Aspectos atuais do contrato de cambio

AutorMarcelo M. Bertoldi
Páginas88-103

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I - Introduçáo

Varios dos autores que se dedicaram ao estudo dos aspectos jurídicos do contrato de cambio procuram, antes de qualquer outro tipo de análise, realgar a dificuldade encontrada pelo operador do Direito em decifrar a complexidade do mercado cambial, que contém seus próprios termos técnicos e é regulado por urna teia de dispositivos legáis de difícil compreensáo,1 já que em sua maioria promanam da administra-gáo, redigida por pessoas expedentes em materia cambial, mas de escassa formaqáo jurídica.2

Este estado de coisas é representado com bastante nitidez por Fábio Konder Comparato,3 ao observar que "na omissáo do legislador em estabelecer regras equá-nimes sobre a materia, a jurisprudencia se perde, literalmente, ñas especiosidades terminológicas e no tecnicismo abstruso das instrugóes normativas ou instrumentos con-tratuais, para julgar de acordó com a aparente ortodoxia das autoridades monetarias ou a presumida competencia dos operadores de banco. Prevalece, no conjunto, o temor reverencial do leigo perante o saber esotérico dos iniciados nessa grande reli-giáo do século: o poder tecnológico".

Inobstante esta aparente dificuldade, cabe ao estudioso do Direito subtrair da

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técnica negocial e prática cotidiana os fundamentos básicos do contrato de cambio, de forma a enquadrá-lo no sistema jurídico já existente, especialmente com respeito á teoría geral dos contratos, pois "qualquer que seja o valor próprio e incontestável das técnicas, elas nao deixam nunca de se sub-meter, ñas relaçoes negociáis, ao imperio dos principios gerais do Direito, á tríade fundamental do honeste vivere, alterum non laedere et suum cuique tribuere. Nao há técnica que se nao possa reduzir, em sua utilizado económica, as regras universais do Direito, expressas ñas normas positivas da ordenagáo jurídica nacional".4

Diante deste quadro, o estudo que ora apresentamos nao tem a pretensáo de esgo-tar o assunto, mas táo-somente extrair al-guns principios básicos a respeito do contrato em estudo, de forma a auxiliar na so-lucio dos problemas e empasses encontrados pelas instituicpes financeiras autorizadas a operar no mercado cambial, seus clientes e o próprio Banco Central.

II - Especies de contrato de cambio

Como sabemos o cambio significa a compra de urna determinada moeda estrangeira por outra, esta de curso forjado e poder liberatorio. O contrato de cambio pode se apresentar de diversas formas, depen-dendo do fato gerador, permitido por lei, que torna a conversáo de moedas necessá-ria, desde aquela pessoa que pretende viajar ao exterior e necessita de moeda corren-te do país de destino, até o importador que necessita saldar seu compromisso financei-ro no exterior, todos estao obrigados a recorrer ao contrato de cambio.

Por imposigao legal, o exportador nao pode receber moeda estrangeira em pagamento da venda efetuada no exterior, ne-cessitando converté-la em moeda nacional. No Brasil, as operagóes de compra e ven-da de moeda estrangeira obrigatoriamente devem ser intermediadas por instituigóes financeiras autorizadas pelo Banco Central,5 que se encarregará de receber, no exterior, a moeda utilizada para o pagamento pelo importador estrangeiro e repassar este valor, convertido em moeda nacional para o exportador. Nesta operagáo a empresa exportadora vende as divisas (moeda estrangeira) a um banco autorizado a operar em cambio. A exportadora é a vendedora de moeda estrangeira e o banco o correspondente comprador. O exportador, em contrapartida, recebe o valor equivalente em moeda nacional, calculado pelo prego da moeda estrangeira ou taxa de cambio6 acertada no contrato

Verificamos que na operagao exem-plificada ácima, existem dois contratos, um de compra e venda internacional, ou seja, um nacional que exporta mercadorias para

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outro país, e um outro contrato que tem como fungáo económica o recebimento do valor a ser pago pela operagáo de compra e venda, so que convertido em moeda cor-rente.

Se a operagáo fosse de importagáo e nao de exportagáo, o raciocinio seria exa-tamente o mesmo, ou seja, o importador-nacional necessita firmar contrato de cambio com instituigáo financeira autorizada para poder efetuar o pagamento de seu compromisso com o exportador-estrangei-ro. Deverá entregar dinheiro nacional ao banco autorizado, que por sua vez irá pagar o compromisso correspondente, so que em moeda estrangeira.

De um modo geral o contrato de cambio pode ser classificado em duas especies, o cambio miúdo ou manual, que caracteri-za-se pelo fato de as partes negociarem á vista as moedas presentes, utilizado normalmente por turistas que se deslocam para o exterior,7 representando pouca importancia económica, na medida em que seu vo-lume é bastante reduzido se comparado com a outra especie que é o cambio trajectício, onde a moeda estrangeira, objeto da transagáo, nao é entregue diretamente ao comprador, mas sim transferida para outro país em seu beneficio através de ordem de pagamento ou mediante a apresentagao de um título tal como urna letra de cambio, um cheque etc. Nessa especie de cambio, ligado as operagoes de importado e exportado, a distancia entre os contratantes e a "distingáo temporal entre o fechamento e a liquidagáo da operagáo"8 é o que o caracteriza, já que o contrato de cambio é fechado no dia em que a ordem é dada, mas a realizado material permanece em suspenso, já que a entrega das divisas e seu pagamento sao reportados a urna data ulterior.

Com relagáo ao contrato de cambio trajectício, podemos dividi-lo, ainda, em outras duas subespécies, qual seja, o sacado e o escritura!. Aquele se dá quando a liquidagáo é feita com base na entrega, pelo exportador, dos documentos relativos a exportagáo e que assegurem o direito ao recebimento da moeda estrangeira pelo banco negociador do cambio, dando ense-jo a urna operagáo subjacente de mutuo, ou seja, "o instituto tem lugar entre um banco autorizado a operar em cambio e um exportador, que ainda nao recebeu o prego da exportagáo realizada ou a realizar. As partes celebram um contrato de cambio para liquidagao futura, em que nenhuma moeda é prestada naquele momento, mas ambas sao prometidas para data posterior."9

A outra especie de contrato de cambio trajectício, o escritural, ocorre quando a liquidagao se dá com o efetivo recebimento da moeda estrangeira, mediante crédito em conta mantida no exterior por banco autorizado a operar em cambio.

O contrato de cambio trajectício tam-bém pode ser dividido em contrato de cambio de exportagáo ou contrato de cambio de importagáo, dependendo da especie de relagáo jurídico-económica geradora da necessidade da compra e venda da moeda

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estrangeira, se importagáo ou exportado de mercadorias.

Distingue-se ainda o cambio em fi-nanceiro e comercial.10 É financeiro aque-le contrato de cambio que tem como fun-gáo a remessa para o exterior de divisas cuja fungáo é a manutengo de estudantes ou de bolsistas; de donativos; de amortizares ou pagamentos de empréstimos, juros e dividendos, royalties etc. Enfim, sao ope-ragoes de cambio que nao se referem dire-tamente a exportagao e importagáo e se concretizam através de débitos e créditos em conta corrente; cartas de crédito; cheques bancários; ordens de pagamento etc. Em contrapartida, é comercial o cambio relacionado com o comercio exterior, envol-vendo exportares e importagoes de mercadorias e servigos correlatos de fretes e seguros.

III - O regime cambial brasileiro

As restrigóes ao cambio sempre exis-tiram, com maior ou menor intensidade de-pendendo do momento económico. No en-tanto, após a I Grande Guerra, com a de-vastagáo da economía de divisas dos Estados, generalizou-se o controle cambial como medida de preservar as economías internas e as moedas de cada país. Após isso, "o desequilibrio económico, instaurado pela crise de 1929, e ampliado por ocasiáo da II Guerra Mundial, fez do controle de cambios urna necessidade inelutável para a maioria dos países. Impunha-se o controle das exportagóes e das importagóes, para enfrentar a desorganizagáo das reservas cambiáis, que lavrava em todos os países".11

No Brasil, a exemplo da maioria dos países civilizados, o mercado de cambio nao é de livre acesso, estando sujeito ao controle governamental, significando que o Poder Público, através do Banco Central que atua como órgáo fiscalizador do sistema, controla a entrada e saída de divisas, administrando as reservas cambiáis.121314

Este controle surge por disposigáo constitucional. É de competencia da Uniáo a administragáo das reservas cambiáis do país e a fiscalizagáo das operagóes de na-tureza financeira, notadamente as de crédi-

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to, cambio e capitalizagáo. Compete privativamente a Uniáo legislar sobre política de crédito, cambio, seguros e transferencia de valores, e ao Congresso Nacional cabe dis-por sobre materia financeira, cambial e monetaria, instituigoes financeiras e suas operagóes.15

Históricamente o regime cambial bra-sileiro sempre foi marcado pelos mais variados obstáculos a movimentagao da moeda estrangeira, sendo a evasáo de divisas considerada como atividade criminosa e contraria aos interesses nacionais. Até pou-co tempo atrás havia um mercado oficial inteiramente regulado pelo Banco Central e ontro paralelo que encobria as transagóes ilegais ou mesmo operagóes lícitas, mas que nao encontravam no mercado oficial condigoes de operagao. Nos últimos anos, no entanto, a conjuntura económica se al-terou sensivelmente, de forma a tornar viá-vel um...

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