Aviso prévio proporcional: uma releitura à luz do tridimensionalismo

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas406-413

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Introdução

A Teoria Tridimensional do Direito desenvolvida por Miguel Reale marcou a quebra do paradigma do purismo da Ciência do Direito, que compreendia o fenômeno jurídico apenas sob o aspecto da norma jurídica. Competiam às áreas da Sociologia Jurídica e da Filosofia do Direito as análises relativas aos fatos sociais e aos valores, de forma isolada e sem comunicação recíproca com outras searas do conhecimento científico.

A compreensão de que o Direito era adstrito apenas ao campo normativo limitava o intérprete autêntico na sua aplicação diante do caso concreto. Esse cenário demandava da Ciência do Direito a aplicação e o desenvolvimento da Teoria das Lacunas, para o constante acertamento do estado de incorreção do sistema jurídico.

O tridimensionalismo de Miguel Reale permitiu compre-ender que a norma jurídica é fruto da tensão dialética constante entre os aspectos factuais e axiológicos. Rompe-se, com isso, a noção de que a norma jurídica é um produto pronto e acabado a ser utilizado pelo aplicador do direito. As mudanças dos cenários factuais e axiológicos autorizam a compreensão evolutiva do fenômeno normativo. Permite-se ao intérprete autêntico reconhecer que o estado de incorreção do sistema é apenas aparente e não uma realidade.

O presente artigo científico pretende analisar, à luz da Teoria Tridimensional do Direito, o instituto do aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, direito fundamental social previsto no artigo 7º da Constituição da República, que sofreu regulamentação legislativa por meio da Lei n. 12.506/2011. Procurar-se-á investigar se o instituto do aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, tal como regulamentado pelo legislador ordinário, é instituto aplicável apenas em benefício do trabalhador ou também se o empregador poderá se valer do mesmo, em situações de resilições unilaterais do contrato de trabalho decorrentes da iniciativa do trabalhador?

Para isso, analisaremos as concepções do fenômeno jurídico que antecederam Miguel Reale no século XIX como forma de demonstrar a evolução histórica do pensamento sobre essas concepções. Trataremos ainda do conceito de sistema e faremos uma comparação entre o sistema concebido por Hans Kelsen e aquele concebido por Miguel Reale. Em seguida trataremos da teoria tridimensional do direito de Miguel Reale propriamente dita.

O tridimensionalismo de Miguel Reale permitirá compre-ender que, na análise dos fenômenos jurídicos, como é a situação do aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, devem ser observados conjuntamente os elementos factuais, axiológicos e normativos. Estes elementos, como será visto ao longo do presente trabalho, estão em constante tensionamento e se relacionam em uma forma peculiar da dialética – a dialética da complementaridade.

1. A ontognoseologia e o historicismo

A Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale ana-lisa a experiência jurídica a partir de uma compreensão ontognoseológica, ou seja, de uma teoria do conhecimento que representa a correlação entre conhecimento e realidade, a partir de uma dialética própria, qual seja a dialética da complementariedade3.

Para Miguel Reale, a ontognoseologia representa duas formas de pesquisas sobre as condições do conhecimento em um primeiro momento, tanto no âmbito subjetivo (gnoseologia), quanto no âmbito objetivo (ontologia em sentido estrito). Na ontognoseologia, enquanto teoria do conhecimento, são indagados os valores envolvidos na atividade de conhecer e como esses valores fazem produzir o conhecimento objetivo.

Posteriormente, afirma o professor Miguel Reale que, nesses âmbitos, “após essa apreciação de caráter estático, culmina em uma correlação dinâmica entre sujeito e objeto, como fatores que se exigem reciprocamente segundo um processo

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dialético de complementariedade”4, onde o sujeito e o objeto não podem ser pensados e compreendidos de forma segregada, mas sim de forma integrada.

O fenômeno jurídico, portanto, representa tanto uma forma de manifestação da realidade quanto do conhecimento. Nesse sentido, propõe Miguel Reale que a ontognoseologia, enquanto uma teoria do conhecimento, representa uma forma de integrar os campos do fato, do valor e da norma, superando a dimensão fragmentada por justaposição de análise proposta por Gustav Radbruch5.

João Maurício Adeodato afirma que tanto Emil Lask quanto Gustav Radbruch compreendem os três planos, quais sejam, do fato, do valor e da norma de forma segregada, o primeiro a partir de uma concepção integradora desses três planos e o último de uma forma justaposta6.

Além de superar essa visão segregada, pretendeu-se, com a Teoria Tridimensional do Direito, superar a concepção do Direito como algo pronto e acabado, ou seja, um “dado natural”. Na realidade, a Teoria Tridimensional do Direito desenvolvida por Miguel Reale concebe a compreensão do fenômeno jurídico de forma dialética, ou seja, em constante movimento, e não como algo dado e estático.

