Disposição de Órgãos para Transplante

AutorAlessandra Cristina Furlan/Rita de Cássia Resquetti Tarifa Espolador/Karina Matos Cunha Maziero
CargoMestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)/Doutoranda em Direito Civil na Universidade Federal do Paraná (UFPR)/Discente do curso de Direito da Universidade Norte do Paraná (UNOPAR)
Páginas49-56

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1 Introdução

O mundo tem vivenciado extraordinária revolução na tecnologia, biotecnologia e biomedicina, nas últimas décadas. O progresso científico trouxe multiplicação de tratamentos para as mais variadas doenças. Nesse contexto, o advento do transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano assinala o avanço no campo da Medicina, com progressos espetaculares. A transplantação tornou-se procedimento terapêutico seguro, que possibilita a reabilitação física e social do paciente.

Se por um lado tais progressos receberam o aplauso e a admiração sociais, por outro, o assunto desperta uma série de discussões de caráter científico, filosófico e jurídico. Desta forma, os benefícios advindos dos conhecimentos e técnicas que tornaram possível o uso em separado das diversas partes do corpo humano envolvem questões éticas, conflitos de interesses e de valores. Questões como a real necessidade terapêutica, a autorização do doador ou da família do doador, a compensação pecuniária e outros dilemas que a Ética e o Direito são chamados a resolver. Há ainda outras questões polêmicas envolvidas na doação de órgãos como a utilização de fetos anencéfalos, o xenotransplante, a clonagem terapêutica, o progresso técnico na prática de reanimação (eutanásia e distanásia) e o momento da morte.

No Brasil, após muitos debates, atribuiu-se ao legislador a tarefa de regulamentar a transplantação de órgãos, tecidos e partes do corpo e incentivar a doação entre vivos ou post mortem. Uma série de leis foram aprovadas, influenciadas estas pela opinião pública. A partir de 1997 teve início a implantação da política e do sistema nacional de transplantes.

Nada obstante, a regulamentação legal não solucionou as necessidades sociais. Isto porque, se o transplante passou a ser acessível à população em geral, as doações voluntárias, que atendiam adequadamente a demanda até o final dos anos 70, hoje são insuficientes. Embora o crescente número de doações, existe inquestionável desequilíbrio entre o excesso de demanda e a escassez da oferta dos órgãos disponíveis. É a realidade, pois a cada ano morrem milhares de pessoas que poderiam ter sido salvas se houvessem recebido os órgãos apropriados nas condições, lugares e momentos adequados1.

Portanto, há crescente número de pacientes em lista de espera para transplante e elevada taxa de morte em lista de espera: em torno de 10 a 30% (CLEMENTE, 2008). Assim, o transplante tornou-se

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uma vítima de seu próprio sucesso, com um crescente distanciamento entre a demanda para transplante e a disponibilidade de órgãos e tecidos (GARCIA, 2006, p. 314).

Desta feita, a doação e o transplante de órgãos é tema que constantemente ocupa a mídia, seja em noticiários, seja em campanhas para incentivar as doações.

Muitos se perguntam: faltam órgãos ou faltam doações? Infelizmente a realidade é inquestionável: não faltam cadáveres. Sobretudo cadáveres de pessoas jovens, cujos órgãos transplantáveis estão geralmente em perfeitas condições, quer se trate de mortes prematuras ou por doenças, quer se trate de mortes causadas pela violência de acidentes de trânsito ou de crimes. Os órgãos, portanto, existem. Mas porque a falta de órgãos para doações?

Assim, a análise dos fatores que culminam na incompatibilidade entre a quantidade de cirurgias realizadas e as necessidades da população consiste em exigência social. Com base nestas premissas, o presente estudo teve por objeto a pesquisa teórica a respeito do transplante de órgãos com finalidade terapêutica, ou seja, com o propósito de ser utilizado em pessoa enferma e destinado à sua cura, visando melhorar as condições de vida desta pessoa. Exclui a transplantação que permanece no campo da experimentação pura, assim como os xenotransplantes ou heterotransplantes2.

O estudo tem por objetivo principal o estudo e a discussão da legislação pátria a respeito do transplante e de fatores apontados pela doutrina como responsáveis pela carência de órgãos. A problemática da escassez de órgãos será analisada. A hipótese consiste na assertiva de que a falta de órgãos pode ser obtida através de um esforço conjunto da sociedade, do Estado e dos profissionais, com a adoção de medidas legais, educacionais, financeiras e organizacionais.

A pesquisa apresenta alguns conceitos essenciais para a compreensão do tema, uma breve retrospectiva histórica da evolução legislativa no Brasil, os diversos tipos de transplantes que podem ser realizados e os requisitos legais para o denominado transplante post mortem. Discute a questão do consentimento e da morte encefálica. Enfim, aponta alguns fatores responsáveis para a escassez de órgãos transplantáveis no Brasil. Trata-se de tema interdisciplinar, envolvendo áreas distintas do Direito e da Medicina.

