As Formas de Aprendizagem no Brasil: Questões Emergentes

AutorMariane Josviak/Regina Bergamaschi Bley/Silvia Cristina Trauczynski
Páginas15-29

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Ver Nota1

1. Introdução

Oart. 227 da Constituição Federal sintetiza o conjunto de direitos das crianças e adolescentes, fazendo-o de forma veemente por várias razões. A primeira delas decorre de ter sido ele originado de Emenda Popular, subscrita por mais de um milhão e trezentos mil brasileiros, sendo apenas referendado pela Assembleia Constituinte, o que lhe empresta a mais flagrante legitimidade. A segunda é inerente à doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes, que se concentra na determinação de que o Estado, a família e a sociedade devem agir, segundo a norma constitucional, paritariamente, para que os direitos nela arrolados sejam estendidos às crianças e aos adolescentes com absoluta prioridade.

A legitimidade popular, a combinação de esforços entre a família, o Estado e a sociedade e a absoluta prioridade que se confere aos direitos em questão traçam, de forma indelével, a proeminência do direito à profissionalização com relação aos adolescentes de 14 a 18 anos, os quais podem ativar-se profissionalmente em condições restritas de trabalho. Em qualquer hipótese, não se admite trabalho noturno, insalubre, perigoso ou penoso, tampouco qualquer trabalho que atente contra o salutar desenvolvimento físico, mental e moral desses cidadãos; finalmente, os adolescentes de 14 a 16 anos somente podem trabalhar na condição de aprendizes.

O direito à profissionalização é aquele que merecerá a atenção nesse estudo. Materializa--se juridicamente no Brasil de diversas formas e, na verdade, não é um direito exclusivo dos adolescentes. Constitui-se em um direito de todo cidadão brasileiro, adulto ou adolescente. A formação profissional expressa-se em várias etapas ao longo da vida, podendo-se dar como exemplos: a) o Estágio Profissionalizante para jovens do ensino médio, escolas técnicas ou ensino superior, bem como para pessoas com deficiência matriculadas em escolas especiais; b) os cursos de reciclagem profissional e pós-graduação em nível de Especialização,

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Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado; c) o contrato de Trabalho Educativo realizado no interior de organizações não governamentais sem fins lucrativos em que a atividade educacional prepondera sobre a produtiva; d) o Contrato de Aprendizagem para jovens de 14 a 24 anos e pessoas com deficiência sem limite superior de idade.

2. Processo histórico de ruptura com a doutrina minorista em prol da proteção integral dos adolescentes aprendizes

Nos últimos dias do século XX, os ventos do terceiro milénio imprimiram novas palavras na Consolidação das Leis do Trabalho. A Lei n. 10.097, de 19 de dezembro de 2000, consolidando a matéria já regulamentada pela Constituição (art. 227), Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/96), alterou o capítulo celetista que trata da aprendizagem, harmonizando-o com o ordenamento jurídico outrora esparso e com as necessidades prementes da história.

A Constituição de 1988 revolucionou o tratamento dos brasileiros em idade infantil ou juvenil. Absorveu a doutrina internacional da proteção integral das crianças e adolescentes. O art. 227 da Carta de 1988 fixa como prioritária a ação conjunta do Estado e da sociedade, a fim de garantir cidadania às crianças e aos adolescentes.

A doutrina em análise os concebe como cidadãos plenos, sujeitos de direitos e obrigações a quem o Estado, a família e a sociedade devem atender prioritariamente. Criaram-se os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais, justamente para implementar a ação paritária entre o Estado e a sociedade na fixação das políticas de atendimento aos pequenos cidadãos.

Abandonou-se, portanto, a visão meramente assistencialista que orientava os Códigos de Menores de 1927 e de 1979. Esta legislação contemplava aspectos inerentes ao atendimento de crianças e adolescentes carentes ou infratores, estabelecendo política de assistência social ou de repressão em entidades correcionais. Mas o conceito de cidadania que se quer implementar é o de que esses brasileiros, em razão de sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, devem ser atendidos, prioritariamente, em suas necessidades também peculiares de cidadãos.

No que diz respeito ao trabalho, a doutrina da proteção integral trouxe os seguintes reflexos:

  1. Proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (art. 7a, inciso XXX, da Constituição Federal). Pela primeira vez, no ordenamento constitucional brasileiro, há a proibição da discriminação da idade nas relações de trabalho. Não são mais aceitos programas assistenciais que se moldem em condições diferenciadas de trabalho em razão da idade e da condição social, deixando, portanto, de ser recebido o chamado Programa do Bom Menino, que se corporificava no Decreto-lei n. 2318/86.

  2. O art. 227, § 32, incisos I a III, da CF estabelece "o direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto do art. 7°, XXXIII; II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola".

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  3. A Emenda n. 20/98 elevou a idade mínima para o trabalho a 16 anos, abrindo um grande espaço social para a concessão do direito à profissionalização em relação aos jovens de 14 a 16 anos, o que foi enfatizado pela Lei n. 11.180/2005, que elevou o teto etário para a aprendizagem para 24 anos, e possibilitou esta atividade a pessoas com deficiência sem qualquer limite de idade.

  4. O direito à profissionalização passou a ser prioritário e, para sua materialização, foi ele inserido no âmbito da política educacional, bem como foram ampliadas as hipóteses legais de aprendizagem.

    Em 1992, a Procuradoria Regional do Trabalho da 15a Região recebeu uma denúncia formulada pelo Ministério Público Estadual, no sentido de que haveria, na cidade de Campinas, duas entidades de cunho assistencial cuja finalidade precípua seria a de inserir os adolescentes no mercado de trabalho, sem, no entanto, assegurar-lhes direitos trabalhistas.

    Em audiências iniciais com ambas as entidades, notou-se que se inspiravam na ideia do trabalho assistencial e se mobilizavam no intuito de arregimentar adolescentes carentes, ministrar-lhes noções iniciais de etiqueta, higiene e formação profissional para, ao cabo de determinado período, inseri-los em empresas mediante o pagamento de bolsas, as quais repassavam aos adolescentes em valor sempre inferior ao do salário mínimo.

    O aprofundamento das investigações ocorreu por causa da deliberação do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho, o qual sugeriu aos Procuradores a busca progressiva da adequação dessas entidades às novas diretrizes legais. Diversos estudos foram realizados na 15a Região, pautando-se a pesquisa pelo reconhecimento da evidente importância social da atividade realizada por essas entidades, as quais, verificou-se, já se instalaram, há décadas, em todo o Interior do Estado de São Paulo e mesmo em outros Estados do País, demonstrando-se sérias, merecendo, por isso mesmo, respeito e uma ação pedagogicamente cuidadosa por parte do Ministério Público do Trabalho.

    Vários artigos foram produzidos, inúmeras palestras foram proferidas, centenas de inquéritos civis foram instaurados, uma vez que, não obstante a relevância social dessas entidades, as questões inerentes ao cumprimento da legislação trabalhista permaneceram desatendidas. Os adolescentes prestavam serviços nas empresas, conforme já dito, sem acompanhamento metódico por educadores nas atividades laborais, percebiam remuneração inferior ao mínimo legal, submetiam-se à subordinação jurídica com os tomadores, evidenciando-se, portanto, todos os elementos que fazem incidir a legislação trabalhista. Dela, porém, não se beneficiavam.

    O Ministério Público do Trabalho empenhou-se em buscar a adequação dessas entidades à nova sistemática jurídica trazida pela Constituição Cidadã de 1988, considerando, acima de tudo, que várias denúncias da sociedade instigavam à urgente revisão dos programas assistenciais dessas organizações não governamentais sem fins lucrativos.

    O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONDECA) passaram a se manifestar oficialmente no sentido de insistir na adequação dessas entidades aos parâmetros legais contemporâneos ou propugnar pelo fechamento daquelas que permanecessem renitentes na utilização do velho modelo.

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    Recebemos notícias de adolescentes que se acidentavam no trabalho e deixavam de ser atendidos pela Previdência; meninas que engravidavam eram sumariamente dispensadas sem haver seus direitos.

    Em dezembro de 1997, realizou-se, na sede da 15a Região, uma audiência pública, presidida pelo Dr. Raimundo Simão de Melo, então Procurador-Chefe, da qual participaram o Ilustríssimo Delegado Regional do Trabalho de São Paulo, Dr. António Funari Filho, e as cem maiores entidades de guardas-mirins ou patrulheiros-mirins do Estado. Traçou-se, na oportunidade, uma política estadual, capitaneada pelo Ministério do Trabalho e Emprego e Ministério Público do Trabalho das 15a e 2- Regiões. Visava-se obter o registro dos adolescentes nas entidades, bem como o seu acompanhamento por educadores no trabalho que desempenhariam junto às empresas conveniadas.

    A ação foi bem sucedida, pois se obteve, por meio de negociação direta entre as entidades e o Ministério do Trabalho e Emprego, ou da lavratura de Termos de Ajustamento de Conduta perante o Ministério Público do...

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