Authoritarianism and judiciary: the institutional memory on the authoritarian regime/A historia que nos contam: a memoria do judiciario sobre o regime autoritario.

AutorSchinke, Vanessa Dorneles
  1. Introducao

    Durante o regime autoritario brasileiro de 1964-1985, as graves violacoes de direitos humanos foram realizadas de forma sistematica e generalizada, contra grupos que se opunham a politica do regime. As instituicoes, por sua vez, tiveram papel central na conducao de politicas economicas e sociais, destinadas a manter o projeto autoritario (fundado em uma concepcao economica dependente, baseada na ideologia da seguranca nacional). De um lado, o Congresso Nacional confeccionou a legalidade autoritaria (PEREIRA, 2010) que, embora adotando procedimentos e formulas legislativas esquizofrenicas, serviu para tentar confundir o regime de fato da epoca com um regime de direito. De outro, o Executivo construia discursos que tentavam dotar de normalidade institucional a ruptura provocada pelo golpe de 1964.

    Junto a esse contexto, a justica comum manteve-se em funcionamento, ainda que alguns juizes tenham sido aposentados compulsoriamente, por motivos politicos. O regime deu especial atencao do judiciario quando, logo em 1965, publicou o Ato Institucional no 2 que alterada, significativamente, a justica comum. Se, desde, 1964, a arbitrariedade dos atos do Executivo nao poderia ser objeto de apreciacao judicial, nos termos da clausula de exclusao prevista, pela primeira vez, no art. 7[degrees] do AI-1, a partir de 1965 a justica federal foi reinstalada e teve seus juizes nomeados pelo Presidente da Republica.

    O judiciario foi mantido, reestruturado e incrementado, principalmente no que tange a criacao de Comarcas e Varas. A esta instituicao coube a aplicacao da legalidade autoritaria (incluindo a aplicacao da paradoxal clausula de afastamento da apreciacao judicial, prevista desde o AI-1), e a analise de casos concretos que envolviam graves violacoes de direitos humanos. A atuacao da justica comum durante o periodo nao foi irrelevante. Esse espaco detinha inumeros filtros que possibilitavam a mimetizacao da ruptura institucional, decorrente de um golpe civil-militar, com um ficticio Estado de Direito.

    Considerando esse contexto socio-politico, este texto se debruca, criticamente, sobre a narrativa institucional construida pelo poder judiciario sobre sua atuacao, durante o regime autoritario de 1964-1985. A partir de fontes primarias e atraves de tecnicas empiricas de pesquisa, apresenta a amarracao de sentido produzida pelos espacos dedicados a memoria institucional da justica comum do Rio Grande do Sul (estadual e federal). Conforme a apresentacao do material, serao perceptiveis o tom laudatorio construido pela memoria institucional e o destaque conferido ao foro intimo dos juizes, elementos que pouco nos dizem sobre a qualidade do exercicio das funcoes constitucionalmente atribuidas ao poder judiciario.

    O texto parte dos conceitos de abuso de memoria, de Tzvetan Todorov (2000, p. 33), que questiona a finalidade da memoria, colocando-a lado a lado, em importancia, com a propria iniciativa de construir uma memoria. Nesses termos, uma narrativa torna-se abusiva quando sua finalidade reitera ou silencia demasiadamente sentidos essenciais sobre a historia que se pretende contar. Essa metodologia foi escolhida para operacionalizar, mais claramente, o potencial vivificador da memoria, que comporta, intrinsecamente, a faculdade de romper com os nexos construidos por outras narrativas historicas que os apresentam como necessarios e indissoluveis. A narrativa construida pelo proprio poder judiciario, em cotejo com a narrativa tecida a partir de indicios e de fontes primarias, pretende registrar o tenue limite entre memoria e esquecimento e, consequentemente, entre uso e abuso.

    Mais do que isso, o texto sugere que os conteudos voluntariamente apagados da historia dessa instituicao, sobretudo acerca da narrativa constitucional brasileira, formam um espaco privilegiado de analise, que comunica muito sobre o papel que o poder judiciario acredita deva desempenhar na atual democracia. De um lado, as zonas opacas e os silencios da construcao oficial indicam uma pratica institucional nebulosa, que nao dialoga com a sociedade e que nao fundamenta suas interpretacoes sobre o direito. De outro, os nexos eleitos para formar essa memoria sinalizam a colonizacao de uma instituicao, cuja historia e composta por narrativas personalissimas, baseadas na vida privada dos ocupantes de seus cargos. A soma entre esses esquecimentos, os ditos e nao-ditos pelos espacos de memoria da justica comum, esbocam uma instituicao que, na democracia, esta mais preocupada em valorizar facetas privadas dos individuos que a integram, do que em refletir sobre a qualidade do exercicio de suas atribuicoes.

  2. A seletividade da memoria

    Na memoria, como construcao seletiva do passado, os pontos de partida e de chegada sao escolhidos pelo proprio evocador, ainda que pretenda falar em nome individual ou de um grupo (CATROGA, 2001, p. 22). Ao passo em que e impossivel narrar tudo, pois e da natureza da narracao o exercicio de uma funcao mediadora entre memoria e esquecimento, nao ha narrativa canonica. Sempre e possivel narrar de outra forma, incluir ou excluir sujeitos e configurar a narrativa de outro modo. A logica de acao, enquanto processo de narracao do acontecido, pode acarretar a desconstrucao do continuismo ou a reiteracao de que aquelas narrativas obedecem a ordenacoes irreversiveis (HALBWACHS, 2001, p. 33). Walter Benjamin (2002, p. 21) faz referencia ao potencial revivificador da memoria, que ameaca constantemente a narracao que se apresenta como causal em relacao ao presente.

    O elemento central, para compreendermos a forca irradiadora da memoria institucional dentro de uma democracia, parte da admissao de que a memoria, manifestada atraves de uma narrativa, e um exercicio, uma acao, o resultado de uma disposicao de contar, de determinada maneira, o que se passou. Dai o equivoco de compreende-la como algo recebido, como um recipiente que tudo acolhe, passivamente, sem discriminacao. Antes de ser construida, ela foi buscada. Os fragmentos que conferem sentido a determinada narrativa foram construidos, analisados e encaixados.

    Nesse sentido, o exercicio de construir uma memoria tem como finalidade, da sua logica de acao, demarcar sentidos no presente. Ao se falar de uma memoria da instituicao, com a especificidade de ser uma narrativa construida pela propria instituicao, os fragmentos e a suas formas de encaixe, ou seja, os sentidos construidos--os apelos, as exaltacoes e as depreciacoes localizam-se nas lutas semanticas presentes e e nessas disputas que pretendem interferir.

    O empenho na construcao da narrativa nao e, portanto, uma busca por alguma verdade, tal qual um objeto afundado, que precisa ser resgatado. Nao ha, nesse sentido, objeto pronto. Esse movimento que se volta para o passado parte de necessidades e preocupacoes presentes. As circunstancias que integram a narrativa nao foram agraciadas pelo altruismo e pela generosidade de quem narra, saindo do esquecimento para uma superficie de reconhecimento. Ao contrario, as partes da narrativa sao escolhidas conforme as angustias, as necessidades e os objetivos de quem a tece.

  3. A historia que o judiciario nos conta

    A Apresentacao do projeto Historias de Vida, que reune entrevistas com juizes da justica estadual do Rio Grande do Sul, parte de uma preocupacao: "o Brasil nao cultua o judiciario" (SOUZA, 1999). (1) A narrativa da memoria institucional avisa que sera construida a partir do vies que indica a necessidade de uma cultura do Poder Judiciario. Decorre dessa problematica o sentido da afirmacao de que "o Projeto Memoria do Judiciario, visa institucionalizar uma cultura do judiciario" (SOUZA, 1999).

    O povo nao aprendeu a ama-lo. As elites desdenham-no. Os politicos o desapreciam. Os demais poderes temem a sua afirmacao, dada a competencia constitucional de controlar os seus atos. Os meios de comunicacao o desvirtuam, por desconhece-lo. O Poder Judiciario continua "esse desconhecido". [...] Quantas obras significativas foram publicadas no Brasil neste seculo sobre o Poder ou sobre os seus membros mais ilustres? Nao alcancarao uma dezena, por certo. (SOUZA, 1999, p. 2). (2)

    O culto ao judiciario, apresentado nesses termos, reivindica a construcao de uma memoria institucional que se insere em uma democracia, dentro da qual o judiciario exerce suas funcoes, cujas finalidades sao delineadas, dentro do Estado Constitucional, para melhor sedimentar o proprio regime democratico. A interface entre a construcao de uma narrativa de culto ao judiciario e sua pertinencia ao regime democratico, portanto, indicara as inconsistencias ou os potenciais de manutencao desses moldes de narrativa.

    Em 2012, o Tribunal de Justica do Rio Grande do Sul publicou uma atualizacao da obra originalmente intitulada Tribunal de Justica do RS--125 anos de historia (1874-1999). Nas paginas iniciais da nova publicacao, merece destaque a frase do entao Coordenador do Memorial do Judiciario do Rio Grande do Sul: "o preceito vetor da administracao do poder judiciario e a supremacia da dignidade deste poder" (FELIX, 2012, p. 11). A mensagem subliminar dessa afirmacao sugere que a narrativa sobre o poder judiciario e uma louvacao ao proprio judiciario. (3)

    A dimensao seletiva da memoria vincula-se intimamente ao que Paul Ricoeur denomina de abuso da memoria e abuso do esquecimento. Quando algo e muito lembrado, da-se o abuso da memoria e, quando muito esquecido, o abuso do esquecimento (RICOEUR, 2007, p. 455). A ideia de abuso da memoria tambem e trabalhada por Tzvetan Todorov (2000, p. 17), a partir da relacao entre recuperacao do passado e seu uso. A necessidade de recordar nao justifica a instrumentalizacao da narrativa. A manipulacao concertada da memoria aponta para tres elementos relevantes, pertinentes na reflexao sobre a memoria do judiciario sobre sua atuacao no regime autoritario: a finalidades da instrumentalizacao; a artificialidade do controle sobre o que deve ser lembrado ou esquecido e a pertinencia na...

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