Assédio religioso nas relações institucionais e trabalhistas

AutorManoel Jorge e Silva Neto
CargoProcurador do Ministério Público do Trabalho/BA
Páginas47-65

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Introdução

Embora Bobbio tenha afirmado eloquentemente que o grande problema dos direitos humanos na atualidade não é tanto o de justificá-los, mas sim o de empreendê-los (A era dos direitos, p. 24), dados da realidade empírica vêm demonstrando que há, sim, direitos ainda em estado de justificação dogmático-teórica.

Com evidência, basta que se examine o contexto de efetividade de alguns direitos fundamentais a fim de que se examine cuidadosamente a assertiva do genial jurista italiano.

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Certifique-se, por exemplo, o que se sucede com o direito fundamental à liberdade religiosa. Trata-se de direito verdadeiramente ainda em estado de justificação na medida em que a realidade põe à mostra a distância enorme que subsiste entre a proteção constitucional e as circunstâncias da vida a contradizerem fleumaticamente os comandos constitucionais.

Deveras, como explicar a aposição do crucifixo atrás de Mesas Diretoras da Câmara, do Senado, do Supremo Tribunal Federal e na esmagadora maioria das salas de sessões de tribunais e órgãos judiciais singulares? Como entender a realização de provas de concursos públicos em dias guardados para o culto?

Evidentemente que não serão todos os temas controvertidos e afetos à liberdade de religião que tomarão parte neste trabalho, mas apenas aqueles relacionados ao que denominamos de assédio religioso, que se traduz em nova figura de assédio estudada neste trabalho, vinculando-a às relações de trabalho.

Com o propósito de análise sistemática do assédio religioso nas relações de trabalho, iniciamos o Capítulo 1 com o estudo da propedêutica relativa ao tema, com indicação de aspectos introdutórios, apresentação de conceito e menção aos seus elementos constitutivos.

Prosseguindo-se, no Capítulo 2, há referência indicativa às duas espécies de assédio religioso: o assédio religioso individual e o assédio religioso institucional, promovendo, ainda, conexão entre o assédio religioso institucional e a escusa de consciência e com as relações de trabalho.

No Capítulo 3, é chegado o momento de exame da viabilidade de reparação pela prática do assédio religioso, seja o individual, seja o de compostura institucional.

Já, no Capítulo 4, parece-nos relevante examinar o assédio religioso e a necessidade de suspensão de atividade nociva, com o que se imporá o estudo de repercussões de ordem processual.

Finalmente, no Capítulo 5, são ofertadas as conclusões do trabalho que reputamos mais importantes.

Capítulo 1 - Aspectos propedêuticos sobre o assédio religioso
1.1. Assédio religioso Aspectos introdutórios

Conceituar não é fácil; pior ainda em se tratando de realidade ainda não examinada pelo sistema da ciência do direito no Brasil.

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Porém, muito mais do que a conceituação servir aqui a propósitos exclusivamente didáticos, a apresentação do conceito de assédio religioso é simplesmente imprescindível à própria compreensão da nova figura de assédio.

Alie-se a isso o fato de que é conatural ao exercício da fé a conversão de agnósticos, ateus ou mesmo de indivíduos que professem fé diversa daquela abraçada pela pessoa que tenta converter. Bem entendendo: não se poderá admitir como assédio religioso toda e qualquer ação da pessoa e que se relacione à conversão de outro indivíduo.

Parece-nos que a regra de ouro da liberdade propugnada por Spencer é bastante elucidativa para indicação do conceito de assédio religioso: a liberdade de alguém termina onde começa a liberdade de outrem.

Contudo, o exercício da liberdade religiosa deve merecer contenções, pena de restarem vulnerados outros direitos fundamentais das pessoas.

Se é verdade acentuar o art. 5e, VIII/CF que "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei", não menos é, todavia, que "é livre a manifestação do pensamento (art. 5e, IV/CF), razão por que em tema de exercício do direito fundamental à liberdade religiosa, estamos invariavelmente em face do fenômeno da concorrência de direitos fundamentais1, eis que, para o seu exercício, concorrem diversos direitos individuais.

Quando alguém opta por se vincular a dado segmento religioso, está, a um só tempo, promovendo o exercício do direito fundamental à liberdade de religião e também à livre manifestação do pensamento, ou direito de opinião, visto que é comum que os crentes façam proselitismo de sua fé e, ao fazê-lo, estão a exercitar não apenas o direito consagrado no art. 5e, VIII/CF, mas também o direito individual protegido pelo art. 5e, IV/CF.

Mas um fato salta aos olhos: é que a mesma liberdade de manifestação do pensamento que tutela o crente a fim de possibilitá-lo à realização do proselitismo de sua seita é a mesma, a mesmíssima que limita o seu raio de ação para igualmente proteger a opinião daquele que crê em fé diferente ou até não crê em rigorosamente nada, concretizando, nesse último caso, a concorrência entre a liberdade de consciência e a liberdade de manifestação do pensamento.

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E o problema do assédio religioso ganha em dimensão precisamente porque o crente tem absoluta convicção de que se encontra em possessão da verdade e que todas as outras pessoas precisam de sua ideia de salvação para o alcance da felicidade eterna.

São contundentes as palavras de Léon Duguit: "Tout individu a incontestablement le droit de croire intérieurment ce qu'il veut en matière religieuse. Cela proprement la liberté de conscience, qui n'est pas seulement la liberté de ne pás croire, mais aussi la liberté de croire ce que l'on veut. (...) Ni en droit ni en fait le législateur ne peut pénétrer dans l'intérieur des consciences individuelles et leur imposer une obligation ou une prohibition quelconque"2, deixando claro o publicista francês que todo indivíduo tem incontestavelmente o direito de crer no que quiser em matéria religiosa. Esta é propriamente a liberdade de consciência, que não é apenas a liberdade de não crer, mas também a liberdade de crer no que quiser, registrando ainda que nem de fato e nem de direito poderá o legislador penetrar nas consciências individuais e lhes impor uma obrigação ou proibição qualquer (tradução livre).

Todavia, como subjacente ao exercício da liberdade religiosa está o direito à manifestação do pensamento a respeito da fé abraçada, não se poderá concluir que toda investida do crente contra agnósticos vem a delimitar a figura do assédio religioso.

Por conseguinte, não são e nem podem ser referidos como casos desta modalidade de assédio aqueles nos quais não se percebe a existência de comportamento não tolerado pelo interlocutor.

Se o indivíduo quer converter alguém para seu segmento religioso e entrega panfletos, informando ainda a respeito de data, horários de cultos, endereço da igreja, etc., não parece haver fundamento para reconhecer-se a figura do assédio religioso se entre o conversor e o agnóstico se instalou situação comunicativa e na qual houve a aceitação do material fornecido pelo crente.

1.2. Assédio religioso Conceito

Consequentemente, seja como mera decorrência do propósito institucional dos segmentos religiosos quanto à generalizada conversão das pessoas à sua fé religiosa, seja porque a investida do crente nem sempre é assumida como agressão pelo interlocutor, é necessário se cercar de cuidados quando da tentativa de conceituação desta figura de assédio.

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Assim, propomos o seguinte conceito:

Assédio religioso é todo comportamento ilícito, de pessoa natural ou jurídica, destinado à conversão de agnósticos, ateus ou indivíduos que professem fé diversa do assediante, para a qual se utiliza de violência física ou moral.

1.3. Assédio religioso Elementos constitutivos

O assédio religioso se compõe dos seguintes elementos: a) "comportamento ilícito", porque se o comportamento do suposto assediante é aceito ou mesmo tolerado pelo interlocutor, não há espaço para reconhecimento dessa figura de assédio; b) "de pessoa natural ou jurídica", porque o assédio em questão pode se originar do crente individualmente considerado ou da própria organização religiosa, como veremos no próximo subitem; c) "destinado à conversão", porque o elemento teleológico do assédio religioso é a obtenção de novos adeptos a dado segmento religioso; d) "para a qual se utiliza de violência física ou moral", em virtude de a crença religiosa naturalmente conduzir à intolerância, tem-se que as práticas de conversão podem descambar para a utilização de violência física e moral.

Capítulo 2 - Assédio religioso Espécies
2.1. O assédio religioso e suas diversas espécies

Promovida a conceituação do denominado assédio religioso, é possível apresentar as espécies existentes.

Inelutavelmente, os dados da experiência têm mostrado que não são idênticas...

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