Bodies, identities and violence: the gender and the human rights/Corpos, identidades e violencia: o genero e os direitos humanos.

AutorSmith, Andreza do Socorro Pantoja de Oliveira
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  1. Introducao

    As alarmantes noticias de violencia cometidas no Brasil contra pessoas gays, lesbicas, travestis e transexuais em virtude da discriminacao em face do sexo e do genero, pode caracterizar a ausencia do Estado no seu dever de promover e proteger o fundamento dos Direitos Humanos que e a dignidade da pessoa sem nenhuma forma de distincao; mas, tambem revela a nao concretizacao dos mesmos direitos nas relacoes entre particulares.

    Ao se perceber a sexualidade como parte essencial e fundamental da humanidade, depreende-se que as pessoas precisam estar fortalecidas para performarem a sua identidade sexual e de genero.

    Para analisar de forma igualitaria demandas ligadas as identidades sexuais e de genero, ha que se considerar o "direito de atitude interior", a igualdade subjetiva, onde os seres humanos possam ser vistos por sua personalidade, sua realidade, pelo mundo a sua volta, para que se entendam suas historias e suas demandas (NAHUM, 2000).

    Esse direito e mais uma das facetas da igualdade ou nao desigualdade que busca tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, na medida de suas desigualdades. A tentativa de simetria entre as duas dimensoes--igualdade e desigualdade--da ensejo a necessidade de justificacao acentuada a segunda.

    Identificando-se situacoes ocorridas em nossa sociedade que tem fundamento na desigual valoracao que se da as pessoas por causa do sexo e do genero, percebe-se como a discussao da igualdade necessita ser operacionalizada em acoes concretas que busquem interferir nas realidades violadoras de direitos.

    Quando se analisa questoes relativas a convivencia em sociedade de pessoas gays, lesbicas, travestis e transexuais (ou o que a filosofa espanhola Beatriz Preciado (2011) designa "multidao queer"), uma gama variada de impedimentos baseados no genero e detectada: a impossibilidade de manifestar a subjetividade; as agressoes verbais, fisicas e sexuais; a dificuldade em ter respeitado o nome social.

    Tais circunstancias podem ser justificadas pela discriminacao praticada contra essas pessoas por conta de suas identidades sexuais e de genero. Sobre esta maneira de repudiar outras opcoes de vida, ha muito afirmou o antropologo Claude Levi-Strauss (1976, p. 334), que "(...) recusamos admitir o proprio fato da diversidade (...); preferimos lancar fora (...) tudo o que nao se conforma a norma sob a qual se vive." E nisso comecou uma historia maldita de excepicionalismos em que se ve cada vez mais a exclusao das pessoas que sao consideradas "diferentes demais".

    Na antropologia levistraussiana, o verdadeiro humanismo seria aquele no qual estendemos a toda a esfera do vivente um valor intrinseco. Nao quer dizer que sao todos iguais. Sao todos diferentes. Porem, restituir o valor significa restituir a capacidade de diferir, de ser diferente, sem ser desigual. Nao e por acaso que todas as minorias exigem respeito. A liberdade cresce no solo fertil da troca com o outro reconhecido como um igual e nao atraves do aumento desigual do poder de uns sobre os outros. Se ha poder por toda a parte, como gostava de lembrar o filosofo Michel Foucault (1988), ha tambem o desejo de viver alem dele. Livres dele, ou praticantes de um poder cuja fonte e destino sejam o reconhecimento do outro no dialogo que lhe permita o direito de escolher. Nessa perspectiva, pretendemos desenvolver uma compreensao teorica da violencia baseada em genero como violacao dos Direitos Humanos, praticada tanto pelas instituicoes quanto pelas pessoas em suas relacoes privadas, notadamente contra aqueles que consideram desigual, a ja citada "multidao queer".

  2. Corpos e identidades, a "multidao queer"

    Este se poderia dizer, e o novo contexto que baliza a emergencia de diferentes maneiras de ser e de viver de homens e de mulheres. Neste terreno, e possivel constatar uma "modernidade liquida", para tomar emprestada a expressao cunhada pelo sociologo polones Zygmunt Bauman (2001). Para este autor, a fixidez das identidades coletivas e individuais cede lugar a uma fluidez que se aloja dentro dos individuos e se espalha pela sociedade.

    Para chegarmos ao estado atual, ja se passaram alguns anos desde a chamada "revolucao sexual" ocorrida no Ocidente na decada de 60 do seculo passado, quando as ideias de diversidade e individualidade ganham literalmente os corpos e passam a guiar novas visoes e praticas em relacao ao que percebemos, avaliamos e julgamos como sendo masculino e feminino ou neutro em termos de sexualidade e genero.

    Comportamentos antes tidos como solidos ou, em outras palavras, rigidamente designados como comportamentos esperados de homens e mulheres, vao pouco a pouco se desfazendo, borrando, esgarcando, abrindo rachaduras na divisao sexual da producao e reproducao das estruturas sociais. Neste sentido, da-se a assuncao daquilo que tem sido rubricado entre nos como "multidao queer" (PRECIADO, 2011).

    No que concerne a diversidade sexual, o emergente movimento gay e herdeiro direto das lutas feministas que, ao propugnarem a igualdade de direitos entre os sexos, buscaram desconstruir as desigualdades entre homens e mulheres supostamente baseadas em diferencas fisicas, isto e, biologicas. Surge assim o conceito de genero como sendo um conjunto de maneiras de perceber, designar e classificar as distincoes sexuais, atribuindo-lhes um lugar e um status social. (1) A situacao injusta que opoe homens e mulheres no mundo inteiro nao e obra da natureza, mas o resultado de seculos de historia humana.

    Ha, portanto, diversas formas de abordar relacoes de dominacao, de igualdade ou de desigualdade entre os homens e as mulheres. Se nos situarmos no ponto de vista do corpo, o homem e a mulher sao seres biologicos, e de sua diferenca anatomica, depende sua posicao social. O genero, ou a identificacao social de genero, como sugerem alguns teoricos, seria entao determinado em funcao desta diferenca.

    No entanto, se previlegiarmos o genero em detrimento da diferenca biologica, relativizaremos esta ultima e valorizaremos uma outra diferenca dita cultural ou identitaria, determinada pelo lugar que ocupam na sociedade. No primeiro caso, divide-se a humanidade em dois polos sexuados--os homens de um lado, as mulheres de outro--e, no segundo, multiplicam-se ao infinito as diferencas sociais e identitarias, sustentando que os homens e as mulheres entram, do ponto de vista biologico, na categoria de um genero sexuado, uma vez que, se ambos tem um sexo, a diferenca sexual contaria menos, para a sociedade, que outras diferencas, como a cor da pele, o pertencimento de classe, os costumes, a idade, a origem dita "etnica" ou ainda o papel escolhido para representar junto a seus semelhantes.

    Segundo o historiador Thomas Laqueur (2001), para quem o sexo biologico e um dado do comportamento humano tao "construido" quanto o genero, como mencionado antes, as nocoes de sexo e genero nunca se recobriram completamente, nem tao pouco se sucederam segundo uma historia linear. Entretanto, o modelo da unidade foi predominante ate o seculo XVI11. Homens e mulheres eram entao classificados segundo seu grau de perfeicao metafisica, a posicao soberana sendo sempre ocupada por um modelo masculino assimilado a uma ordem simbolica neutra, unissexuada e de origem divina. O genero parecia entao imutavel, a imagem da hierarquia do cosmo.

    Ainda para este autor, em seguida e em contrapartida, o modelo da diferenca sexual foi valorizado, com suas diversas representacoes, a medida que se sucediam as descobertas da biologia. A posicao ocupada pelo genero e o sexo tornou-se entao motivo de um conflito incessante, nao apenas entre os homens e as mulheres, mas entre os pesquisadores que tentavam explicar suas relacoes.

    Do ponto de vista antropologico, seria possivel classificar as sociedades humanas em duas categorias em funcao da maneira como pensam as relacoes entre o sexo social (genero) e o sexo biologico (sexo). A cada categoria corresponde uma representacao, conforme um e outro se emaranhem e se superponham, ou o genero prevaleca sobre o sexo. (2)

    As hierarquias baseadas em distincoes sexuais naturalizantes, vem sendo contestadas, fazendo tropecar as conviccoes daqueles que acreditam que a identidade dos seres humanos--como membros de uma especie que se reproduz sexualmente--seja decorrencia inevitavel do corpo fisico com o qual se vem ao mundo. Tal concepcao e abalada quando se constata que nao e a presenca do penis ou da vagina, determinada pelos pares de cromossomos xx e xy, que faz com que uma pessoa seja homem ou mulher. A identidade de genero, portanto, esta muito mais ligada a um sentir-se homem e/ou mulher (ou nem um nem outro, como travestis, transexuais e homossexuais) do que ao fato biologico supostamente natural que advem da sequencia genetica herdada do pai e da mae. A identidade de genero nao e um dado, mas sim o resultado de uma construcao que, embora realizada pelo individuo, lanca mao dos "tijolos", ou seja, dos elementos culturalmente disponiveis para tal.

    E uma via de mao dupla, que tem um "dentro" e um "fora". Na interioridade estao modos de perceber, de sentir, de pensar, de julgar e de decidir, ao passo que, no ambito da exterioridade, estao condutas que operam como meios de expressao que vao alem das palavras e que, em decorrencia, abrangem tambem gestos e postura corporal, vestuario e aderecos, enfim, uma exterioridade que se apreende e se compreende a medida que se manifesta para os outros.

    Tais maneiras de ser nao estao prontas e acabadas no ser humano, nao sao dadas nem muito menos inatas: sao construidas. Sao adquiridas, lenta e gradualmente, por meio da observacao e da interacao com o meio social. O ato de ver-se e portar-se como homem ou mulher--em sua gama de possibilidades--e parte crucial dessa construcao, remetendo a formacao de identidades e a modelagem de comportamentos. O que alguem e ou o que acredita ser na dimensao de genero e, dentro dela, na esfera da sexualidade, depende sempre de um movimento...

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