A autonomia do direito do agronegócio

AutorRenato Buranello
Páginas185-193

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O caráter orgânico das realidades que compõem a atualidade econômica e a necessidade de ordenação lógica para melhor compreensão dos elementos retirados desta, sob utilidade científica e conveniência pedagógica, leva à formação do conceito de "sistema". Sistema pode, assim, ser conceituado como um conjunto de conhecimentos ordenados seguido de determinados princípios. O caráter instrumental do Direito corresponde à função que a sociedade atribui às regras jurídicas de servir como ferramenta para disciplinar as condutas de acordo com o interesse social. Assim também na atividade econômica o Direito prescreve comandos normativos próprios e específicos reguladores das relações das empresas entre si e entre elas e o Estado.

O Direito é uno, mas seu estudo em disciplinas ou subáreas faz-se por motivos didáticos, para a mais adequada identificação e comparação de seus elementos. Na intenção de aprimorar o conhecimento sobre uma determinada área e melhor regular suas relações, identificam-se comandos específicos que viabilizarão tal tarefa. Os sistemas sociais desenvolvem mecanismos de estabilização, isto é, centros integradores de sentido que conferem à variedade certa unidade aceitável para interações sociais. Trata-se de centros significativos que expressam uma preferibilidade por determinados conteúdos de expectativa, ou, melhor, por conjuntos de conteúdos abstrata-mente integrados num sentido consistente.1 A especialização crescente de novos ramos significa para a dogmática a determinação de um objeto próprio e de princípios peculiares. Isso provoca uma discussão permanente na doutrina, que ora julga de bom alvitre as novas especificações, ora não lhes confere qualquer acréscimo em operacionalidade, tudo em razão da decidibili-dade. O estudo dessas discussões, de suas teses e argumentações é, porém, tarefa dos especialistas, que, com base em considerações de Teoria Geral do Direito - como as que estamos expondo -, promovem uma contínua diversificação dos ramos dogmáticos, discutem sua pertinência, viabilidade e oportunidade. O cientista, ao indagar a essência do Direito, o analisará também tridimensionalmente, ou seja, como valor que, incidindo sobre relações factuais, se reafrange num conjunto de regras ou normas.2

A função instrumental do Direito evidencia a reunião das várias partes que formam uma unidade e que os comandos normativos existem para assegurar a preservação de valores sociais que a sociedade almeja alcançar. Para cada área o Direito prescreve comandos normativos próprios e específicos, surgindo daí os denominados

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ramos do Direito. O estudo do Direito em disciplinas ou subáreas faz-se por motivos estritamente didáticos. A referida divisão faz com que o operador do Direito identifique e analise com maior eficiência os comandos normativos da respectiva matéria. Como já mencionado, os comandos normativos das diferentes áreas do Direito estão entrelaçados e revelam a existência de um sistema. O cientista do Direito, com o intuito de melhor aferir o objeto de seu estudo, faz um corte metodológico na área a ser investigada, a fim de desenvolver com maior precisão o detalhamento do tema.3 Cabe ao intérprete das referidas regras, por intermédio de um trabalho hermenêutico, identificar no respectivo enredo normativo e dele extrair um subconjunto de normas que apresentem unidade e harmonia, formando um ramo do Direito, para assim se chegar a um conjunto sistematizado de normas que lhe dá identidade. O eminente professor Miguel Reale destaca que "o fato de não ser fonte de Direito não priva, todavia, a doutrina de seu papel relevan-tíssimo no desenrolar da experiência jurídica. Na realidade, a sua função é de outra natureza, como se depreende do confronto entre o que é produzido pelas fontes e o que é revelado pela doutrina".4 Dessa forma, posto o acento nas diversas funções que as regras de um ordenamento jurídico desempenham, nota-se, entre elas, a disposição em tornar possível a coexistência de interesses divergentes, por meio de delimitação de esferas singulares de liberdade, e tornar possível a composição de interesses convergentes, por meio da designação de papéis específicos para que se atinja o fim comum.5 Parece-nos que para o conjunto de normas jurídicas que regulam o agro-negócio já se podem destacar interesses específicos e convergentes e - por que não falar? - autonomia didática.

Como poderemos perceber durante a extensão de todo este trabalho, do conjunto de regras que disciplinam as relações econômicas que envolvem a atividade agrícola podem ser extraídas normas que norteiam e conferem harmonia a esse subsistema legal. Portanto, utilizaremos a expressão "direito do agronegócio" para caracterizar o conjunto de normas jurídicas que disciplinam as relações intersubjetivas decorrentes da produção, armazenamento, comercialização e financiamento da agricultura lato sensu. Entendemos que a expressão "direito do agronegócio" expressa de forma dire-ta e objetiva a matéria jurídica respectiva, uma vez que identifica de imediato o conceito de relações intersubjetivas regradas. A CF dispõe em seu art. 187 que a política agrícola deverá ser planejada e executada com efetiva participação dos produtores e trabalhadores rurais, bem como dos seto-res de comercialização, de armazenamento e de transportes, incluindo-se, ainda, as atividades agroindustriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais. A política agrícola deve ser executada de acordo com as seguintes diretrizes: I - instrumentos cre-ditícios e fiscais; II - preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização; III - incentivo à pesquisa e à tecnologia; IV - assistência técnica e extensão rural; V - seguro agrícola; VI -cooperativismo; VII - eletrificação rural e irrigação; e VIII - habitação para o trabalhador rural. Complementar às disposições constitucionais, aLei 8.171, de 17.1.1991, dispõe sobre a política agrícola, define os objetivos e as competências institucionais e estabelece as ações e instrumentos da política agrícola relativamente às atividades agropecuárias, agroindustriais e de planejamento das atividades pesqueira e florestal. Estabelece, ainda, que o setor agrícola é constituído pelos seguintes segmentos: produção, insumos, agroindústria, comércio, abastecimento e "afins", os quais respondem diferenciadamente às políticas

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públicas e às forças de mercado. Por fim, dita que são objetivos da política agrícola sistematizar a autuação do Estado, para que os diversos segmentos intervenientes da agricultura possam planejar suas ações e investimentos numa perspectiva de médio e longo prazos, reduzindo as incertezas do setor. É nesse cenário que o aspecto mais importante se destaca, na adequada fluência dos recursos necessários ao cumprimento das normas gerais referidas, onde os instrumentos privados de crédito no financiamento da atividade sustentam todo o desenvolvimento do setor agropecuário. Assim, o Sistema Financeiro Nacional/ SFN, na organização do mercado financeiro e de capitais, está estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país, na mobilização e transferência eficaz na aplicação da poupança pública, devendo desenvolver produtos financeiros que darão maior acesso ao crédito.

Todavia, sabemos da usual preponderância em incorporar sob a expressão "direito agrário" todo o complexo privado das relações que pretendemos destacar. A par da então superada divisão entre o direito público e direito privado, ressalta-se, no entanto, a vertente privatista do direito do agro negócio. A contrario sensu, e ainda mais reforçando o necessário destaque di-dático, o direito agrário abarca a vertente das relações públicas do uso da...

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