O método utilizado foi o dedutivo, com análise da legislação e de material doutrinário constante em livros, revistas jurídicas ou não, artigos em revistas, periódicos e internet. Também se utilizou o método histórico e o método comparado.

Portanto, o objetivo final é a análise da legislação e discutir onde estão os problemas que envolvem os transplantes, sem a pretensão de exaurir o assunto e solucionar a problemática, mas apenas apresentar considerações gerais a respeito do assunto.

2 Conceito

Inicialmente, antes do estudo da legislação, é importante uma rápida exposição do conceito de transplante e outros termos importantes para a compreensão do assunto.

A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos define o transplante como: um procedimento cirúrgico que consiste na reposição de um órgão ou tecido de uma pessoa doente - receptor - por outro órgão normal de um doador, morto ou vivo. É um tratamento que pode prolongar a vida com melhor qualidade, ou seja, é uma forma de substituir um problema de saúde incontrolável por outro sobre o qual se tem controle (BANDEIRA, 2001, p. 28).

Assim, o transplante é a substituição de um órgão "doente" por um "saudável", com o intuito de melhorar a saúde do receptor e aumentar a sua expectativa de vida. Não se confunde com o enxerto, pois neste a parte enxertada não possui função autônoma. Também difere do implante em que retira do lugar um tecido, ou parte de um organismo para ser colocado noutro local do mesmo corpo, como os implantes de pele (autotransplante) (BANDEIRA, 2001).

Por sua vez, órgão é a parte do corpo que goza de certa autonomia e desempenha uma ou mais funções especiais e o tecido é o conjunto de células de origem comum, igualmente diferenciadas para o desempenho de funções, num organismo vivo (BANDEIRA, 2001). Enfim, doador e receptor são designações para os indivíduos que, respectivamente, cedem e recebem os tecidos ou órgãos transplantados (CHAVES, 1994).

Importante destacar a respeito dos conceitos e termos acima apresentados é que eles são utilizados pelo legislador na lei de transplante e decorre de noções fornecidas pela Medicina.

Ressalte-se ainda que, o termo 'doação de órgãos' é impróprio, pois no sentido técnico, o transplante não envolve contrato de doação e sim um ato de disposição do próprio corpo (TEPEDINO; BARBOZA; MORAES, 2004). Nada obstante, referido termo será mantido no artigo, guardando consonância com a legislação pátria que trata do assunto.

3 Antecedentes Legislativos no Ordenamento Jurídico Pátrio

A noção de substituir órgãos doentes do corpo por outros saudáveis remonta pelo menos há 3 mil anos, com referências lendárias3 documentadas em civilizações antigas, como

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Mesopotâmia, Egito, Índia e China (SÁ, 2003).

A partir do final do século XIX e início do século XX há registros concretos de cirurgias de transplante. Mas, o marco na história dos transplantes deu-se em 1967, na cidade do Cabo, África do Sul, onde o médico Christian Barnard realizou com êxito o primeiro transplante de coração (SILVA, 2002).

Superada a etapa pioneira em que certos transplantes representavam alto risco e tinham pouco êxito, hoje é prática amplamente utilizada, sendo que os resultados positivos ocorreram após "a descoberta de um imunorregulador (Ciclosporina A) que ajuda a superar a rejeição do órgão e permite a histocompatibilidade" (JUNGES 1995, p. 205). Não chamam mais a atenção transplantes de coração, rins, fígado, córneas, pâncreas e ainda, enxerto de pele, tecido muscular e medula óssea. Na área experimental, há transplantes de pulmão e intestinos e já se especula a possibilidade de transplantes de membros e até mesmo de cérebro (PESSINI, 2007).

Na medida em que superam as dificuldades e se aperfeiçoa a técnica cirúrgica, tornando o transplante uma prática amplamente recomendada para algumas doenças, os debates éticos aumentam tanto no Brasil, como em outros países. No direito positivo, uma série de leis foi editada com a finalidade de regulamentar essa atividade.

Em 1963, a Lei n. 4.280 dispôs pela primeira vez sobre a "extirpação de órgão ou tecido de pessoa falecida", seguida pela Lei n. 5.479, de 10.08.68 (CHAVES, 1994, p. 224). Na década de 80, a Constituição Federal de 1988 fez referência ao tema no art. 199, § 4º, coibindo a mercantilização do corpo humano. Foi aprovada a Lei n. 8.489, de 18.11.1992 regulamentada pelo Decreto n. 879, de 22.07.1993 sobre a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, com fins terapêuticos e científicos.

Durante esse período, diversos projetos de lei foram apresentados para regulamentar a cirurgia de transplante e tentar aumentar a demanda por órgãos, como o que diminuía a pena do detento que 'optasse' por doar órgãos (SILVA, 2002).

Com a finalidade de reduzir a carência de órgãos, em 5 de fevereiro de 1997 foi publicada a Lei n. 9.434, regulamentando a doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e...

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