Big Brother Brasil: a banalização do cotidiano

AutorPedrinho A. Guareschi - Laura Helena Pelizzoli
Páginas12-35

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Introdução

Este artigo3 originou-se de uma pesquisa realizada pelos autores para a formulação de um parecer sobre o programa Big Brother Brasil, na sua terceira edição (2003), solicitado pela Comissão de Acompanhamento de Programação de Rádio e TV (CAP), que é ligada à Comissão de Ética da Câmara dos Deputados de Brasília e ao Conselho Nacional de Comunicação, cuja campanha é intitulada: Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania . A CAP recebeu inúmeras reclamações e sugestões, por e-mail , de cidadãos de todo o território nacional, que se posicionaram com insistência diante de certas cenas e situações veiculadas pelo programa. Considerou-se que tais situações e cenas feriam a ética, apresentando-se injuriosas a grande parte da população, deseducadoras e em desacordo com a função e a tarefa da mídia, que é prestar um serviço público de qualidade à população brasileira. Os cidadãos que apresentaram tais queixas fizeram-no com o objetivo manifestar seu pensamento, expressar sua opinião, reivindicando alguma providência dos órgãos competentes.

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A fim de deixar claro de onde partimos para produzir tal parecer, iniciamos com uma rápida discussão sobre os pressupostos éticos que fundamentam a análise, pois a discussão no campo da ética pode dar ocasião a muitas polêmicas. Após a discussão sobre o referencial ético, iniciamos a análise. São informados, inicialmente, os procedimentos metodológicos empregados. A seguir, discutimos as diversas informações usadas, analisando as principais categorias que as sistematizam. A interpretação que fazemos tem como pano de fundo o referencial ético apresentado na primeira parte.

Um referencial ético para análise da mídia

Escutamos, a toda hora, alguém dizendo que tal procedimento não é ético, que tal ação é antiética e assim por diante. Qual seria o critério para tal afirmação ou julgamento? O que faz com que uma ação, uma prática e, indiretamente apenas, com que uma pessoa seja ética?

Ao refletir sobre o que é ética e os seus fundamentos, damo-nos conta de o quão complexa é essa questão. Entretanto, ao mesmo tempo, vemos que todos nós, de um modo ou de outro, temos nossas convicções éticas, temos uma ética. Para tê-la, precisamos nos basear em algum fundamento, algum pressuposto filosófico e valorativo. Curiosamente, a maioria das pessoas, apesar de terem esses fundamentos e pressupostos, poucas vezes pararam para refletir e tomar consciência deles e de suas implicações. Nesse sentido, essa rápida discussão traz à baila esses pressupostos, no intuito de facilitar a descoberta do fundamento de ética de cada um. Mesmo os estudos de Kohlberg (1966, 1969) e, em parte, os de Piaget (1932), apesar de ajudarem a identificar “estágios” de consciência ética, não fornecem elementos para que se identifiquem os pressupostos filosóficos e, conseqüentemente, faça-se uma crítica desses pressupostos.

Queremos esclarecer, a diferença que fazemos entre ética e moral, contudo, retornaremos a isso no final desta discussão teórica sobre ética. Entendemos por moral, ou moralidade, os costumes instituídos, a maneira como os grupos e as sociedades valorizam sua maneira de agir e se regular. As leis, a tradição, os costumes etc. fariam parte da moral. Já por ética entendemos uma crítica filosófica dessa moralidade. A ética é parte da filosofia, como é a metafísica e a epistemologia, e propõe-se a encontrar os “fundamentos últimos” de por que as coisas são como são. É a ética que discutimos aqui.

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Podem ser identificados dois paradigmas principais que fundamentam as exigências éticas ou os valores éticos presentes ainda na atualidade. O primeiro paradigma é o da lei natural, o segundo é o da lei positiva. A esses dois paradigmas mais clássicos, acrescentamos um terceiro, que questiona os dois anteriores e traz novas considerações para a discussão da problemática da ética: a ética tomada como instância crítica. É a partir desse terceiro enfoque que produzimos nossa análise.

No primeiro paradigma, da lei natural, o grande referencial é a própria natureza. Esse referencial tem a pretensão de dizer que, a partir da atenção à natureza, é possível, de um lado, estruturar uma ética que governe todos os povos e em todas as épocas e, de outro lado, é possível uma “fonte” para essa ética que não seja os costumes ou instituições de determinados povos ou nações. Dentre os defensores de tal paradigma, podemos citar Aristóteles, os estóicos, Cícero e muitos outros seguidores, até os dias de hoje.

