As transformações do direito dos mercados financeiros

AutorAndré-Jean Arnaud
Páginas32-52

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O estudo que se irá realizar tem como tema os mercados financeiros. Podemos colocar como hipótese que estamos perante um campo exemplar que nos permite uma avaliação do lugar contemporâneo de um ator (o Estado) e de um instrumento (o direito), um e outro considerados pela tradição jurídica e política como fundamentais na implementação dos modos de regulação social.2 Tratar-se-ia mesmo de um exemplo extremo, caso acreditemos nos especialistas do direito dos mercados financeiros, que proferem que este último é caracteri-zado "pela originalidade e independência do seu sistema institucional".3

Sem negligenciar as precauções oratórias indispensáveis neste domínio,4 sem ir, para além disso, até à retenção do caráter por vezes ténue - se formos acreditar na doutrina - da distinção entre mercados financeiros de caso a caso, mercados financeiros organizados e mercados financeiros regulamentados,5 estes têm as suas regras

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estabelecidas pelo direito financeiro.6 Este último decorre, do ponto de vista disciplinar, dos ensinamentos do direito económico, expressão que tende a substituir aquela, institucionalizada nos programas de estudos de direito na França, de "direito dos negócios". Mas é a este último que se referem os estudantes quando desejam melhorar o seu cursus studiorum - e os candidatos a um emprego, o seu curriculum vitae - com a obtenção de um diploma de estudos avançados de qualidade e reconhecido como tal no mercado de trabalho. O ensino, ao mesmo tempo teórico e prático, terá incidido sobre o que existe de mais atual nas relações económicas, direito tributário dos negócios, direito do financiamento e do crédito, direito das sociedades e dos grupos, direito europeu e internacional dos negócios... No que respeita à globalização da regulação económica e dos negócios, por um lado, e aos mercados financeiros, por outro lado, os programas incluem, no entanto, ainda raramente - é um eufemismo - ensinamentos que, no entanto, encontramos generalizados noutros lugares desde há mais de uma dezena de anos, como é o caso, p. ex., dos Estados Unidos.

Porém - e ser-nos-á perdoado este truísmo suplementar - as relações económicas colocam um desafio permanente ao direito. E, entre elas, em primeiro lugar, as relações financeiras - mesmo quando a questão se complica infinitamente pelo fato da "dissociação entre o reino dos sinais monetários e a realidade económica da qual é suposto ele dar conta, nunca tenha sido tão grande na história contemporânea".7 Para os juristas o desafio situa-se realmente aqui: através do incentivo do ganho que elas tem por finalidade cobrir, as relações financeiras são objeto de um dinamismo gritante, enquanto que o direito, constituindo num sentido estrito o conjunto de normas de regulação sociais sancionadas pelo Estado, se encontra dividido entre a preocupação de estabilidade que constitui a sua essência e a necessidade em que ele se encontra de não ficar insensível às transformações externas. As alterações que têm lugar na ordem financeira não podem deixar de desencadear transformações no direito, sob pena de ver-se este último violado sistematicamente, ou contornado por agentes submetidos às irresistíveis pressões dos fatos.

É mais ou menos este o dilema perante o qual estão colocados, hoje, os Estados face ao processo de globalização8 das trocas, processo que toca, e de muito perto, as relações económicas e, no que nos diz respeito mais particularmente aqui, os mercados financeiros.9 As questões que se põem, a este respeito, são, essencialmente, as seguintes: - será que os direitos estatais são ainda de uma eficiência real na regulação dos mercados financeiros? Ou seja, será que os juristas dispõem de um direito financeiro apto a assegurar a regulamentação dos mercados financeiros num contexto globalizado? Ou, pelo contrário, será que podemos observar formas de regulação dos mercados financeiros, alternativas ou paralelas àquelas dos direitos estatais? E se sim, quais?

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- que consequências podemos entrever quando de uma eventual alteração de paradigma na regulação contemporânea da sociedade partindo dos exemplos fornecidos pelos mercados financeiros? Ou seja, a regulação dos mercados financeiros resulta ainda de um modo tradicional de conceber o lugar e a importância do Estado e do seu direito neste tipo de trocas sociais e será que esta observação é extensível ao conjunto da regulação do Estado pelo direito?

Ao realizarmos este estudo - que deve ser considerado necessariamente limitado pelas imposições do seu próprio género - nós não temos nenhuma outra pretensão a não ser a de reunir os dados adequados de modo a permitir arriscar algumas reflexões sobre a profundidade das transformações jurídicas ligadas ao fenómeno da globalização e contribuir para descobrir o seu sentido. Tentaremos assim responder às questões acima mencionadas em dois tempos. Iremos nos interrogar, primeiramente, sobre a qualidade dos atores e a especificidade dos instrumentos de regulação dos quais estes dispõem, no quadro de uma soberania estatal, da qual se ouve dizer, frequentemente, estar desfavorecida pela globalização. Apoiando-nos sobre os traços paradigmáticos das inovações introduzidas na regulação dos mercados financeiros, iremos, em seguida, refletir sobre o significado que estas alterações revestem para o conjunto da regulação operada até aqui pelo direito estatal.

1. Sobre a renovação dos atores presentes

Apesar de por vezes se pretender que a "mundialização" é um fenómeno com três mil anos10 de idade, a globalização é um fenómeno recente.11 Citamos Jean Bodin, que relatava: "Tudo é mais caro na Espanha do que na Itália, e na Itália mais do que em França, e mesmo os serviços e a mão-de-obra, porque o que atrai os nossos habitantes da Auvergne e do Limousin na Espanha é o fato de eles ganharem o triplo daquilo que ganham na França (...) É portanto a abundância de ouro e de prata que causa em parte o encarecimento das coisas", e aqui deparamo-nos com os traços daquilo que poderá ter já sido uma globalização das trocas. Recuamos mesmo até ao primeiro milenário a.C, para pretender que os fenícios já teriam esboçado a primeira mundialização ao instalar imensos entrepostos comerciais e ao difundirem o alfabeto para a escrita de todas as línguas - ou seja redigir todos os contratos.12

Em resumo, o processo contemporâneo não se distinguida senão pela rapidez com a qual se processa hoje em dia a globalização financeira.13 No espaço de uma quinzena de anos, a maior parte dos países industrializados, de fato, atenuou progressivamente ou suprimiu os controles do câmbio. Hoje em dia os capitais podem, em princípio, circular livremente e, cada país pode recorrer à poupança mundial para responder às suas necessidades de financiamento. No que respeita os investidores, detentores de capitais, estes podem escolher livremente entre uma utilização nacional ou internacional dos seus fundos, em função dos ganhos esperados e da antecipação dos riscos que correm.

No entanto podemos perguntar-nos, se a especificidade do processo de globalização, tão característico da nossa época, não consistiria muito mais num certo esmore-cimento dos atores e dos instrumentos tradicionais relativamente à regulação,14 ou

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até na sua substituição por outros atores e outros instrumentos. Ora uma substituição deste tipo observa-se efetivamente através de um certo número de mutações, das quais se destaca a contestação da efetividade de um direito puramente estatal dos mercados financeiros e a emergência15 do critério de eficiência na aparição de novos atores.

1. 1 A interrogação sobre o ator estatal

Seria trivial constatar que o direito das grandes praças financeiras tende a uniformizar-se; o processo encontra-se largamente ligado à entrada dos mercados financeiros na era virtual. Pensar o direito em função destes novos dados torna-se mesmo o objeto de uma verdadeira concorrência entre praças financeiras. Tratando-se de re-fletir sobre as dificuldades colocadas por este fenómeno, a França não perdeu tempo, tal como podemos constatar pela leitura, p. ex., do Relatório do Conselho Nacional do Crédito e dos Títulos sobre os problemas jurídicos, ligados à desmaterialização dos meios de pagamento e dos títulos.16 Desde 1982 que a França foi um dos primeiros países a desmaterializar os seus valores mobiliários.

No conjunto destes critérios da globalização financeira, no entanto, a desmaterialização não contribui senão com uma parte. Aquilo a que chamamos "integração financeira" caracteriza-se pela aparição de um mercado único dos capitais funcionando à escala planetária, consequência não somente da supressão dos controles das trocas, mas também da circulação instantânea das informações.17 Daí resulta esta aceleração da mobilidade, à qual já fizemos referência no início, não somente dos capitais em termos geográficos, mas também dos instrumentos financeiros entre eles, pois eles se tornam substituíveis uns aos outros. Uma tal mutação não se poderia realizar senão num contexto radicalmente novo. Para além da "desmaterialização" dos instrumentos financeiros18 aparecem como critérios19 da "globalização" financeira a "desregulamentação", a "desintermediação"20 e a "descomparti-mentacão" dos mercados que...

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