a lição da professora JUDITH MARTINS-COSTA, verbis:

Como já tivemos ocasião de observar, não é uniforme o tecido das relações sociais, não se apresentando a sociedade como uma harmônica sinfonia de vozes promanadas por um abstrato sujeito dePage 292 direito: hoje, à metáfora da sinfonia, substitui-se a da polifonia, por vezes mesmo a da cacofonia. Se na Codificação oitocentista a ficção da igualdade era o suporte ideológico dos próprios atributos das regras codificadas, quais sejam, a sua generalidade e abstração – a primeira designando ‘o caráter anônimo dos destinatários’, a segunda, ‘o caráter hipotético da ação disciplinada’ – hoje em dia essa ficção não mais remanesce nas normas ora codificadas, polarizadas que estão pela diretriz da concretude, que significa a observância da ‘ética da situação’. Por isso o apelo, tantas vezes feito na nova Lei Civil, inclusive em tema de adimplemento e inadimplemento, a conceitos flexíveis ou ‘fórmulas ordenadoras’, tais como ‘usos do lugar’, ‘circunstâncias do caso’, ‘natureza da situação’, ‘eqüidade’, ‘desproporção manifesta entre as prestações’, ‘premente necessidade’, ‘boa-fé’, ‘utilidade da prestação’, ‘fins econômicos e sociais’ do direito subjetivo, para permitir ao aplicador do Direito descer do plano das abstrações ao terreno rico e multiforme do concreto.4

Lançadas essas premissas básicas, deve-se ainda realçar a diretriz traçada pelo novo Código quanto à estrutura da relação obrigacional, pois a nova legislação soube discernir entre as fases de criação do vínculo, seu desenvolvimento e seu desaparecimento, estando essa última etapa dividida entre o modo normal ou habitual (adimplemento) e o patológico (inadimplemento). Para tanto, o Código disciplinou, no Título I, as modalidades das obrigações, isto é, a forma segundo a qual podem as obrigações se revestir em suas origens, enquanto que no Título II cuidou de regular a mobilidade que pode existir durante o desenvolvimento da relação obrigacional (cessão de crédito e assunção de dívida). Por fim, veiculou, no Título III, as formas pelas quais o vínculo é extinto, seja pelo adimplemento (forma normal ou fisiológica de extinção), seja mediante as outras formas indiretas de extinção (novação, remissão, sub-rogação etc). Restou ao Título IV o estabelecimento de regras sobre a patologia da relação obrigacional, a saber, as formas e efeitos do inadimplemento.

Uma vez situado o objeto dessas breves considerações naquilo que a doutrina chama de mobilidade do vínculo obrigacional, residente no Capítulo II, Título II, do Livro I, da Parte Especial, passa-se, doravante, a uma sucinta e necessária incursão histórica e doutrinária sobre a assunção de dívida para, depois, serem analisadas algumas das questões que o novel estatuto civil pode suscitar, sempre com olhos postos nos princípios informadores da codificação atual.

Page 293

2. Transmissão das Obrigações

A estrutura das obrigações está calcada no vínculo jurídico estabelecido entre devedor e credor, cujo objeto consiste numa prestação economicamente apreciável, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-se o adimplemento por intermédio do patrimônio do devedor.5 Está muito clara, assim, a existência de uma relação regida pelo Direito que vincula credor e devedor acerca de uma prestação economicamente apreciável, sendo o patrimônio de quem deve a garantia do cumprimento obrigação.

Todavia, nem sempre se pensou assim, já que os romanos, “sobretudo no período anterior à publicação da célebre Lex Poeteli Papiria de nexis6, viam na obrigação um vínculo estritamente pessoal, sem referência ao patrimônio do devedor como garantia do adimplemento, à vista do que não se concebia a alteração nos elementos da obrigação sem que ela própria fosse substancialmente alterada.

De fato, conforme acentua António Menezes Cordeiro, “no Direito Romano, a única possibilidade admitida de transmitir obrigações estava ínsita nas transmissões a título universal, isto é, naquelas que ocorriam quando todo o patrimônio duma pessoa era transferido para esfera de outro”7, tal como se dá na sucessão hereditária, de vez que o vínculo obrigacional “era considerado como estrita e absolutamente aderente à pessoa, pelo que a mudança de um dos termos não podia deixar de implicar uma alteração na própria individualidade do vínculo, uma extinção da primitiva relação obrigatória, à qual uma outra completamente diversa se vinha substituir”.8 Para JOSSERAND, o antigo direito romano resolvia o problema da transmissão das obrigações de maneira rigorosa, pois “cuando se quería cambiar uno de los términos de la relación obligatoria, tenía que extinguirse la obligación para sustituirla por una relación jurídica nueva”.9

Logo, para os romanos, a alteração subjetiva num dos pólos da relação obrigacional operava, inafastavelmente, a novação, ou seja, a extinção do vínculo primitivo com o surgimento de um outro, dotado de individualidade própria.

Contudo, diante da expansão do comércio marítimo, criou-se paulatinamente a necessidade de se facilitar a circulação dos meiosPage 294 de pagamento, para satisfazer as exigências de uma economia de troca como a que surgiu nos Estados europeus no limiar da Idade Média.10

A possibilidade de transmitir obrigações foi sedimentada no norte da Europa nos séculos XIV e XV, sendo certo que em Portugal, já no século XVI, as Ordenações Manuelinas continham passagem referente ao “cedimento e trespassamento” de obrigações.11

O Código Civil francês de 1804 admitiu a transmissão de obrigações pelo lado ativo da relação obrigacional, por meio da sub-rogação e da cessão de crédito, circunstância que influenciou o legislador italiano de 1865, bem como as codificações espanhola e portuguesa.

Tempos depois é que surgiu na legislação alemã a possibilidade da transmissão da obrigação pelo seu lado passivo – conforme se verá com mais vagar –, sem se poder olvidar da chamada “cessão da posição contratual”, que é o mais jovem dos institutos relacionados à transmissão das obrigações, previsto expressamente nos Códigos italiano e português.

Num sentido bem amplo, pode-se dizer que “uma situação jurídica se transmite quando, produzindo ela, em determinado momento, efeito em relação a uma pessoa, passe, num segundo tempo, a produzir efeitos em relação a outra”.12

Em sentido estrito, todavia, a transmissão ocorre quando “uma permissão normativa de aproveitamento de determinados bens, dirigida a um sujeito, passe a ser reportada a outro. Quando o bem em causa seja uma prestação, deparamos com a transmissão dum crédito. Paralelamente, podemos definir a transmissão do débito, como a ocorrência pela qual o dever de prestar que assista a uma pessoa passe a assistir a outra”.13

Por conta da relevância e clareza da exposição, merecem transcrição os ensinamentos de Antunes Varela acerca da noção de transmissão das obrigações:

O vocábulo transmissão (de trans + mittere), aplicado aos direitos de crédito, como aparece na epígrafe do capítulo que principia no artigo 577º, emoldura uma imagem: a de que os direitos de crédito, não obstante se tratar de puras criações do espírito, se deslocam (trans + mittuntur), como coisas materiais que fossem, de uma pessoa (transmitente) para outra (adquirente). E essa imagem,Page 295 longe de constituir um mero recurso anódino da linguagem jurídica, reveste um sentido bem definido: o de que o direito de crédito, nascido na titularidade do adquirente, é o mesmo direito que pertencia ao transmitente, e não um outro, moldado apenas à semelhança do primeiro.14

É nesse contexto de transmissão das obrigações pelo seu lado passivo que figura a assunção de dívida, analisada...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT