As inovações biotecnológicas e o direito das sucessões

AutorGiselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
CargoDoutora e Livre Docente em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora associada ao Departamento de Direito civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Diretora nacional para a Região Sudeste, do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Ex-Procuradora Federal.
Páginas63-71

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A estrutura1 das disciplinas jurídicas, como se sabe, é passível de modificações que reflitam as mudanças havidas na própria vida humana. Quando se abre uma prática nova na experiência humana, na sociedade ou nas práticas técnicas ou científicas, não é raro, então, que esta mudança logo seja repercutida no próprio Direito.

Esta correlação entre experiência social e prática jurídica é um lugar-comum, bem se sabe, mas ainda assim pode acontecer de nos sentirmos chocados, em certos momentos, por descobrirmos que o Direito não está prevenido o bastante para solucionar certos problemas absolutamente inovadores, naquele momento e, bem por isso, deverá ser o próprio Direito que terá que mudar, para que aquele problema não reste sem solução.

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Não se trata, é claro, de dizer que as mudanças na estrutura do Direito devam acompanhar toda e qualquer novidade na vida humana: há situações em que a nova prática social deve, no caso, ser repelida pelo Direito, ao invés de ser por ele absorvida. Seria o caso, por exemplo, de nosso sistema jurídico reconhecer como prática lícita o tráfico de mulheres, o trabalho infantil ou a autotutela armada? Ao contrário, em lugar de se adaptar a qualquer uma dessas práticas, infelizmente muito comuns entre nós, cabe ao Direito combatê-las sem cessar, pois nesses casos se trata, claramente, de afrontas à dignidade da pessoa humana.

É o que fazemos insistentemente contra práticas que se revelam criminosas, danosas, antijurídicas, tanto na esfera pública como na esfera privada. Muitas práticas antijurídicas sempre foram e sempre serão crimes entre nós, a exemplo do homicídio. Outras já foram crimes e deixaram de sê-lo, como o adultério. Outras práticas - crimes ou contravenções ainda hoje - pode até ser que passem, um dia, a ser práticas aceitáveis, como, por exemplo, a prostituição. Por outro lado, algumas práticas que já foram socialmente passáveis se tornaram crimes, a exemplo do assédio sexual. E outras - que hoje são consideradas normais - talvez ainda se tornem crimes, como a especulação imobiliária sem limites, sem regras, sem ética.

O tema do grau de juridicidade ou antijuridicidade das práticas humanas é uma boa referência para as relações entre Direito e sociedade, e para dar visibilidade às mudanças por que passa, ou pode passar, o Direito. O alcance de cada uma dessas mudanças, sua eficácia, sua aceitabilidade, seu êxito ou seu fracasso, depende de cada caso e não ocorre da mesma forma em todas as sociedades, cujas culturas sempre diferem em pontos fundamentais. Mas o fato é que não há sociedade que não seja dinâmica, e correlatamente não há sistema jurídico imune a mudanças ditadas pelas transformações no interior das sociedades. Igualmente, a influência se dá das sociedades sobre o Direito e não do Direito sobre as sociedades.

Às vezes, as mudanças em sociedade são tais que geram um conjunto muito amplo de inovações jurídicas. Quando essas inovações são tais e tantas que se perde a consistência do sistema jurídico original, é chegada a hora de modificar o próprio sistema. Essa regra vale tanto para a perspectiva de uma Constituição, como para a de um Código Civil: ambos pedem remodelação quando seus institutos já não correspondem diretamente à sociedade a que foram dirigidos.

Além da revisão ou substituição das leis, as inovações sociais causam, no Direito, o surgimento de novas áreas, de microssistemas que podem mesmo ser estudados independentemente do panorama maior, a exemplo do direito do consumidor, do direito autoral, ou direito ambiental: pode-se considerá-los sistemas em certa medida independentes, dotados de princípios que não se confundem com os do Direito Civil ou do Direito Constitucional.

Se nos foi possível desenharmos para a nossa sociedade um Código de Defesa do Consumidor, não foi, certamente, apenas porque o tema da proteção ao consumidor surgiu dentro do direito civil e do direito constitucional, mas, antes, porque esta área se mostrou interdisciplinar dentro do próprio direito, incapaz dePage 65ser abrangida por uma única das divisões tradicionais e, ao mesmo tempo, capaz de dar conta de si mesma, ou seja, de sustentar-se em princípios exclusivamente seus, como o princípio segundo o qual um atributo essencial do cidadão é ser protegido nas suas relações de consumo.

Em resumo: o tema do consumidor existia no direito civil e no direito constitucional, mas não podia ser confinado nem só a um, nem só a outro dos segmentos mencionados. Só quando foi reconhecido como uma área jurídica autônoma, como um microssistema, é que pôde ser expressa numa legislação apropriada e eficiente, tirando da multidisciplinaridade o seu próprio caráter interdisciplinar.

Esta conquista alcançada pelo direito do consumidor - mas também pelo direito autoral, pelos direitos da criança e do adolescente ou pelo direito ambiental - é bem aceita por nós hoje. Já nos acostumamos muito bem a ela, e mesmo a idéia de microssistema dentro (ou a partir) dos tradicionais sistemas jurídicos é uma idéia que tem se tornado comum. Comum mesmo quando somos apanhados de surpresa por certas inovações das práticas humanas que não são compatíveis com os institutos jurídicos tradicionais e, assim, levantam a hipótese de ser absorvidas por soluções interdisciplinares ou por novos institutos. Ao contrário do que pode parecer, tais surpresas convivem conosco com muito mais freqüência do que ousamos admitir, e nem sempre há como respondermos a elas de uma maneira verdadeiramente segura.

Dito de outra forma: há certas novidades humanas que, mesmo sendo inevitáveis ou irrecusáveis, não podem ser solucionadas pelos mecanismos jurídicos disponíveis no momento. E, porque não conseguimos, na condição de juristas, nos adaptarmos com facilidade a certo conjunto de inovações, acabamos por nos confundir na tentativa de reorganizar nosso próprio sistema jurídico.

A expressão biodireito é, hoje, o resultado mais evidente de nossa...

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