Estágio Acadêmico: Ato Educativo ou Trabalho Marginal?

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas106-118

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1. Introdução

O presente trabalho busca analisar a situação do estágio profissional-acadêmico dentro do quadro do trabalho marginalizado no Brasil.

A hipótese de partida gira em torno da ideia de que o estágio acadêmico-profissional, no contexto trabalhista brasileiro, ainda que configure formas abusivas e derive para o trabalho disfarçado, não consubstancia trabalho marginalizado, tendo em vista o grau de proteção atualmente conferido pela legislação de regência.

Ainda que o estágio não configure vínculo de emprego, certo é que a legislação atribui ao estagiário determinadas prerrogativas, tais como bolsa remunerada, direito a férias, fixação de jornada, dentre outros, situações que analisaremos melhor adiante.

Assim, tratar-se-ia de uma figura possivelmente menos grave que o trabalho marginalizado, talvez apenas forma de trabalho precarizado. Todavia, não se descarta possa, no caso concreto, o trabalho disfarçado de estágio profissionalizante configurar efetivamente trabalho marginal.

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Contudo, outra leitura também é possível. A legislação aplicável ao estagiário poderia ser compreendida, ambiguamente, como um sofisticado arranjo jurídico que confere apenas “meia-forma” de proteção trabalhista aos estagiários, permitindo aos detentores do capital prosseguir explorando os discentes1 sob a prática, sutilmente identificada por Souto Maior (2011, p. 755-761), da consagração do exercício abusivo do ilícito de desrespeito aos direitos trabalhistas.

Pugnamos, entretanto, por uma interpretação da normativa aplicável ao estágio que alcance aquilo que se entende como o mais adequado método para o Direito Social e, em particular, para o Direito do Trabalho: o escopo de melhoria da condição humana a partir da construção de coerções jurídicas eficientes ante as relações capitalistas (SOUTO MAIOR, 2011, p. 479; 548-561).

2. Definição e objetivos do estágio acadêmico

Inicialmente, cumpre estabelecermos uma distinção inicial: estágio, profissional e/ou acadêmico, não equivale a uma relação de emprego. Isso pode ser deduzido, para mais do que decorre das exigências de ensino e formação profissional, da própria definição legal2, que aqui transcrevemos:

Art. 1º Estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular em instituições de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos.

§ 1º O estágio faz parte do projeto pedagógico do curso, além de integrar o itinerário formativo do educando.

§ 2º O estágio visa ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o trabalho.

Como se vê, os objetivos do estágio são profissionais e pessoais, integrando o currículo pedagógico do curso frequentado. Não se equipara a contrato de trabalho.

Estágio não é emprego, e estagiário não pode ser considerado mais uma modalidade de empregado. Nestes termos, a lei em destaque estabelece que o contrato de estágio não configura relação de emprego, in verbis:

Art. 3º O estágio, tanto na hipótese do § 1º do art. 2º desta Lei quanto na prevista no § 2º do mesmo dispositivo, não cria vínculo empregatício de qualquer natureza, observados os seguintes requisitos:

I — matrícula e frequência regular do educando em curso de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e nos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos e atestados pela instituição de ensino;

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II — celebração de termo de compromisso entre o educando, a parte concedente do estágio e a instituição de ensino;

III — compatibilidade entre as atividades desenvolvidas no estágio e aquelas previstas no termo de compromisso.

§ 1º O estágio, como ato educativo escolar supervisionado, deverá ter acompanhamento efetivo pelo professor orientador da instituição de ensino e por supervisor da parte concedente, comprovado por vistos nos relatórios referidos no inciso IV do caput do art. 7º desta Lei e por menção de aprovação final. (destaques nossos)

A diferença entre contrato de trabalho e estágio reside em que no último o objetivo é a formação profissional do estagiário, por meio do ganho de experiência prática, cotidiana, da profissão, tendo finalidade pedagógica, embora existentes alguns dos elementos da relação de trabalho — pessoalidade, subordinação, continuidade e alguma contraprestação (BARBOSA GARCIA, 2010, p. 278).

Ainda que o estagiário venha a contribuir para a produção daqueles que lhe contratem, aqui nominados “parte concedente”, não se deve aceitar que sua capacidade produtiva seja incorporada à apropriação de capital humano e produção de mais-valia. Conforme elucida Jorge Luiz Souto Maior (2011, p. 39, grifamos):

As funções essenciais do Direito do Trabalho (...), que são as de valorizar socialmente o trabalho e de preservar a dignidade humana do trabalhador no modelo de produção capitalista, exigem, paradoxalmente, uma desvalorização filosófica do trabalho dentro de uma concepção puramente liberal, ou, dito de outra forma, a revelação de quanto o trabalho alienado pode comprometer a construção da dignidade humana. Assim, o direito ao não trabalho aparece como uma feição relevante do Direito do Trabalho...

