Cartas do Carcere: horizontes de resistencia politica/Prison Letters: horizons of political resistance.

AutorFlauzina, Ana
CargoLetter to the editor

O carcere e um repositorio de dores sufocadas, de gritos abafados, de lagrimas perdidas. Alem do sequestro dos corpos, ha ainda o emudecimento das denuncias e das perspectivas confiscadas no mesmo pacote da liberdade. Mas essa violencia brutal, que quer se fazer absoluta, tem a marca da humanidade como contraponto de sua intervencao. Historicamente, as mordacas das algemas geraram testemunhos poderosos, reflexoes profundas, rebeldias poeticas numa linhagem de palavras que consubstanciam o que se chama "escritos do carcere". De Miguel de Cervantes a Antonio Gramsci, passando por Angela Davis, Graciliano Ramos e Mumia Abu- Jamal, a reclusao resultou em afirmacao de ideias e horizontes revolucionarios (CERVANTES, 2002; GRAMISCI, 2004; DAVIS, 1989; RAMOS, 1969; ABU-JAMAL,1996). A resistencia atraves do verbo e, portanto, uma marca fundamental da experiencia do encarceramento.

No oceano de palavras que cruzam as grades vigiadas dos estabelecimentos prisionais, estao as cartas analisadas no ambito do projeto "Cartas do Carcere", fruto do acordo firmado entre o Programa das Nacoes Unidas (PNUD) e a Pontificia Universidade Catolica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em atendimento ao edital da Ouvidoria Nacional dos Servicos Penais (ONSP) do Departamento Penitenciario Nacional (Projeto BRA/14/001).

Diante da provocacao do dossie "Repensar a legislacao e as politicas publicas desde o antirracismo em contextos europeus e latino-americanos" temos agora a oportunidade de apresentar alguns dados levantados no curso do projeto, ecoando vozes historicamente silenciadas na experiencia do encarceramento. O corpus da pesquisa foi composto por correspondencias enderecadas as instituicoes publicas no ano de 2016. Foram analisadas 8.818 cartas, que, em ultima instancia, podem ser retratadas como sobreviventes de um longo itinerario institucional que quer inviabilizalas.

Enfrentando as varias dimensoes de uma burocracia que extrapola os limites do carcere, as cartas tem de passar por diversos obstaculos para que, saindo do pavilhao em que sao escritas, possam chegar ao seu destino final. Barreiras que obstaculizam a mais republicana das garantias fundamentais--o direito de peticao--e que impedem o exercicio de um direito fundamental a consolidacao da democracia--o direito a comunicacao.

Alem dos entraves procedimentais do sistema, e importante sinalizar que as correspondencias das(os) encarceradas(os) tem de confrontar os ditames da censura. Nesse tocante, de um modo instrutivo, as cartas nos revelam os limites impostos aquilo que pode ser dito, denunciado, cobrado. Apesar da tentativa de silenciamento, algumas conseguem atravessar os muros com relatos contundentes, no lastro de uma resistencia feita de ousadias.

Para compor o trajeto guiado pelas referidas vozes, na primeira parte do artigo faremos uma descricao dos perfis das/os remetentes das cartas, os modos de comunicacao mobilizados, bem como a indicacao das/os principais destinatarias/os das correspondencias. Em seguida, passamos a apresentar as demandas e denuncias que movem as narrativas, de forma a que possamos nos aproximar do universo de reivindicacoes apresentadas, em primeira pessoa, por aquelas/es que sofrem desproporcionalmente os efeitos do encarceramento em massa. Por fim, passamos a explorar as tenues linhas que separam a realidade dentro e fora das grades para os grupos racialmente hierarquizados na sociedade brasileira, apontando as cumplicidades dos poderes constituidos com a (re)producao do racismo, em suas mais variadas formas de expressao.

Esse trabalho repousa sobre o precioso substrato que sinaliza as brechas pelas quais palavras duras, denuncias e pedidos escapam da omissao, da debilidade e da vigilancia institucionais, apontando para a realidade de um sistema que nao cessa de atestar suas conexoes estruturais com o racismo e com a reproducao da violencia. E a partir desses relatos que se pretende pensar os mecanismos institucionais que mantem o carcere como realidade possivel, o que dizem sobre o Estado de Direito e sobre os limites dos pactos politicos que somos capazes de produzir. Com esse esforco, esperamos contribuir para uma melhor compreensao dos desafios aos atendimentos das necessidades das/os encarceradas/os, bem como situar esses sujeitos como portadores de perspectivas centrais para o desmantelamento das estruturas perversas que assolam o sistema de justica criminal no pais.

  1. Quem escreve, como escreve e para quem escreve

    A aproximacao com o perfil das/os remetentes das cartas e das formas pelas quais optaram por apresentar suas demandas e denuncias a distintas instituicoes publicas foi a fase mais crucial da pesquisa (1).

    Em primeiro lugar, porque nosso compromisso era o de que as cartas definissem a agenda de pesquisa, bem como determinassem os contornos epistemico-politicos de nossa abordagem. Em segundo lugar, porque ao toma-las como documentos politicos de nosso tempo historico e repositorio de sofisticada analise conjuntural sobre o que somos enquanto sociedade, nao ha lugar para mediacao e preconcepcoes sobre o conteudo refletido em cada linha. E, por fim, assumindo uma postura antirracista, as hierarquizacoes de humanidade que propiciam apropriacoes rapidas e simplificadoras da complexidade das experiencias dos que habitam a zona do nao ser (2) precisam ser confrontadas com narrativas encarnadas, escrevivencias (3) (Evaristo, 2007), de sujeitos politicos reconhecidos em sua plena humanidade. E tudo isso so era possivel a partir da aproximacao do perfil de quem escreve, das formas que elegem para escrever e do conteudo ali refletido.

    Conforme assinalado anteriormente, trabalhamos com o universo de 8.818 cartas recebidas pela ONSP no ano de 2016. Nesse contexto, 94% das cartas foram escritas pela propria pessoa e encaminhadas aos respectivos destinatarios pela unidade prisional, por familiares ou por organizacoes de direitos humanos; 3% das cartas sao escritas por outras pessoas presas, 2% sao escritas por familiares ou amigos e 1% sao cartas escritas coletivamente. Do total de cartas, 204 foram escritas por pessoas que nao estavam privadas de liberdade em nome de pessoas que estavam presas e, destas, 72% escritas por mulheres (35% por maes e 37% por esposas).

    A definicao do perfil das cartas analisadas por genero levou em conta o nome apresentado e a maneira pela qual a pessoa se referia a si mesma no processo de escrita. Nesse sentido, mais de 80% das correspondencias foram identificadas como do sexo masculino. Segundo o Levantamento Nacional de Informacoes Penitenciarias (INFOPEN), publicado em 2017, a populacao prisional masculina corresponde a aproximadamente 90% das pessoas privadas de liberdade no Brasil, sendo necessario levar em conta o impacto das subnotificacoes quando se toma os dados apresentados no referido documento.

    Orientacao sexual ou identidade de genero foram explicitadas em 132 cartas, menos de 1% do universo analisado, e contou com as seguintes identificacoes: travestis; homossexuais, lesbicas e heterossexuais. Nao ha dados nos Levantamentos Nacionais de Informacao Penitenciaria sobre o total de pessoas privadas de liberdade por orientacao sexual ou identidade de genero.

    A pertenca racial, por sua vez, marca o sistema prisional no Brasil. Segundo o INFOPEN 2017, 64% da populacao prisional brasileira e negra, percentual que desagregado por Estados pode chegar a 95% no Acre, 72% no Rio de Janeiro, 89% na Bahia, 79% em Goias e 91% no Amapa. O perfil racial foi muito pouco enunciado nas cartas lidas no ambito do projeto Cartas do Carcere e, quando presente utilizava-se do repertorio de identificacao fomentado pelos mitos da mesticagem e da democracia racial brasileira, mobilizando expressoes como: "de cor", "mais claro", "moreno", "moreno claro", "escuro".

    Nesse aspecto, e preciso rememorar que tais correspondencias foram encaminhadas com demandas e denuncias sobre o descumprimento de regras destinadas ao funcionamento das unidades prisionais no Brasil. Nesse contexto, e diante do racismo institucional que marca o funcionamento dos orgaos do sistema de justica, o silenciamento da identificacao racial por parte dos/as remetentes denota nao apenas os efeitos do racismo sobre o processo de enunciacao de pertencimento racial como tambem a consciencia do significado que pode ter essa afirmacao no momento da analise, por instituicoes publicas, das demandas e denuncias apresentadas.

    No que se refere ao perfil etario dos/as remetentes, das 4.117 cartas que contem a data de nascimento expressa, tem-se que a maioria foi escrita por pessoas entre 30 e 59 anos, idade media superior a da massa carceraria que e composta por 30% de pessoas entre 18 e 24 anos; 25% com idade entre 25 e 29 anos; 19% de pessoas com idade entre 30 a 34 anos e 19% entre 35 e 45 anos (INFOPEN, 2017).

    Quanto a nacionalidade, e pequeno o numero de estrangeiros/as que recorreram as cartas como forma de comunicacao com instituicoes publicas brasileiras. Das 8.777 que possuiam declaracao de nacionalidade, 8.720, ou seja, 99% foram escritas por brasileiras e brasileiros. Das 57 cartas escritas por estrangeiros, nem todas explicitam as respectivas nacionalidades, 32 delas possuem apenas a designacao generica "sou estrangeiro/a". Entre as nacionalidades indicadas expressamente estao: colombiana, boliviana, angolana, congolesa, egipcia, espanhola, libanesa, nigeriana, paraguaia...

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