Cade vs. Bacen. Conflitos de competência entre autarquias e a função da Advocad a-Geral da União

AutorEros Roberto Grau e Paula A. Forgioni
Páginas7-25

Page 7

O fenômeno das "agências" no Brasil. A livre concorrência e a livre iniciativa na Constituição do Brasil. Pluralidade de mercados: a necessidade de ajuste da política concorrencial. Normas gerais e normas especiais. Setores específicos da economia regidos por leis específicas e a lei antitruste. A Lei 4.595, de 1964: norma específica quando considerada em relação à Lei 8.884, de 1994. A falta de oposição do BACEN às concentrações bancárias como elemento de atribuição de competência ao CADE - Inconsistência do argumento. A posição do BACEN e do CADE nos quadrantes da Administração Pública Federal. A Lei Complementar 73, de 1993, e o CADE. A aprovação de concentração entre instituições financeiras pelo BACEN e a impossibilidade de sua revisão ou contradita pelo CADE: a boa-fé da Administração. O controle de constitucionalidade e a Administração. Conclusão.

"O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino."1

1. No final da década dos noventa, o CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica, ex officio, passou a dar nova interpretação aos textos da Lei 8.884, de 1994, e da Lei 4.595, de 1964, arrogan-do-se competência para apreciar e deliberar sobre os atos de concentração entre instituições financeiras. Inicialmente, surpreendeu o mercado com o envio de chamadas "cartas-alerta" a muitas delas, advertindo-as de que deveriam apresentar à autoridade antitruste as operações de concentração de que houvessem participado;2 posteriormente, passou a impor multas às instituições financeiras que não seguiam sua "advertência".

O BACEN - Banco Central do Brasil, de outra banda, não admitia que essas operações de concentração fossem analisadas pela autoridade antitruste, que poderia vir a impor ao setor lógica diversa daquela projetada em coerência com os parâmetros dispostos pela Lei 4.595, de 1964.

Page 8

Tornou-se evidente o conflito produzido em razão das díspares interpretações de textos normativos pelas autarquias envolvidas na disputa, bem como a situação de insegurança a que eram submetidos os administrados. Como observou, na ocasião, o então Presidente do CADE, Grandino Rodas: "Afinal, o administrado, hoje, está sujeito, em potencial e em última análise, ao julgamento do mesmo fato por dois órgãos diferentes, independentes e que podem, eventualmente, proferir decisões contraditórias".3

  1. A matéria foi apreciada pela Advo-cacia-Geral da União - AGU, cujo Parecer GM-020 concluiu ser o B ACEN a entidade da Administração competente para análise e aprovação de atos de concentração envolvendo instituições financeiras.4 Esse parecer foi aprovado pelo Presidente da República em 5 de abril de 2001.

    Assim resultou solucionado o impasse, sendo certo que a aprovação do parecer da AGU pelo Presidente da República há de ser tomada, no caso, como concreta manifestação de competência a ele designada pelo inc. II do art. 84 da Constituição do Brasil. Tem-se, aí, ato típico de direção superior da Administração federal.

    3. Inusitadamente, no entanto, o CADE recusou-se a acatar o referido Parecer da AGU, entre outros motivos porque (i) aviltaria sua independência (ii) a Lei 8.884, de 1994, teria revogado a Lei Complementar 73, de 1993; (iii) a Lei Complementar 73, de 1993, seria aplicável apenas à Administração Direta.

    E mais: a autoridade antitruste entendeu desnecessária a submissão da matéria ao Poder Judiciário, em nome de alegada capacidade de auto-execução de suas decisões - deve ser isso - mesmo contra ato do Presidente da República que aprovou o Parecer GM-020 da AGU. Em suma, deixou de cumprir parecer aprovado pelo Presidente da República que - repita-se - nos termos do art. 84, II, da Constituição do Brasil, exerce a direção superior da Administração federal.

    4. A irresignação, contudo, não encontra amparo no ordenamento jurídico brasileiro e, ao contrário do que por vezes se quer fazer crer, as discussões - pretensamente técnicas - acerca do problema vão muito além da mera discussão formal sobre a competência da autoridade antitruste. Encerram, a todo sentir, posicionamento que busca a supremacia da lógica de mercado, na acepção mais chigaguiana do termo, sobre políticas públicas que visem à realização de outros objetivos que não a eficiência alocativa. A discussão liga-se também aos debates sobre as "agências" e sua independência em relação ao Poder Executivo, como instrumento apto a "proteger" os agentes econômicos contra políticas públicas que - alega-se - gerariam insegurança e imprevisibilidade jurídicas, afugentando investimentos.

    O fenômeno das "agências" no Brasil

  2. Se por um lado a inserção, nos últimos anos, das chamadas "agências"5 no

    Page 9

    quadro das nossas entidades da Administração estimulou a produção de alguma boa doutrina, por outro desnuda, além da carência de conhecimento do direito brasileiro, em alguns casos desconhecimento do próprio direito.6

    O fato é que o precipitado transplante da experiência alienígena para o nosso sistema jurídico provoca danos irreparáveis.