Ao estágio deve se aplicar, com especial relevância, esse mencionado direito ao não trabalho: cabe ao estudante estudar, devendo a proteção jurídica visar afastá-lo, o quanto possível, do processo de alienação de mão de obra em prol do capital.

Não esqueçamos, contudo, que, em um sistema de produção capitalista, as relações sociais são necessariamente calcadas no modelo de exploração, atrelado à acumulação de capitais, sempre objetivando a produção de mais-valia (ainda que travestida de contrato de estágio).

A constatação da regularidade do contrato de estágio (o exame da configuração ou não trabalho disfarçado) compete à Administração Pública do Trabalho, por vezes em conjunto com o Ministério Público do Trabalho (BARBOSA GARCIA, 2010, p. 1.071-1.073).

De particular importância essa fiscalização, especialmente por parte do Ministério Público do Trabalho3 (a quem cabe combater o trabalho infantil, na perspectiva da proteção aos direitos

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fundamentais), tendo em vista a possibilidade de realização de estágio por estudantes do ensino médio e dos anos finais do ensino fundamental, o que poderá configurar trabalho infantil4

(BARBOSA GARCIA, 2008, p. 55).

Muito embora a Lei do Estágio não traga disposição explícita quanto à idade mínima exigível para a prática de estágio, é vedado “qualquer trabalho” ao menor de dezesseis anos, ressalvada a “condição de aprendiz, a partir de 14 anos”, nos termos do art. 7º, XXXIII, da Constituição Federal.

Mesmo tendo o estágio finalidade educativa, o estagiário enquadra-se, de fato, na definição de trabalhador em sentido lato. Afigurar-se-á discriminatório, por conseguinte, “entender que o menor trabalhador se submeterá ao limite mínimo de idade dependendo da sua condição de empregado ou de estagiário. A necessidade concreta de proteção do menor é um imperativo ditado pela realidade e reconhecido pelo constituinte” (PALMEIRA SOBRINHO, 2007, p. 1.180).

Mencione-se, ainda, interessante posição minoritária no sentido de que o estágio não profissionalizante do ensino médio (em especial pela dificuldade de desempenho de atividades vinculadas à complementação do curso estudantil) e o estágio para adolescentes do ensino médio colidiriam com o princípio da proteção integral, uma vez que não levam em conta a condição peculiar da pessoa em desenvolvimento (CORREIA, 2009, p. 122).5

O entendimento de grande parte da doutrina mostra-se, todavia, adepto do estágio para estudantes de ensino médio em geral, principalmente se a atividade guardar liame com projetos de interesse social, voltados ao estímulo da formação profissional e da cidadania6.

3. Breve análise da legislação aplicável ao contrato de estágio

A partir da premissa estabelecida anteriormente de que estágio não corresponde à relação de emprego, algumas outras distinções devem ser fixadas, em especial as regras jurídicas aplicáveis ao contrato de estágio. Em suma, as garantias legais do estagiário para com a instituição que se vale de sua força de trabalho.

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Atualmente, o estágio é regulado pela Lei n. 11.788, de 25.9.2008, publicada no DOU de
26.9.2008. Anteriormente, o contrato de estágio era disciplinado pela Lei n. 6.494, de 7.12.1977, então regulamentada pelo Decreto n. 87.497, de 18.8.1982.7

A garantia mais importante atribuída ao estagiário consiste em que, sendo sua relação de estágio mero disfarce de uma, em essência, relação de trabalho, caracterizado se encontra o vínculo de emprego8 e, consequentemente, aplicável se faz toda a legislação trabalhista e previdenciária9.

Aqueles que contratem estagiários devem propiciar um ambiente supervisionado e propício ao aprendizado, além de fornecer às instituições de ensino toda a documentação e relatórios das atividades desenvolvidas. Há, também, garantia de contratação de seguro contra acidentes pessoais10.

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Outras garantias conferidas ao estagiário consistem em jornada de atividade de estágio regulamentada e, sobretudo, compatível com as atividades escolares11, bem como a duração máxima que pode ter o contrato de estágio12. Esse ponto é bastante importante para descaracterizar o estágio como relação de emprego ou, perversamente, dar-lhe...

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