As concepcoes de Lei e Interdito na obra de Pierre Legendre/Conceptions of law and Interdict in the work of Pierre Legendre.

AutorPinto, Gerson Neves

Matar sem ser chamado de homicida. Penso que e primeiramente a isto que estamos confrontados quando se trata de situar o ato de matar na humanidade. Pierre. LEGENDRE, Le crime du caporal Lortie (1). Introducao

Entre as escandalizantes descobertas de Freud em suas incursoes no ''distante pais da alma", uma especialmente se destaca: a de que a primeira situacao de conflito humano, sobre a qual se funda a cultura e uma situacao que exprime uma crise dramatica, na qual se inscrevem as duas mais aberrantes formas do crime: o incesto e o parricidio, cujo corolario e o sentimento de culpabilidade (2).

O que quer que leituras simplistas e psicologistas tenham ate hoje manifestado sobre isso, nao indicam absolutamente a complexidade que o proprio Freud ali reconheceu ao problematizar gradativamente essa questao em sua obra, alias completamente alicercada na clinica, verdadeira fonte de sua pesquisa.

Rastreando clinicamente o complexo de Edipo3, Freud (FREUD, 1924) constatou nada menos que a implicacao da linguagem no homem, ou seja, que da interdicao do incesto dependeria o acesso do ser humano a ordem simbolica, com o nascimento da subjetividade, dando-lhe condicoes de reconhecer-se como singularidade social.

Segundo Pierre Legendre, a descoberta do inconsciente por Freud colocou em evidencia o "determinismo simbolico", proprio a especie humana, impondo as sociedades inventar a vida simbolica, isto e, as imagens fundadoras do sujeito, destinadas a parler le sujet par avance 4. Em suma, a lhe fornecer as bases de sua identidade. O jurista Alain Supiot vai exatamente no mesmo sentido, quando afirma que "esta necessidade e propria ao ser humano enquanto que animal simbolico, que, diferentemente dos demais animais, percebe e organiza o mundo atraves do filtro da linguagem"5 (Supiot, 2005, pag. 108).

Do mesmo modo, o jurista Francois Ost, afirma que "nao e suficiente para o individuo nascer in utero, a partir dos trabalhos da reproducao biologica ; e necessario tambem, para obter a posicao de sujeito, nascer da nominacao juridica que confere a instituicao" (Ost, 1999, p. 65).6 Da palavra juridica advem a roupagem que cobrira o corpo biologico bruto. A palavra o institui. Em outros termos, instituir significa desfazer a mistura do sujeito humano com a Mae Absoluta7, deslocando o sujeito em direcao ao espaco terceiro das instituicoes, situando-o no discurso da Lei, a Lei do Pai (Legendre, 1983, pag. 67).

E igualmente nesta direcao que podemos interpretar o pensamento de Alain Supiot quando ele escreve que " (i)nstituir o ser humano, e, no sentido primeiro da palavra, faze-lo ficar de pe, ao inscreve-lo em uma comunidade de sentido que o ligue aos seus semelhantes; e isto o que permite que ele ocupe seu lugar no genero humano"8 (Legendre, 1983, pg. 77). Assim, a questao que aqui e colocada nao seria a da reproducao carnal dos seres humanos, mas ao contrario, a de sua reproducao simbolica., Supiot explica ainda que o termo "sujeito", em seu sentido etimologico e primeiro, significa "assujeitado por relacao as leis (sub-jectum : jogado para baixo-jete dessous), quer se trate das leis da cidade ou das leis da ciencia"9 (Legendre, 1983, pag. 48).

Sobre este ponto, Totem e Tabu (Freud, 1980^), mais do que uma narrativa mitica, apresenta-se como um esforco de formalizacao das nocoes freudianas de instancias psiquicas estruturantes do sujeito humano. Assim, a investigacao dos efeitos do complexo de Edipo culminou nessa definicao da origem da Lei e do Interdito e de sua relacao com o crime. A figura que ali se esboca, do pai da horda primeva que sera assassinado e devorado pelos filhos, tera, no pensamento de Freud, o estatuto metaforico de no inaugural da cultura e da civilizacao, o crime primordial engendrando a Lei universal. Delimita-se entao a concepcao de supereu, instancia oriunda dos efeitos da censura inconsciente, que sera precisamente a herdeira do complexo de Edipo. Sob sua egide operarao todas as condicoes de engajamento do sujeito nos lacos sociais, e logo, todas as anomalias da vida cotidiana.

Neste sentido, o artigo discute amplamente a questao da culpa e responsabilidade, bem como a relacao do sujeito com o ato criminoso explicitando a diferenca e interseccao nos discursos penal e psicanalitico. Aponta a necessidade de uma revisao da responsabilidade enquanto conceito juridico para ampliar a perspectiva do direito penal aprisionada nos conceitos de culpa e imputabilidade. Na ultima parte, e feita mencao ao caso analisado pelo jurista-psicanalista Pierre Legendre do caporal Lortie (o Cabo Lortie) ocorrido no Canada. Atraves deste caso, Legendre aprofunda as particularidades da passagem ao ato homicida nas psicoses, atraves de um interessante percurso no qual coloca a pergunta a cerca do lugar da relacao que estabelece o sujeito criminoso com o seu ato. Segundo o jurista e psicanalista Pierre Legendre, quando o que ele chama o "principio de Razao" falha ou funciona inadequadamente, os interditos caem: neste caso, nada podera impedir o desejo inconsciente de aflorar. E desta forma, como veremos, que podemos explicar certas passagens ao ato como o do caso do cabo Lortie.

O Sujeito, o Crime e a Lei

Cabe lembrar que a elaboracao do complexo de Edipo por Freud, enquanto conceito que lhe serviria de bussola para pensar os sintomas do sujeito na relacao dele com o mundo exterior, com seu laco social, e principalmente enquanto um conceito operante em sua clinica, passou tambem fortemente pela leitura que fez Freud do mito da tragedia grega, conforme narrado por Sofocles. *

Assim, o mito de Edipo aparece para Freud como uma tragedia servindo de paradigma de processos inconscientes. A dimensao tragica do mito, resultado da realizacao do desejo incestuoso inconsciente, nos a temos em nossa cultura contemporanea como marcador dos interditos que a propria linguagem institui para o sujeito10.

Deste modo, nao se tratou, para Freud, de propor sua concepcao do complexo de Edipo como uma simples teoria relacional. Ao contrario, seus esforcos sempre foram no sentido de dar-lhe o estatuto de marcador dos processos inconscientes de cada sujeito incidindo sobre a cultura na qual ele esta inserido, ou seja, seus efeitos no laco social.

Ademais, ainda que privilegiasse o espaco singular da escuta clinica, Freud jamais poupou-se de avaliar, a partir de sua experiencia, o sofrimento dos individuos no espaco social, como o atestam, entre outros trabalhos, Moral Sexual Civilizada e Doenca Nervosa Moderna (Freud, 1980c) e, especialmente, O Mal-estar na Civilizacao (Freud, 1980d).

Para avancarmos na reflexao do assunto que aqui nos interessa, que e a triade o sujeito, o crime e a lei, importa-nos colocar em relevo alguns importantes dados concernentes a historia dessa triade: A psicanalise de Freud, que sabidamente teve sua genese em um limite do saber medico para seu fundador, esbarrou tambem em um outro limite bastante significativo.

E conhecido o fato de que ele considerava sua descoberta dentro de certas especificidades. Certo, ele a construiu inicialmente com suas histericas, expandindo progressivamente sua concepcao de cura no campo das neuroses. Entretanto, em relacao as psicoses, estas foram para ele um campo de pesquisa do maior interesse, porem nao alem do plano literario. Apesar de ter fornecido com seu brilhante estudo das memorias do presidente Schreber todas as bases para a analise da estrutura psicotica, Freud jamais deixou de ver a psicose paranoica como um limite de sua pratica, sustentado em sua suposicao, muitas vezes manifestada, de que tais pacientes nao eram suscetiveis a seu metodo de tratamento.

Com efeito, foram necessarias algumas decadas para que algo nesse sentido se modificasse. Desta vez nao em Viena de fim de seculo, mas em Paris dos anos trinta, outro medico, pelas mesmas razoes de Freud, a saber, a insuficiencia da clinica medica para suas investigacoes, tomou o caminho da psicanalise: o jovem psiquiatra Jacques Lacan, entao doutorando em medicina no Hospital Saint'Anne. *

Uma mulher de 38 anos havia sido presa por atentar, de maneira inusitada, contra a vida de uma famosa atriz, desferindo-lhe golpes de faca. Este caso clinico, que durou um ano e meio, fez com que ele passasse a chamar a paciente, carinhosamente, de "Aimee" (amada), ao mesmo tempo em que a transformava no paradigma de inumeras consideracoes e exames, dos quais resultou sua tese de doutorado sob o titulo Das Psicoses Paranoicas em suas Relacoes com a Personalidade(Lacan, 1975). Ele redefinia ali o conceito de paranoia, delimitando uma forma particular de psicose a qual deu o nome de "Paranoia de Autopunicao", porque sua etiologia, seu desencadeamento, sua estrutura e tambem sua cura eram decididas por uma pulsao autopunitiva, segundo suas investigacoes. Nada disso, entretanto, estava presente nas descricoes correntes dos manuais de psiquiatria.

Em dezembro do mesmo ano (1933), Lacan publica, na revista Minotaure, um texto intitulado Motivos do Crime Paranoico: O Crime das Irmas Papin(Lacan, 1975, pags. 338-350), onde examina a historia das assassinas e aponta para o fenomeno do espelhismo presente em seu ato. A inseparabilidade das irmas havia sido a causa do crime, assim como a separacao era a causa do delirio de Christine. E mais, era a si mesmas' que destruiam ao atacar suas vitimas, que refletiam sua propria duplicidade.

Ja nesse trabalho, seguindo o caminho que sua Aimee lhe havia mostrado, Lacan assume uma posicao nitidamente freudiana. Remetendo o leitor a sua propria traducao do artigo de Freud Alguns Mecanismos Neuroticos no Ciume, na Paranoia e na Homossesualidade (Freud, 1973), ele enfatiza o carater inconsciente das tendencias homossexuais presentes na paranoia, as quais se expressariam no sujeito atraves de uma negacao enlouquecida de si mesmo, o que fundaria a conviccao de ser perseguido e designaria no ser amado o perseguidor.

E nesse artigo de Freud que ele vai situar a chave da explicacao para as ditas tendencias...

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