Essa tradição dividiu-se em duas vertentes: uma pré-moderna, religiosa, inspirada em Tomás de Aquino, centrada na idéia de um Criador e numa ordem imutável estabelecida por Deus; e outra moderna, secular, inspirada nos escritos de Grotius e John Locke, fiel à mentalidade do mundo moderno que, sem negar a origem divina da natureza, investe na defesa dos “direitos humanos”. Podemos dizer que a primeira caracteriza-se como o “momento do objeto”, como pré-moderna, e a segunda, como o “momento do sujeito”, típica do pensamento moderno. Uma privilegia a estabilidade do objetivo e a outra, a liberdade e a iniciativa do subjetivo. Todavia, o critério que fundamenta ambas é algo exterior: a natureza como produto de Deus Criador, para a primeira, e a dignidade e os direitos fundamentais do ser humano, que podem ser racionalmente conhecidos e justificados, para a segunda. Esse paradigma percorre toda história, sempre com alguns seguidores.

O segundo paradigma, o da lei positiva, surgiu como reação ao paradigma da lei natural, tanto na sua versão religiosa como na versão secular. Há uma rejeição, tanto em nível epistemológico como ideológico, de um apelo a uma ordem natural como referencial ético. Em nível epistemológico, a partir do relativismo cultural, questiona-se a possibilidade de dar conteúdo concreto às leis ditas naturais, ou seja, que elas sejam as mesmas em todas e para todas as épocas e culturas. Em nível ideológico, a experiência histórica do abuso, tanto de poderes religiosos como civis,Page 15de apelar para leis naturais para esmagar seres humanos que se opunham a determinados regimes, levou à rejeição de uma ordem humana e social determinada por uma lei natural preestabelecida. O critério ético passa a ser o que foi escrito e promulgado. É a lei positiva. Tal paradigma é denominado também de Contratualismo. Uma vez promulgada uma lei, ela passa a ser válida. Com isso se evitaria a arbitrariedade e poderse-ia apelar para algo objetivo que foi formulado e promulgado. Podemos nos libertar, assim, de uma natureza cega, de um lado, e dos mandos e desmandos autoritários de governantes e grupos, de outro.

Como o paradigma da lei natural, o da lei positiva também sofre restrições. Se eventualmente as leis fossem justas, discutidas democraticamente e aplicadas da maneira o mais imparcial possível, o estado de direito poderia ser um forte defensor do direito e das liberdades dos seres humanos. No entanto, o que acontece quando os governadores e os juizes são autoritários e quando alguns legislam em causa própria? O que dizer quando grupos e minorias poderosas forçam a criação de acordos e negociações em proveito próprio? Pode-se ainda dizer que o que é instituído é ético? Vejamos a história recente do Brasil e da maioria dos países da América Latina onde se instalaram ditaduras legitimadas pela Doutrina da Segurança Nacional e onde se modificaram as Constituições dos países na base da força e da pressão. Se é a lei, o instituído, o critério que fundamenta a ética, dever-se-ia dizer que os crimes e assassinatos cometidos nesse período estariam legitimados.

Pelo que se viu até aqui, entende-se que o fundamento da ética é colocado por alguns na lei natural (dado essa lei ser originada por um Deus Criador ou por estar radicada na dignidade do ser humano e de seus direitos inalienáveis) ou num positivismo jurídico, que se radica no texto de uma lei escrita e promulgada. Examinamos as limitações e os perigos que se originam de tais pressupostos. Que fazer, então? Haveria alternativas para fundamentar a dimensão ética? É o que passamos a discutir.

Se as colocações discutidas mostram suas limitações e precariedades, ao mesmo tempo, indicam pistas de por onde se pode iniciar a busca de uma fundamentação ética para as ações e relações. Todavia, é decisivamente importante que, ao perseguirmos tais fundamentações, tenhamos sempre em mente suas possíveis limitações, como exige toda postura crítica. Enquanto permanecermos dentro do que é humanamente instituído, sem apelar para o eterno e o transcendente,Page 16temos de reconhecer nossa “limitude” histórica. Ao reconhecer essa “limitude”, temos de deixar sempre uma porta aberta, a porta de possibilidade de alternativas de crescimento, de transformações, de aperfeiçoamento.

Nesse contexto, cremos que ajudaria, na reflexão, uma noção de ética como sendo uma “instância crítica e propositiva sobre o dever ser das relações humanas em vista de nossa plena realização como seres humanos” (DOS ANJOS, 1996, p.12).

Perscrutando a fundo essa formulação, podemos extrair dela duas dimensões fundantes: a dimensão crítica e propositiva e a dimensão das relações. Elas são centrais para a compreensão mais profunda da ética. Vejamos cada uma detalhadamente.

A dimensão crítica e propositiva

Na sua dimensão crítica, a ética não pode ser considerada algo pronto, acabado. Ao contrário, ela está sempre por se fazer. Ao mesmo tempo, ela está presente nas relações humanas existentes. À medida que ela se atualiza...

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