Entre Bolívar e Monnet: Notas Sobre as Integrações Regionais Européias e Sul-Americanas

AutorLucas Daniel Chaves de Freitas
CargoGraduando do curso de Direito da Universidade de Brasília. Bolsista do Programa de Iniciação Científica.
1. Introdução:

É ímpar a forma como juntos vivemos e trabalhamos na União Europeia. Disso é expressão a colaboração democrática entre Estados-Membros e instituições europeias. A União Europeia assenta na igualdade de direitos e na colaboração solidária. Assim se torna possível a preservação de um justo equilíbrio entre os interesses dos Estados-Membros.

Declaração por ocasião do 50.º aniversário da assinatura dos Tratados de Roma.

Mercosul é mais que um mercado, o Mercosul é, para o Brasil, um destino

Fernando Henrique Cardoso

A globalização é um fenômeno generalizado e de aspectos cada vez mais profundos nesse início do século XXI. Resultado de um processo, cujas origens remontam à Baixa Idade Média, a intensificação das relações inter e intracontinentais levaram à busca de uma maior estabilidade das normas de comércio. Em última análise, esse é um processo fundamental na formação dos Estados Nacionais e da afirmação da arena internacional como a conhecemos hoje. Com a 2ª Guerra Mundial, o conceito de soberania tornara-se obsoleto. Era necessária a ampliação das identidades comuns, para evitar concorrências desmedidas, sem anular os atores envolvidos. A Europa, em particular, deve reorientar-se dentro da bipolaridade, tendo na união o único escape ao alinhamento submisso às potências beligerantes. É o embrião do que seria a União Européia.

Décadas depois, com o fim de diversas ditaduras na América do Sul, quatro nações sul-americanas se propõem a mesma empreitada. Invertendo a lógica anterior das relações entre Brasil e Argentina, Raúl Alfonsín e José Sarney iniciam um processo de aproximação que culminaria na criação do Mercosul em conjunto com Uruguai e Paraguai. As metas são, simultaneamente, próximas e diversas da integração européia: trata-se de países que lutavam para inserir-se em uma ordem mundial competitiva, cujas realidades sociais dificultosas eram, em si mesmas, obstáculos a aspirações mais ousadas.

Após 50 anos da assinatura dos Tratados de Roma e 16 anos do Tratado de Assunção, a Comunidade volta-se simultaneamente para o passado e o futuro. Em meio século, inúmeros problemas históricos foram superados no continente europeu. As economias foram fortalecidas e o continente recuperou sua influência e voz no ambiente global. O bloco regional traz consigo a construção de uma identidade comum entre os seus membros. Já na América Latina, ocorreu acréscimo considerável nas trocas comercias, mas a formação de um laço identitário comum ainda é bastante distante.

A formação de regramentos supranacionais é a grande inovação do Direito Europeu, intensificando um processo de multiplicação das fontes normativas, levando a um pluralismo jurídico em que convivem ordenamentos nacionais muitas vezes conflitantes e a realidade do bloco. Já a opção platina foi pro um regramento mínimo e de cooperação intergovernamental. As conseqüências dessas escolhas se fazem sentir permanentemente nos dois blocos: a Europa possui um sistema sofisticado e efetivo, conquanto temerário do ponto de vista da intensidade da ingerência externa sobre os Estados. Já o Mercosul manteve, em quase totalidade, a potestade de seus membros, perdendo, em troca, a continuidade constante da integração.

Esta pesquisa envolve principalmente a descrição dos processos de gênese e assimilação da jurisdição supranacional dos membros da União Européia, contrastando o constructo europeu com a atual configuração de recepção brasileira e com o quadro de integração do Mercosul. É imprescindível questionar: como se deu e se dá a harmonização do direito da União Européia e do Direito do Mercosul com os diferentes ordenamentos nacionais? Como foram contornadas as diferenças históricas entre os membros na formulação de diretrizes jurídicas comuns? Qual o estado atual de integração, quais são as perspectivas e limitações do momento corrente? São essas as indagações que propomos aqui.

Por fim, agradeço o importante auxílio de todos que participaram na formulação desse trabalho, em especial à Doutora Julie S. Zapata, que me incutiu a paixão pelo direito internacional e pela integração sem a qual esse estudo seria impossível, e a Delegação da União Européia no Brasil, por sua solicitude habitual em atender a quaisquer dúvidas.

2. A União Européia - uma federação jurídica?

A dimensão mais realçada do plexo integrativo da União Européia é o intricado sistema jurídico erguido para preservar a evolução comunitária, envolvendo os mais diversos sujeitos. O elevado grau em que se situa o sistema comunitário leva muitos estudiosos a chamá-lo de Federação Jurídica, para retratar a permanente sinergia entre os poderes judiciários estatais e a Corte de Luxemburgo, órgão jurisdicional máximo de solução de controvérsias. É possível, diante desse quadro, fazer uma análise peculiar da dimensão jurisdicional como articulação de soberanias, visando responder o seguinte questionamento: existe uma federação jurídica européia?

A normativa comunitária

As fontes jurídicas da União Européia são parte importante de sua peculiar posição perante outras organizações internacionais. Articulam-se dentro do escopo da UE duas categorias principais de fontes: originárias e derivadas, estas tomando força (“derivando”) naquelas.

Deve-se ressaltar em relação às fontes originárias a sua relativa extensão: incluem os tratados fundadores, de 1951 e 1957, e todos aqueles assinados para sua revisão e extensão (SOUZA, 2000: 117, STELZER, 2004: 101). De um modo particular, esses tratados tem natureza dicotômica: são, simultaneamente, elementos de direito internacional e de direito comunitário (SILVA, 2005: 118). Esse corpo inicial teve seu status jurídico modificado através de uma forte atuação pretoriana, visando à efetiva aplicação e ao reforço da estrutura de integração, chamado de “constitucionalização”, isto é, a leitura dos tratados como Constituição Comunitária, sob a qual todas as leis devem se harmonizar.

Já dentre as fontes derivaras destacam-se os Regulamentos e as Diretivas. O Regulamento é a lei comunitária propriamente dita (TOSTES, 2004: 234). Produzido pela Comissão Européia, pelo Conselho da União Européia e pelo Parlamento Europeu em conjunto, é caracterizado pela abstração, obrigatoriedade, aplicabilidade e efeito direto (SOUZA, 2000: 118). É obrigatório somente pela publicação no Diário Oficial da UE e são vetados aos Estados quaisquer atos de recepção dos mesmos (REIS, 2001: 172). Já as diretivas vinculariam os Estados apenas quanto a resultados propostos, cabendo a cada membro decidir as medidas para alcançá-los. É comum a Comissão Européia usar de diretivas pormenorizadas como modo de harmonização das legislações nacionais, aproximando-as dos Regulamentos (REIS, 2001: 173), (SILVA, 2005: 142). As diretivas são oponíveis, quando incondicionais e suficientemente precisas, contra entidades sob controle do Estado ou exercendo poderes especiais em vistas ao interesse público e sob autorização desse. (CAMPOS, 2004: 332).

Várias fontes paralelas ou complementares são reconhecidas como hábeis no Direito Comunitário. Dentre as mais notáveis estão os atos convencionais (SOUZA, 2000: 119), em especial os acordos internacionais (BÖHLKE, 2002: 67). Sem menosprezar a importância das convenções, as principais fontes de suporte são, indubitavelmente, os princípios e a jurisprudência. Sobre o importante papel do TJCE, discorre Joana Stelzer:

A produção jurisprudencial, cotidianamente, reforçava os termos do direito originário e derivado, em prol da integração. Através dos acórdãos, dúvidas eram definitivamente resolvidas, a ordem normativa comunitária era reposta e princípios jurídicos eram erigidos. (STELZER, 2004: 115).

A atuação do TJCE foi a grande articuladora da ordem jurídica supranacional e, para tanto, o tribunal valeu-se tanto de axiomas do Direito Internacional, quanto de apotegmas dos Estados-membros (SOUZA, 2000: 120). Abordaremos, a seguir, alguns axiomas do DC.

Os princípios do Direito Comunitário

A defesa dos princípios do Direito Comunitário pela Corte de Luxemburgo foi uma das amálgamas do processo de união. A militância pretoriana permitiu a plena aplicação do direito comunitário, tornando possível um mercado realmente unificado. Não serão tratados aqui todos os princípios: a tarefa seria demasiado impossível em um espaço tão restrito. Abordaremos, superficialmente, somente os três grandes eixos do DC: Eficácia Direta, Primazia e Responsabilidade Estatal pelos descumprimentos.

A eficácia direta é um dos princípios de maior relevo do DC. É a partir dela que esse corpo normativo se afasta do Direito Internacional Clássico e passa a ganhar feições próprias. Assim define-a Mota Campos:

Podemos sintetizar assim a... noção de aplicabilidade direta:

As disposições de direito comunitário – todas elas, independentemente de sua fonte (originária ou derivada), da sua natureza e do seu nível hierárquico –a partir do momento em que entram em vigor na ordem comunitária inserem-se automaticamente, de pleno direito, na ordem jurídica interna dos Estados-membros, passando conseqüentemente a fazer parte... do complexo jurídico...

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