    A idéia central é a de que a essas "agências" assiste um elevado grau de independência em relação ao Poder Executivo. Pretende-se assegurar às agências "reguladoras" o poder de, à margem de qualquer influência do Executivo, disciplinar determinados setores da economia.7 O tema da "capacidade normativa de conjuntura", debatido entre nós desde a década dos setenta,8 volta à moda com renovado vigor, sob terminologia alvissareira, correndo parelho com noções consagradas pela doutrina norte-americana, tais como a da teoria da captura das agências e outras mais.

    A confusão terminológica e doutrinária é tamanha que o observador menos atento poderia supor que, hoje, qualquer entidade que integre a Administração federal, nos termos do Decreto-lei 200, de 1967, há de ser chamado de "agência".

    6. Essas "agências" passam a ser concebidas como muito especiais "autarquias em regime especial", com a peculiaridade de os seus integrantes serem titulares de mandatos fixos e estabilidade.9 Nessa medida - e trata-se de fenômeno não exclusivamente brasileiro - a introdução do modismo instala uma autêntica guerra de poder no seio da Administração que, por conta da pretendida independência de todas elas em relação ao Poder Executivo, tudo turba e conturba.

  3. Tanto o BACEN quanto o CADE10 preexistem a essa bulha doutrinária, embora sejam envolvidos na moenda. O primeiro, nos termos do disposto no art. 192, IV, da Constituição do Brasil, é uma instituição financeira pública, com funções bem definidas pela Lei 4.595, de 1964, e, qual disposto em seu art. 8-, autarquia.11 O segundo, regido pela Lei 8.884, de 1994, não pode ser visto senão também como autarquia.12

    A livre concorrência e a livre iniciativa na Constituição do Brasil

    8. Também na última década vem se manifestando, no Brasil, outro insólito fe-

    Page 10

    nômeno: além da crença na existência de entes administrativos que pairariam no limbo, não se integrando a nenhum dos três Poderes, a alguns princípios constitucionais atinentes ao funcionamento do mercado é atribuída essência mitológica.

    A livre iniciativa e a livre concorrência são tomadas como indissociáveis do modelo que postula o funcionamento dos mercados fundado exclusivamente na busca da eficiência alocativa.13 A proteção da livre concorrência e da livre iniciativa levaria ao repúdio de qualquer política que permitisse a certos mercados desenvolver-se fora da lógica chicaguiana, afastando a tutela de quaisquer outros valores que não o livre mercado.

    9. Essa premissa, no entanto, encerra não apenas uma armadilha ideológica, oculta sob a escusa dos julgamentos técnicos, mas também inescondível afronta à Constituição do Brasil.

    Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência não existem per se, não bastam a si mesmos. São instrumentais da promoção da dignidade humana. A Constituição do Brasil, em seu todo, propõe a realização de objetivos mais amplos do que, singelamente, o do "livre mercado".

    Os princípios veiculados pelo seu art. 170 visam a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. E o seu art. P enuncia como dois dos fundamentos do Brasil a dignidade da pessoa humana e os valores sociais da livre iniciativa. Daí porque a interpretação/aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana ilumina a concretização dos princípios veiculados pelos arts. I2, 3º e 170 da Constituição; mas a interpretação/aplicação desses mesmos princípios, concomitan-temente, ilumina a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.

    Por isso incide em grave erro, equívoco grosseiro, quem sustente que os textos legais devem, sob pena de inconstitu-cionalidade, adequar-se em termos absolutos às regras típicas do "mercado livre".

    10. Evidentemente não estamos a afirmar que a Constituição do Brasil postula um modelo de mercado desvinculado da livre iniciativa e da livre concorrência; bem ao contrário.

    Sustentamos que os princípios veiculados pelo art. 170 da Constituição do Brasil e todas as regras que a partir deles se desdobram estão à disposição dos fins enunciados pelo art. 3º da própria Constituição, e, portanto, não podem ser lidos ou tomados apartadamente do sistema ao qual pertencem e ao qual, ao mesmo tempo, dão conformação.14 Veja-se, a propósito, o en-

    Page 11

    tendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal:

    "Embora a atual Constituição tenha, em face da Constituição de 1967 e da Emenda Constitucional 1/1969, dado maior ênfase à livre iniciativa, uma vez que, ao invés de considerá-la como estas (arts. 157, I, e 160,1, respectivamente) um dos princípios gerais da ordem econômica, passou a tê-la como um dos dois fundamentos dessa mesma ordem econômica, e colocou expressamente entre aqueles princípios o da livre concorrência que a ela está estreitamente ligado, não é menos certo que tenha dado maior ênfase às suas limitações em favor da justiça social, tanto assim que, no art. lº, ao declarar que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT