Aspectos da cláusula de redelivery nos contratos de afretamento por tempo

AutorArmindo Tabosa Amorim
Páginas66-75

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Os contratos de afretamento

A Lei n. 9.432, de 1997, em seu art. 2o, estabelece três modalidades de afretamento marítimo, a saber, (a) afretamento a casco nu, consistente no contrato em que o afretador tem a posse, o uso e o controle da embarcação por tempo determinado, podendo designar o comandante e a tripulação; (b) afretamento por tempo, contrato em que o afretador recebe a embarcação armada e tripulada, ou parte dela, para operá-la por tempo determinado e (c) afretamento por viagem, contrato em que o fretador se obriga a colocar o todo ou parte de uma embarcação tripulada à disposição do afretador para transporte em uma ou mais viagens.

O afretamento a casco nu é denominado, internacionalmente, bareboat char-ter party, recebendo o afretamento de viagem a designação voyage charter party e o afretamento por tempo a de time charter party.

São contratos bem distintos entre si, assemelhando-se o afretamento a casco nu ao contrato de locação de coisa, enquanto que o afretamento por viagem aproxima-se do contrato de transporte, embora a individualização do navio possa ter relevância no primeiro e seja indiferente no segundo, ao passo que o afretamento por tempo é negócio jurídico sui generis, não se confundindo com outras espécies contratuais.1

No afretamento por tempo, espécie contratual de maior interesse no presente estudo, o afretador (charterer) remunera o armador ou fretador (owner), mediante o pagamento do frete (hire), em contrapartida da disponibilização imediata da embarcação, que deverá estar em perfeitas condições de navegabilidade.

O afretamento por tempo

Ao definir o afretamento por tempo, a Lei n. 9.432, de 1997, mais confunde que esclarece, porquanto emprega inadequadamente o verbo "receber", permitindo concluir que o afretador efetivamente toma posse do navio, quando, na verdade, tem, apenas, a disponibilidade imediata da embarcação cuja exploração constitui o obje-to do afretamento.2

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Os elementos essenciais deste negócio jurídico são: a disponibilização, pelo fretador, de um determinado navio armado e tripulado, para ser explorado comercialmente pelo afretador durante a vigência do contrato e nos limites da avença.3

Nesta modalidade contratual, o afretador detém a chamada gestão comercial do navio,4 que lhe confere o direito de dire-cionar a embarcação, mediante ordens dirigidas ao fretador quanto às cargas a serem transportadas e às viagens a serem realizadas.

O afretador, geralmente, assume as despesas com combustível e deve indeni-zar e reembolsar o armador por eventuais prejuízos próprios e danos causados a terceiros decorrentes de suas ordens.

Compete ao fretador as gestões náutica e técnica e a manutenção do navio,5 que permanece sob sua posse durante todo o período contratualmente previsto, e a ele se subordina e vincula a tripulação.6

Normalmente, o fretador delimita a área geográfica de utilização do navio, mas está subordinado às diretrizes do afretador, contanto que a embarcação opere entre portos seguros (safeports), sejam observados os limites previstos nas cláusulas de limitação do seguro da nau e não tenha sua utilização propósitos ilícitos.

O instrumento dos contratos de afre-tamento é a carta-partida (charter party), cujos termos gerais, no âmbito do comércio internacional, são padronizados por organizações que congregam diversos seto-res da navegação, figurando entre as mais conhecidas, relativamente aos contratos de afretamento por tempo, a BIMCO (Baltic and International Maritime Council), que publica as standardforms BALTIME 1939 (revisadas em 2001) e a ASBA (Associa-tion ofShip Brokers andAgents), que edita as normas-padrão NYPE 93.

Em casos de omissões da carta-partida, os usos comerciais suprem-nas,7 além de nortearem a interpretação das cláusulas do afretamento, a teor do art. 113, do Código Civil.

A cláusula de reentrega ("redelivery clause")

Nos contratos de afretamento por tempo (time charter party), as partes especificam na cláusula de reentrega (redelivery clause) da carta-partida o termo final do afretamento, que norteará a data da "devolução" ou "reentrega" da embarcação ao fretador.

O afretador se obriga a reentregar o navio nas mesmas condições em que foi recebido, ressalvando-se o desgaste natural da nave durante o período do afretamento.

Em razão de variáveis que podem atrasar ou adiantar as viagens, como condições climáticas, problemas técnicos, exigências portuárias locais, as longas distâncias percorridas pelos navios afretados e a volatilidade do preço do frete no mercado de transporte marítimo, não seria razoável interpretar-se literal e rigidamente a cláusula definidora da data de reentrega da embarcação.

Por tal motivo, a cláusula de reentrega geralmente contempla a possibilidade de adiantamento (underlap) ou retardamento (overlap) na devolução do navio, permitindo, inclusive, neste último caso, que a embarcação complete a última viagem (last voyage), desde que legítima,8 qual seja, aquela que normalmente seria

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concluída a tempo, mas que veio imprevisivelmente a exceder o termo final da reen-trega, devendo o afretador, consoante os usos comerciais do mercado de transporte marítimo, remunerar o armador pelo atraso, com base no valor de mercado do frete na época da devolução, se maior que o estabelecido no contrato, ou pelo valor contratual do frete se o de mercado lhe for inferior ou idêntico.

A devolução antecipada do navio geralmente é pretendida pelo afretador quando o preço de mercado do frete sofre depreciação considerável no curso do contrato, tornando o acordo extremamente oneroso, a ponto de comprometer sua margem de lucro.

Em regra, nas cláusulas de reentrega é concedida ao afretador uma tolerância no tocante à data para a devolução tardia do navio, o que se faz pela utilização do advérbio about,9 ou seja, "aproximadamente", ou expressões equivalentes, antes da designação do prazo do afretamento. Os modelos de cláusulas de reentrega sugeridos nas cartas-partida uniformes BALTIME10 e NYPE11 prevêem tal tolerância.

De todo modo, mesmo se não houver na cláusula de reentrega previsão de flexi-bilização da data de devolução do navio, os tribunais ingleses há muito12 firmaram o entendimento de que há uma tolerância implícita no contrato, decorrente das exigências dos negócios marítimos,13 de sorte que o termo contratual não é exato, senão aproximado - exceto, obviamente, se constitui condição mesma do negócio jurídico -, aceitando-se o atraso, desde que justificável e razoável, sem prejuízo do pagamento do frete complementar, a ser fixado consoante os critérios acima referidos.

O "overlap" e a violação da cláusula de "redelivery"

Tendo em vista o reconhecimento desta tolerância implícita no contrato, pode-se sustentar que a reentrega extemporânea, mas circunscrita nos limites da razoa-bilidade, não implicaria violação do contrato, porquanto a devolução intempestiva, porém justificável, estaria implicitamente prevista no próprio acordo.14 A este respeito, a jurisprudência inglesa não tem sido uniforme, ora perfilhando a inocorrência da violação contratual, se a impontualida-de decorre da conclusão de uma last voya-ge legítima,15 ora reconhecendo a quebra contratual pelo simples fato da demora na devolução do navio,16 posicionamento que tem prevalecido desde o caso The Peonia (1991).17

Em favor da primeira posição, pode--se afirmar que se o atraso razoável - como o que ocorre quando uma last voyage legítima se prolonga imprevisivelmente, sem culpa de qualquer das partes - realmente ensejasse descumprimento do contrato, o armador poderia recusar-se a completar a viagem, pois um dos efeitos do descumprimento do contrato é o de liberar a parte inocente do cumprimento das demais obrigações convencionais;18 sucede que não parece ser possível tal oposição se a última viagem já se houver efetivamente iniciado.19

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Também se poderia argumentar que a responsabilidade imposta ao afretador que posterga a reentrega, consistente no pagamento da diferença entre o preço contratual do frete e o de mercado, não decorreria propriamente da violação do contrato -que ensejaria damages, ou seja, indeniza-ção por perda, dano ou prejuízo20 -, mas dos usos comerciais e costumes do mercado de transporte naval, como legítima fonte de obrigação praeter legem, apta a integrar termos implícitos no instrumento, porque um contrato pode incorporar qualquer costume relevante do mercado, do comércio ou da localidade, a menos que inconsistente com as próprias cláusulas contratuais.21 Acresce que os damages não têm caráter punitivo,22 servindo apenas a recompor as perdas sofridas pela parte inocente, a patentear sua natureza...

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