Capítulo II

AutorPaulo Rubens Salomão Caputo
Ocupação do AutorBacharel em Direito - UFMG. Especialista em Direito Processual - PUC Minas
Páginas47-132

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19. Jurisdição e ação (e demais sincategorias da teoria processual) no Estado Democrático de Direito

O Livro II do Código, que compõe a sua Parte Geral, ao lado do Livro I (que cuida das normas processuais), aborda a jurisdição civil e a ação.

Tais temas, como antecipado no item 2, incluem-se nas ditas sincategorias as quais, a seu turno, e ao lado das do processo e do caso julgado (ou coisa julgada), dão corpo ao que se designa nesta obra de teoria do processo de bases constitucionais ou teoria processual.

Embora o art. 16, que inicia o Título I, refira-se à jurisdição civil (exercida em todo o território pelos juízes brasileiros – a Magistratura nacional), a rubrica que o encima, após a enunciação do Livro II, trata em termos gerais da função jurisdicional.

A função jurisdicional vincula-se aos parâmetros do Estado do qual ela é uma das suas expressões, ao lado da função legislativa e da função administrativa ou executiva.

Um Estado que se autodesigna Democrático de Direito (CF/88, art. 1º), há de ter uma jurisdição a tanto apropriada.

O perfil do Estado Democrático de Direito é dado pelo conjunto de princípios que conformam a própria Constituição num todo unitário e complexo.

Uma Constituição, assim, de bases principiológicas, para se manter materialmente legítima (politicidade) e formalmente válida e vinculante (juridicidade), há de permanentemente equilibrar estes dois núcleos sensíveis.

Nesse desiderato, além de preservar um núcleo duro (art. 60, § 4º), a Constituição Federal mantém em cotensão os seus princípios (afastando a antinomia material-ontológica e privilegiando a concordância) e os põe como vetores de interpretação da própria ordem constitucional e de conformação, a esta, da ordem infraconstitucional.

Tanto a interpretação da Constituição como a conformação do ordenamento são cometidos à jurisdição constitucional, seja no exercício concentrado (direto) desse controle, seja no difuso (exercido incidentalmente por qualquer órgão jurisdicional), formando um sistema de justiça constitucional reciprocamente implicado: material-judicialmente.

Essa implicação recíproca e permanência principiológica constitucional (vetorização) tem no devido processo, a um só tempo, um locus (espaço público de discernibilidade e discutibilidade) e medium linguístico-dialógicocomunicativo (democrático-participativo), tanto que é ele mesmo um princípio constitucional de duplo sentido: material-processual.

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Daí que a decisão jurisdicional, ou provimento, no Estado Democrático de Direito, não pode pretender fundar-se exclusivamente no argumento da autoridade, mas ser ato material-processualmente motivado (art. 93, IX), validando-se e legitimando-se pela efetiva participação dialógica das partes legitimadas com o Estado-jurisdição, sob pena de não ser ato representativo do exercício de uma jurisdição democrática e de não salvaguardar o exercício da cidadania em uma de suas formas essenciais: o da direta participação na tomada de decisão (qualquer que seja ela: da administração, da legislação ou da jurisdição) pelo poder público estatal.

A compreensão do processo na sua inserção como sincategoria de uma teoria processual (sistema, categorias, institutos, conceitos e definições) no Estado Democrático de Direito é o tema relevante, voltando-se à valorização do seu papel constitucional de garantia da ordem democrático-participativa e dos direitos fundamentais individuais e coletivos, tudo em amplo proveito da cidadania.

Nessa ordem de ideias, é indispensável revisitar os conceitos e termos de uma teoria do processo no Estado Democrático de Direito, onde a tônica é a participação, mas não simplesmente de dizer e contradizer, e sim de realmente influenciar a construção, por assim dizer, da norma concreta ou norma de decisão.

Embora em unidade complexa, analiticamente há de se ver os princípios constitucionais que disciplinam a jurisdição (princípios da jurisdição) e o processo (princípios do processo), mas não de modo atomizado, e sim sistemático destes, e destes com a ação; ver que o modelo constitucional do processo deve ser seguido tanto na reorientação do chamado processo de partes como, com maior razão ainda, no processo coletivo, ou até no objetivo (do controle de constitucionalidade). Afinal,

... não se pode esquecer da advertência de que o problema da tutela constitucional de jurisdição é, essencialmente, o problema das leis processuais e de sua eficácia prática. Todo o labor do Legislativo tem de ser, de tal sorte, empenhado na busca de fazer com que essas leis sejam, ao extremo, fiéis à Constituição. E essa fidelidade completa só se atinge quando se regulamenta a Justiça como um todo, até encontrar a real e completa solução de sua problemática, que só pode ser localizada na mais completa, harmônica e eficaz conjugação dos ideais constitucionais com as leis de processo e com as de organização dos órgãos judiciários que terão de pô-las em prática. Não se pode, nem de lege lata, nem de lege ferenda, raciocinar em torno do processo como simples rotina de trabalho forense, como é óbvio. É a própria resolução da Justiça, como garantia constitucional do Estado de Direito, que está em jogo a cada ato ou instituto processual, por pequenos e

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insignificantes que aparentem ser. Atrás das palavras e ordens do magistrado, a cada momento da marcha processual, están no solo la ley y la Constitución, sino la historia misma con el penoso proceso formativo de la liberdad ... A Constituição, portanto, continua a ser Constituição, enquanto os juízes lhe emprestarem tal autoridade dentro da estrutura viva da sociedade, porque, em última análise, la Constitución vive en tanto se aplica por los jueces.44No sistema jurídico-constitucional brasileiro, inegável a transversalidade da jurisdição constitucional e seus reflexos:

... a rigor, toda jurisdição é constitucional, pois os órgãos jurisdicionais, quaisquer que sejam, não só podem como devem apreciar e decidir as questões constitucionais suscitadas em qualquer processo, nos casos concretos levados à sua apreciação para julgamento; a partir daí, lógica e consequentemente, todos os órgãos jurisdicionais são (ou devem ser) órgãos da jurisdição constitucional.45Compreender a jurisdição, a ação, o processo e o caso julgado (ou coisa julgada) no Estado Democrático de Direito é melhor assegurar que alcance seus fins constitucionais de garantia dos direitos fundamentais individuais e coletivos e de reafirmação constante da legitimidade da ordem constitucional e da validade dos atos de Estado de conformidade com ela exarados, em consequente respeito e fortalecimento da própria cidadania.

20. Sociedade civil e Estado Moderno

A sociedade sempre é marcada por contingências históricas em determinado tempo–espaço. Embora essa contingência, em determinado tempo-espaço seja uma, e noutro, outra, e assim por diante, permanentemente está ela presente na vida de toda e qualquer sociedade. Há contingências mais abrangentes (ainda mais em um mundo dito globalizado...) e mais particulares, mas sempre há contingências. Entre as muitas e inatas necessidades da(s) sociedade(s) está a de ordem46, de civilidade.

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No plano que interessa ao direito processual civil, a despeito de opiniões em contrário, não se vê como apartar a problemática do direito em si (e sua teoria geral, ou de justificação) da problemática do processo (e sua teoria geral correspondente, que é, reafirme-se, uma teoria do processo de bases constitucionais ou teoria processual).

Não que com isso se queira retroceder para retirar do estudo do direito processual civil a autonomia científica ou acadêmica.

Apenas se quer pontuar, quando menos, a ideia de ordem, e mais, de ordem político-jurídica, portanto, instituída positivamente por uma sociedade civil organizada que se expressa na modernidade do mundo ocidental na figura do Estado (tri-)partido funcionalmente.

Não devíamos fazer ouvidos moucos, mas sim eco, à advertência de Carnelutti47:

O segredo do direito está exatamente nisto: que os homens não podem viver no caos. A ordem lhes é tão necessária como o ar que respiram. Como a guerra se resume na desordem, assim a ordem se resume na paz. Os homens fazem guerra uns aos outros, mas precisam viver em paz. A guerra, pois, nem tanto termina com a paz, mas tende à paz. O que põe fim à guerra é o pactum, e a raiz de pacto é pax. Outra palavra expressiva é a de contrato, que quer dizer no fundo o...

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