No entanto, afirma Miguel Reale que a experiência jurídica pode ser analisada também sob o prisma ético ou da praxis, além da concepção gnoseológica, ou seja, do chamado historicismo axiológico, “quando o processo ontognoseológico se põe como objetivação histórica, em termos de experiência axiológica ou histórico-cultural”7.

A história não deve ser restrita ao conhecimento de fatos do passado. A perspectiva histórica deve ser compreendida dialeticamente “condicionando a coexistência humana no hoje e no amanhã, a partir de ações do passado”8, fazendo com que haja interdependência entre presente, passado e futuro.

O Direito é um fato histórico e cultural e, como tal, cambiante no tempo e no espaço. Qualquer forma de conhecimento, inclusive do Direito, se compreendido de forma despida de sua dimensão histórica, implicaria um manifesto equívoco, já que o homem é um ente manifestamente histórico e, como tal, evolutivo.

O Direito não pode, no entanto, ser compreendido em um historicismo fechado, ou seja, determinado por fatos do passado, sem a possibilidade de modificação do futuro, sob pena de rompimento. O direito, assinala Miguel Reale, compreende um “historicismo aberto, que leva em conta o fator decisivo do ineditismo da liberdade, como componente do futuro, para a vivência do presente e diagnóstico do passado”9 (destaques no original).

Não apenas as normas devem ser compreendidas em uma perspectiva histórica, mas também os fatos e os valores. O Direito não se reduz apenas às normas, como sustentam os normativistas, como Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, mas também aos fatos e valores.

Os valores não são objetos estáticos, mas devem ser inseridos e compreendidos em sua perspectiva histórico-evolutiva. Não é possível, assim, o valor se reduzir de forma permanente ao real, sob pena de, como assinala Miguel Reale em sua Filosofia do Direito, perder “a sua essência que é a de superar sempre a realidade graças à qual se revela e na qual jamais se esgota”10.

Além dos aspectos normativos e axiológicos, o aspecto factual também é histórico e cultural, podendo, inclusive, o mesmo fato ser estudado de forma distinta por cientistas de áreas de saber distintas.

A possibilidade de mudança é a condição para a própria permanência e estabilização das relações sociais. Tudo é mutável e cambiante, como já assinala Heráclito de Éfeso11 em sua filosofia.

Assevera Miguel Reale que, além da dimensão histórica, o ato de conhecer apresenta polaridade e, ao mesmo tempo, complementariedade e correlação entre a teoria e a prática12.

Essa visão de Miguel Reale supera a concepção kantiana de separação entre as instâncias teoréticas e as instâncias práticas.

Cumpre acrescentar, outrossim, que por meio da dialética da complementariedade é possível estabelecer a ligação entre as experiências gnoseológica e ética. A gnoseológica representa o ramo da filosofia que estuda o conhecimento, sua origem e a sua natureza.

A dialética da complementariedade, contudo, não se confunde com a dialética material marxiana, esta concebida como implicações entre os opostos, ou seja, entre a tese e a antítese que se superam em busca de uma síntese. A dialética da complementariedade, assinala Miguel Reale, representa o tensionamento das

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contradições, mantendo a correlação entre si, sem que os elementos deixem de ser contrários13.

2. O sistema na teoria tridimensional do direito: as dimensões do fato, do valor e da norma

A ciência do Direito era polarizada essencialmente em duas teorias que tentavam reduzir o fenômeno jurídico apenas à esfera da norma, ora à esfera do mundo fático. O primeiro grupo era representado pelos normativistas, que reduzia o Direito à norma positiva14. O segundo grupo, que reduzia o fenômeno jurídico à dimensão fática, era marcado pela influência do sociologismo, em suas múltiplas vertentes, dentre elas a Escola do Direito Livre de Oskar Von Büllow15, do direito social e do direito concreto.

A Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale representou uma ruptura a essa tensão desses dois polos que compreendiam o fenômeno jurídico, ora adstrito apenas como norma, ora apenas como fato social.

A compreensão da Teoria Tridimensional do Direito não pode ser adstrita pura e simplesmente na compreensão que a experiência jurídica se reduz ao fato, ao valor e à norma. Miguel Reale elaborou um tridimensionalismo específico, concreto e dialético, ou seja, a compreensão de que a tridimensionalidade da experiência jurídica deve ser compreendida a partir de uma visão integrada das dimensões do fato, do valor e da norma16.

A Teoria Tridimensional do Direito, para o próprio Miguel Reale, representou uma evolução da sua concepção sobre a...

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