As garantias constitucionais do processo no Brasil

AutorRogério Gesta Leal - Aline Swarovsky
CargoPossui graduação em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (1987) - Mestranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)
Páginas242-277

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1. Introdução

A dogmática mais tradicional da processualística brasileira tem insistido na tese de que todo e qualquer litígio jurisdicional tem de ser gestado a partir dos princípios e regras constitucionais e infraconstitucio-nais que informam nosso sistema jurídico, notadamente os que dizem respeito ao devido processo legal, ora constituído por diretrizes nodais do sistema normativo, a saber: (a) Princípio da isonomia (artigo 5o, ca-put, Constituição Federal); (b) Princípio da proteção judiciária, denominado de princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional; (c) Princípio do acesso facilitado ao Judiciário (direito à assistência jurídica gratuita e direito à gratuidade processual); (d) Princípio do contraditório e da ampla defesa; (e) Princípio do juiz e do promotor natural; (f) Princípio da proibição de prova ilícita; (g) Princípio da publicidade dos atos e decisões; (h) Princípio da fundamentação ou motivação dos atos e decisões (NERY JUNIOR, 2001, p. 39).

É esta mesma dogmática que adverte para o fato de que, se o Estado tem o dever de prestar a devida tutela jurisdicional, entendida esta como a tutela apta a tornar efetivo o direito material, todo e qualquer sujeito de direito precisa ter assegurada a adequada tutela jurisdicional, garantia que se desdobra ainda em outros tantos princípios de igual natureza e importância. Direito à adequada tutela jurisdicional quer dizer, com Marinoni, direito a um processo efetivo, próprio às peculiaridades de pre-tens o de direito material de que se diz titular

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aquele que busca a tutela jurisdicional (MARINONI, 2001, p. 244).

Nosso objetivo neste trabalho, pois, diz respeito ao tema das garantias constitucionais do processo a partir de uma perspectiva integral do sistema jurídico brasileiro e de sua função social e emancipado-ra, compromissada com os valores perseguidos pela Carta Política e pela República Federativa. Para tanto, optamos por delimitar o campo de abrangência da abordagem em face do que a doutrina e casuística tradicionais têm referido como garantias constitucionais do processo, dando especial atenção aos princípios informativos do sistema normativo, dentre as quais destacamos, a garantia do devido processo legal, da isono-mia, do contraditório e ampla defesa, do juiz natural, da inafastabilidade da jurisdição, da publicidade dos atos processuais, da motivação das decisões, do duplo grau de jurisdição e da proibição da prova ilícita.

2. A dimensão principiológica das garantias processuais na ordem constitucional contemporânea

Na dicção acertada de José Delgado, a luta pelo direito não é hoje uma reivindicação individual, mas uma exigência a ser alcançada pelas massas, a fim de se plantar uma efetiva estabilidade nas relações jurídicas quando desarticuladas pelo conflito. Disto resulta que o processo civil deixou de ser assunto particular entre as partes para se transformar em uma das tarefas mais eminentes do Estado, obrigando o Juiz a dirigir ativamente o processo, tendo em vista alcançar os princípios impostos pelo direito público e que se dirigem a garantir proteção jurídica (DELGADO, 1987, p.223)1.

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Importa referir, de pronto, que o debate nacional envolvendo o tema dos princípios jurídicos (constitucionais e infraconstitucionais) viu-se ampliado a partir da Constituição de 1988, proliferando estudos voltados ao aprofundamento da abordagem dos seus significados semânticos e pragmáticos. Na dicção de Eros Grau, por exemplo, um sistema ou ordenamento jurídico não será jamais integrado exclusivamente por regras, pois nele se encontram, também, princípios jurídicos ou princípios de Direito. Assim, no Direito, enquanto ordem jurídica, os princípios jurídicos podem ser tomados, basicamente, em dois sentidos: no primeiro, como princípios positivos do direito, e, no segundo, como princípios gerais do Direito (GRAU, 2003, p. 82)2.

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Os princípios gerais do Direito são posições descritivas, e não normativas, através das quais os juristas referem de maneira sintética o conteúdo e as grandes tendências do direito positivo (BONAVIDES, 2003, p. 118)3.

É novamente a doutrina brasileira fundadora do pensamento jurídico nacional - ao menos nos seus primeiros passos -, que vai ratificar este conceito, asseverando que, no direito privado, os princípios gerais do direito derivam, preferentemente, da lei escrita e não lhe constituem senão o prolongamento, culminando por apontá-los como prestações normativas, integrantes da lei ou do seu espírito e que ajudam a expressão lógica do direito; ressalvando que, pela posição jusnaturalista, nos princípios gerais do direito verificar-se-ia uma concretização de verdades filosóficas perenes (LIMA, 1988, p. 35).

Os tribunais brasileiros têm utilizado esta premissa dos princípios gerais do direito para o enfrentamento de algumas situações que envolvem interesses processuais e materiais de partes que se encontram periclitantes em face de algumas circunstâncias formais estabelecidas pelo sistema jurídico. Neste sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que, "quando o autor não apresenta os documentos essenciais à compreensão da causa, mas o réu os apresenta, fica suprida a deficiência. A interpretação do artigo 485, inciso V, do CPC, deve ser ampla e abarca a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito (art. 4o da LICC)"4.

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Pode-se afirmar, de um certo modo, que no pensamento jurídico contemporâneo existem alguns pontos em comum no sentido de se reconhecer aos princípios jurídicos o status conceitual e positivo de norma de direito, de norma jurídica, o que significa dar-lhes positividade, vinculatividade, pois, normas que obrigam, têm eficácia positiva e negativa.

Já na dicção de Canotilho, vamos encontrar alguns critérios para que o operador do direito estabeleça a distinção entre os princípios e regras jurídicas, tendo em vista justamente a dimensão eficacial destes institutos, a saber: (a) o grau de abstração, pois considera que os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; ao contrário, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida; (b) o grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto, eis que os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras, enquanto as regras são suscetíveis de aplicação direta; (c) o carácter de fundamentalidade no sistema de fontes de direito, uma vez que os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico; (d) a proximidade da ideia de direito, pois os princípios são standars juridicamente vinculantes, radicados nas exigências de justiça ou na ideia de direito; de outro lado, as regras podem ser normas vincu-

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lantes com um conteúdo meramente formal; por fim, (e) a natureza nor-mogenética dos princípios os destaca no sistema, pois se apresentam como verdadeiros fundamentos de regras jurídicas (CANOTILHO, 2002, p. 118).

Em razão de tudo isto, tem-se sustentado a ideia da força normativa dos princípios jurídicos, notadamente dos princípios constitucionais. Equivale a dizer, em outras palavras, que: (a) todas as normas do sistema jurídico devem ser interpretadas no sentido mais concordante com os princípios constitucionais; (b) as normas de direito ordinárias desconformes à constituição e seus princípios fundacionais, bem como contra os princípios infraconstitucionais, não são válidas; (c) salvo quando não exequíveis por si mesmos, os princípios aplicam-se diretamente, sem lei intermediária5.

Em tal quadro de reflexão é que tomam relevo os princípios constitucionais processuais no país, eis que normas definitivamente válidas e autoaplicáveis em qualquer relação em que se discutem direitos e garantias protegidas pelo sistema jurídico vigente.

José Augusto Delgado, após identificar o fenômeno da complexidade das relações sociais, econômicas, políticas, familiares, educacionais e patrimoniais e dos desafios vividos pelo ordenamento jurídico para observá-las, preleciona que:

A identificação da complexidade assinalada revela, conseqüentemente, não ser possível o estudo das regras jurídicas processuais que garantem os direitos dos cidadãos, apenas à luz singela da norma positiva posta para execução, por exigir concepção muito mais alargada, que passa, necessariamente, por uma visualização dos princípios informativos do direito processual, por eles serem transmissores, de modo explícito ou implícito, das dificuldades já

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comprovadas de se tornarem eficazes as normas expressivas de tais prerrogativas (DELGADO, 1993, p. 63).

Vejamos de que forma têm sido tratados estes princípios na doutrina e casuística especializadas brasileiras.

3. A garantia do devido processo legal

Recepcionado pelo sistema jurídico norte-americano desde o início do século XIX, somente a partir de 1856 é que o seu Judiciário (Wynehamer v. People, New York, 18566) passou a entender que o devido processo não deveria se restringir ao modo do procedimento, mas também atingir o conteúdo substantivo da legislação, passando a cunhar a concepção em seu caráter substantivo, entendendo-o como ferramenta viável e indispensável à proteção das garantias individuais básicas em face da jurisdicionalização constitucional7.

Da experiência americana envolvendo este princípio...

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