As garantias entre os particulares - A esfera da autonomia privada

AutorCristina Freitas
CargoAssessora jurídica da apDC
Páginas105-126

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EXCERTOS

"A conformidade do bem aferir-se-á pela sua funcionalidade para o fim a que se destina, com a qual o adquirente razoavelmente conta"

"Para que o comprador, adquirente de um bem defeituoso, na acepção atrás expressa, possa ver o seu direito à qualidade do bem reposto, está, também ele, sujeito a determinadas obrigações, estabelecendo o legislador prazos para o exercício dos direitos que deverá cumprir, uma vez que, ultrapassados, conduzirão à caducidade da ação"

"É estabelecido o prazo de seis meses para o comprador intentar a ação de anulação por simples erro, sancionando a lei com a caducidade o não exercício tempestivo do direito de ação, ou seja, o comprador terá de denunciar o defeito no prazo estabelecido por lei e após a denúncia terá seis meses para recorrer à via judicial"

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1. Introdução

Antes de entrarmos no tema sobre o qual pretendemos aqui discorrer, que visa o estrito domínio das relações entre os particulares (na sua esfera puramente pessoal), não podemos deixar de referir uma questão que é aflorada, já, nas relações jurídicoprivadas de consumo, tal como as concebemos (isto é, envolvendo como sujeitos contratuais, por um lado, o profissional e, por outro lado, o consumidor) e que de certa forma constitui o elo de ligação para a temática das garantias entre os particulares.

Falamos, especificamente, da norma contida no n. 6 do artigo 4º da lei das garantias - decreto-lei 67/2003, de 8 de abril, alterado e republicado pelo decreto-lei 84/2008, de 21 de maio. Muito embora o diploma regule aspectos da compra e venda de bens de consumo e das garantias a ela conexas, sendo, como tal, aplicável às relações jurídico-privadas de consumo, tal como as conhecemos, estabelece, o mencionado preceito, o que segue:

6 - os direitos atribuídos pelo presente artigo transmitem-se a terceiro adquirente do bem.

É dizer, pressupõe, a disposição transcrita, uma venda subsequente; à primitiva compra e venda, ao negócio jurídico celebrado entre o vendedor (profissional) e o consumidor, sucede-se um outro negócio, realizado entre o consumidor e um terceiro, também ele, particular. Ora, o artigo 4º, na sua redação originária, estruturava-se em cinco números e, consagrando os direitos do consumidor, em caso de falta de conformidade do bem com o conteúdo do contrato (de acordo com as presunções de falta de conformidade elencadas no artigo 2º do diploma), estabelecia o que segue:

1 - em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.

2 - A reparação ou substituição devem ser realizadas dentro de um prazo razoável, e sem grave inconveniente para o consumidor,

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tendo em conta a natureza do bem e o fim a que o consumidor o destina.

3 - A expressão ‘sem encargos’, utilizada no n. 1, reporta-se às despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o contrato, incluindo, designadamente, as despesas de transporte, de mão de obra e material.

4 - os direitos de resolução do contrato e de redução do preço podem ser exercidos mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador.

5 - o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.

Consagrava, pois, os remédios legais ao dispor do consumidor, caso adquirisse um bem defeituoso (na acepção anteriormente vista): reparação, redução do preço, substituição do bem ou a resolução do contrato, desde que, logicamente, o bem se encontrasse dentro do período de garantia legal (dois ou cinco anos consoante se tratasse de bem móvel ou imóvel) e desde que o consumidor denunciasse tempestivamente o defeito ao profissional, ao agente económico (dois meses, no caso de bens móveis, e um ano, no caso de imóveis).

Isto, reiteramos, no caso de uma típica compra e venda de consumo. Viria a experiência a demonstrar que um problema ficava em aberto: o caso do consumidor decidir vender ou, simplesmente, doar o bem adquirido a um terceiro, estando ainda o respectivo objeto dentro do prazo de garantia legal. Havia vozes que se pronunciavam sobre a extensão da garantia ao terceiro adquirente e vozes discordantes.

Pois bem, a dúvida quanto à extensão da garantia a um terceiro adquirente do bem (reiteramos, dentro do prazo de garantia legal do mesmo) dissipou-se com a introdução do já referido número 6º do artigo, pela mão do decreto-lei 84/2008, de 21 de maio, diploma que alterou e republicou a vulgarmente designada lei das garantias. FICARIA assim claro que os direitos referenciados transmitem-se ao terceiro adquirente do bem, ainda que não haja qualquer relação entre o vendedor e o terceiro adquirente do bem. O vendedor responde pela conformidade do bem com o conteúdo contratual durante o prazo de

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garantia legal, quer para o consumidor com quem celebrou o contrato, quer para com um terceiro adquirente do bem.

Nesta situação particular, podemos dizer que existe um avanço, ou contorno, em relação à natureza de direitos relativos dos contratos, é dizer, aqueles direitos que só produzem efeitos entre as partes, só podendo ser exercidos perante o sujeito passivo (que tem o correspondente dever).

Introduzida, pois, esta questão, urge centrarmo-nos no domínio das relações entre os particulares, nas garantias entre os sujeitos que atuam no domínio da sua esfera puramente privada.

2. As garantias entre particulares

A. O regime jurídico na compra e venda

"NUM contrato de compra e venda de imóvel, em que a compradora vem invocar a existência de defeitos na coisa vendida, não se pode aplicar o regime do DL 67/2003 de 8/4, se não foi alegado e provado que o vendedor construiu a casa no âmbito de uma atividade profissional, sendo aplicável o regime do CC", ACÓRDÃO do tribunal da relação de lisboa de 25 de FEVEREIRO de 2016.

O excerto retirado do aresto proferido pelo tribunal da relação de lisboa, em fevereiro passado, constitui a pedra de toque para a análise do estudo que pretendemos levar a cabo sobre o tema das garantias entre particulares.

Com efeito, as relações jurídicas advindas da celebração de um contrato de compra e venda podem classificar-se, atendendo aos sujeitos contratuais em:

  1. relações de consumo: aquela estabelecida entre um profissional, que atua no âmbito da sua atividade (vendedor), e o sujeito que adquire o bem de consumo para uso privado (consumidor);

  2. relações interempresariais: aquelas estabelecidas entre profissionais, agentes económicos, no exercício das respectivas atividades; e

  3. relações entre particulares: relações jurídicas advindas dum contrato de compra e venda celebrado entre dois sujeitos (vendedor e comprador), atuando ambos na sua esfera particular.

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    Pois bem, é deste terceiro domínio - compra e venda entre particulares e respectivas garantias - que nos ocuparemos.

    A compra e venda entre particulares, como é sabido, vem regulada no código civil, nossa lei privada comum e geral, aplicável a todas as relações jurídico-privadas, em todos os aspectos que não estiverem previstos especificamente em diploma autónomo, nos artigos 874º e seguintes. Como qualquer outro negócio jurídico bilateral é, portanto, fonte de obrigações para os respectivos sujeitos contratuais e, sinalagmaticamente, gerador de direitos.

    B. Noção de vícios da coisa - conceito funcional

    Estando nós perante o domínio da autonomia da vontade, logo podendo as partes estabelecer o conteúdo contratual, em tudo aquilo que não seja contra legem, contra a ordem pública ou ofensivo dos bons costumes (limites à autonomia da vontade privada - veja-se a este propósito o artigo 280º do código civil, que sanciona com a nulidade os negócios assim celebrados) -, vejamos, pois, o que prescreve o código civil nesta matéria. No que ora nos interessa, estabelece o artigo 913º da lei o que segue:

    1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na seção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.

    2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.

      Da leitura do artigo transcrito, conclui-se que o legislador adotou um conceito funcional de vício da coisa, isto é, toma como critério a idoneidade do bem para o fim a que se destina, a aptidão que o adquirente dela espera. A conformidade do bem aferir-se-á pela sua funcionalidade para o fim a que se destina, com a qual o adquirente razoavelmente conta.

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      Como se pode ler no n. 2 do sumário do ACÓRDÃO do SUPREMO tribunal de JUSTIÇA, de 13 de maio de 2014, sendo relatora a juíza conselheira maria clara SOTTOMAIOR:

      ii - o legislador adoptou, no art. 913º do código civil, uma definição funcional de vício da coisa, privilegiando a idoneidade do bem para a função a que se destina, a aptidão da coisa ou a utilidade que o adquirente dela espera.

      Pode ainda ler-se, no aresto de que se trata, no ponto 2.1.1 "regime JURÍDICO aplicável" o que segue:

      No comentário ao código civil, referem os PROFESSORES PIRES de lima e ANTUNES varela: "(...) o artigo 913º cria um regime especial (...) para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas: a) vício que desvalorize a coisa; b) vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; c) FALTA das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) FALTA das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina (17)".1

      Na esteira dos ensinamentos dos professores PIRES de lima e ANTUNES varela, acrescenta-se, ainda, no...

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