Biodireito: Conceitos e Preconceitos

AutorIvan de Oliveira Silva
Páginas111-126

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7. Introdução: os Limites da Disponibilidade do Próprio Corpo

Quando o assunto é o direito de personalidade, o jurista geralmente se depara com uma questão de grande complexidade: qual ou quais os limites que a pessoa natural tem na disponibilidade do seu corpo?

A resposta a esta pergunta, de longa data, alimenta outros temas polêmicos no direito, tais como o suicídio, doação ou venda de órgãos, direito de imagem, etc.

Consignamos, de antemão, que a resposta a tais limites encontrará variações de acordo com o momento histórico que oriente a convicção do intérprete. Assim, quanto mais individualista for a época, se chegará à conclusão de que a disponibilidade é mais próxima do absoluto, eis que em tais sistemas, é comum a idéia de que o homem é o legítimo proprietário do seu corpo, portanto, dele poderá usar, abusar, dispor e, até mesmo, destruí-lo.

Por outro lado, quando o individualismo extremado começa a ser abandonado, o corpo é compreendido como a expressão de uma perspectiva coletiva, sendo certo que a destruição ou utilização inde-vida do corpo, de forma voluntária ou involuntária, passa a chocar o tecido social.

Destaque-se, outrossim, que, com a evolução dos direitos sociais, cada indivíduo recebeu a obrigação de zelar pelos interesses comuns da sociedade. Dessa forma, o único tem o dever de resguardar os

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interesses do múltiplo e, inclusive, em uma análise mais profunda, o homem necessita preservar o próximo para que assim preserve a si mesmo. Temos aqui a antiga troca de interesses que tanto beneficia a vida em sociedade.

Procurando, pois, responder à pergunta a respeito dos limites da disponibilidade do corpo humano, firmamos nosso entendimento de que o homem exercerá os sobre direitos seu próprio organismo até o exato limite em que os seus atos digam respeito a sua esfera de interesses.

Portanto, caso a disposição do corpo individual venha a provocar um dissabor no corpo coletivo, encontraremos aqui o limite. Assim, a barreira limítrofe da disposição individual do corpo é o ideário de preservação incutido no pensamento coletivo. E, como ressaltamos, é claro que a baliza coletiva está sujeita a mudanças e, por tal motivo, o intérprete deverá estar atento ao sentimento da época em que o tema estiver sob observação.

Ademais, conforme expusemos no Capítulo 6 desta obra, a pessoa natural poderá dispor de partes do seu corpo, gratuitamente, para o objetivo de transplantes terapêuticos, desde que seguidas as orientações da Lei nº 9.434/97. O nosso sistema jurídico, de longa data, já demonstra que a indisponibilidade do corpo não é absoluta, e o exato limite será a dignidade das pessoas envolvidas.

7.1. Inconformismo com o Estado Sexual e a Alteração da Memória Genética do Corpo Humano

Questão polêmica que diz respeito à disponibilidade do próprio corpo é a atinente ao inconformismo nutrido por alguns integrantes da sociedade quanto ao estado ou condição sexual.

Nesse sentido, ocupar-nos-emos aqui do transexualismo razão pela qual teceremos comentários de enfoque jurídico a respeito da alteração da memória genética almejada por muitos transexuais.

É certo que, como ocorre em assuntos relativos à sexualidade humana, em diversos nichos da sociedade, o tema comumente, não

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obstante a importância, é desconsiderado ou, o que é pior, tratado sob um enfoque pejorativo. Malgrado este fato social, como não poderia ser diferente, não é incomum o assunto ser alvo de discussão em juízo.

Vamos, pois, a alguns elementos de relevante importância ao tema sob enfoque.

7.1.1. Identificação Sexual Cromossômica

De antemão, merecem ser apresentados alguns aspectos e nomenclaturas preliminares atinentes à transexualidade e as suas repercussões no contexto social.

Firme-se, de início, que a identificação sexual do indivíduo válida para o assento de nascimento é realizada, por meio de técnica meramente visual, no momento do parto. Assim, valoriza-se o aspectoexternodagenitáliaparaaadoçãodosexomasculinooufeminino. Isto ocorre em função da existência jurídica de apenas dois sexos, portanto, ou se é homem ou mulher.

Do ponto de vista anatômico, o sexo é definido pelas combinações cromossômicas. Nesse sentido, "um dos pares cromossômicos consiste em cromossomos sexuais. Nos homens normais, os cromossomos sexuais são o Y, herdado do pai, e o X, herdado da mãe. Nas mulheres normais, são encontrados dois cromossomos X, um herdado de cada genitor".17.1.2. Outras Formas de Expressão Sexual

A literatura médica informa algumas disfunções e formas diferenciadas de expressão sexual. Assim, algumas delas são consideradas como patologias e outras, ao contrário, apenas como opções ao livre exercício da vida sexual.

Nesse contexto, com sensíveis variações terminológicas, encontramos o intersexualismo, o homossexualismo2 e o transexualismo, conforme abaixo exposto.

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7.1.2.1. Intersexualismo

Em rasa síntese, "temos que o intersexual é o indivíduo possuidor de sexo indeciso. Trata-se de uma pessoa possuidora de caracteres somáticos e psíquicos de ambos os sexos".3 Parte da literatura especializada reconhece ainda que os hermafroditas são espécie do intersexualismo; esta lição "professa no sentido de que o hermafroditismo ou o intersexo aparece sempre que houver contradição ou discordância de um ou mais caracteres orgânicos do sexo referido".4Constata-se que tanto o intersexualismo quanto a sua espécie, o hermafroditismo, são anormalidades anatômicas do sexo do indivíduo e, em tais casos, basta que a medicina se arremesse na procura do sexo predominante para a devida adaptação cirúrgica do paciente.

7.1.2.2. Homossexualismo

O homossexualismo que, por se tratar de uma forma diferente de exercício da sexualidade, recebe grande número de críticas e, por vezes, aos seus adeptos é reservado tratamento deveras pejorativo.

Como se sabe, o homossexual é aquele que possui afinidade e/ou atração sexual por indivíduos do mesmo sexo. É, na concepção de alguns, o ápice do que se entende por liberdade sexual, porém, para outros, mera perversão.

É verdade que essa opção sexual acompanha a humanidade de longa data, sendo certo que entre os gregos a prática era freqüente

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entre os jovens pupilos e os detentores de cargos da nobreza, os quais, por meio do homossexualismo, iniciava aqueles à vida sexual adulta. Porém, a sociedade grega somente tolerava tal prática até o nascimento de barba nos mancebos.

Atualmente, não é demais fazer constar que "o homossexualismo é marcado por um estigma, sendo relegados à marginalidade aqueles que não têm preferências sexuais dentro de determinada estrutura de restrita moralidade. Não só, mas principalmente nesta sede, o comportamento sexual divergente da ordem da heterossexualidade é situado fora dos estereótipos e resta por ser rotulado de anormal, ou seja, fora da normalidade. O que não se encaixa nos padrões é rejeitado pelo simples fato de ser diferente".5Sob o critério técnico, não se há de confundir homossexualismo com o transexualismo. Como visto acima, o homossexualismo não se refere necessariamente ao desejo de alteração do sexo anatômico, uma vez que o homossexual, ao se conformar com este estado, utiliza as suas funções sexuais biológicas para a obtenção de prazer, de modo que nem sempre o seu sexo provoca-lhe desconforto emocional.

7.1.2.3. Transexualismo

O transexual é aquele que não se identifica com o seu sexo anatômico, mas nega-o com todos os seus instintos, podendo chegar até mesmoàmutilaçãodepartesdoseucorpoemfunçãodetamanharepulsa pelo chamado sexo civil.6O transexualismo masculino representa aquele indivíduo que, tido como homem, psicologicamente se sente mulher, e, por conseguinte, almeja tornar-se mulher.

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No mesmo foco, no transexualismo feminino, a mulher que, não conformada com o seu estado sexual anatômico, constrói um universo psicológico de desprezo ao seu sexo de nascimento e visualiza-se como homem.

Dentre os tipos de transexualismo, "num primeiro momento, teríamos o transexualismo psicógeno. Esta fase caracteriza-se pela tendência que o indivíduo apresenta em pertencer ao sexo oposto, associado ao narcisismo. A seguir, surge outra fase, diretamente ligada à ação hormonal, aplicada pelo próprio transexual, que procura, sozinho, transformar suas características para as do sexo...

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