Argumentos da responsabilidade civil no âmbito das ações regressivas

AutorSilvia Fernandes Chaves
Páginas64-98

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Como fator determinante desta tese, o qual também representa um divisor de águas, é neste momento em que encontramos a fusão do Direito Público com o Direito Privado, ou seja, a aliança do Direito Civil com o Direito Previdenciário.

Nas lições de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka,

A responsabilidade civil - conforme se encontra em nossos códigos hoje, e na qualidade de conceito jurídico consistente - tem uma história muito curta, mas intensa, atravessada, nestes dois últimos séculos, por uma po-lêmica crescente que determinou para o instituto uma história que vai da concepção protocolar de uma noção de dever civil à definição mais clara da liberdade ou das obrigações do cidadão e da sociedade no Estado contemporâneo e nas sociedades industrializadas.57

Partindo da premissa de liberdade ou das obrigações do cidadão e da sociedade no Estado contemporâneo e nas sociedades industrializadas, temos a figura da obrigação de segurança e prevenção dos acidentes do trabalho na sociedade industrializada, sob pena de ajuizamento de ação regressiva.

A função de ressarcimento das ações regressivas, já mencionada, é parte do ordenamento jurídico pátrio, especialmente em nosso Código Civil, no capítulo da Responsabilidade Civil, o que não deixa dúvidas sobre a natureza indeniza-tória do instituto da ação regressiva.

Enquanto o Direito Privado estava aniquilado à esfera patrimonial e o Direito Público visava a atender aos interesses da coletividade, e ambos não se fundiam, o ordenamento jurídico não era visto como um sistema único. Parecia-nos que Direito Público e Direito Privado estavam em planetas distintos. Contudo,

A unidade do fenómeno social e do ordenamento jurídico exige o estudo de cada instituto nos seus aspectos ditos privatísticos e publicistas. Resolve-se a

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rígida distinção entre direito privado e direito público na natureza privada ou pública, ora do sujeito titular dos interesses, ora dos próprios interesses. Todavia, se em uma sociedade com uma nítida distinção entre liberdade do privado e autoridade do Estado é possível distinguir a esfera do interesse dos particulares daquela do interesse público, em uma sociedade como a atual, torna-se árdua, se não impossível, individuar um interesse privado que seja completamente autónomo, independente, isolado do interesse chamado público.58

Desde a concepção da constitucionalização do Direito Civil, já era possível constatar essa inter-relação do Direito Privado com o Direito Público, pois inúmeros princípios e regras,

[...] ditados para os particulares, têm relevo geral e refletem os próprios efeitos para além da esfera individual, incidindo sobre a saúde, sobre o meio ambiente, sobre as condições de trabalho, sobre a segurança do comércio e do consumo, sobre a habitação.59

No entanto, essa inter-relação será mais bem delineada no capítulo 5 desta tese.

No caso da ação regressiva, estamos diante de efeitos que repercutem para além da esfera individual do empregador e incidem sobre o meio ambiente do trabalho, a saúde e a segurança dos empregados, e sobre o ressarcimento do sistema previdenciário. Com isso, temos a figura da responsabilidade civil (privado) atuando como mecanismo de política pública (coletivo).

A natureza jurídica da ação regressiva é trazida por Miguel Horvath Júnior:

A ação regressiva tem natureza indenizatória, visando reparar o dano causado pelo empregador ou por terceiro. A ação é de direito comum. Lembrando-nos que a Justiça Comum abrange tanto a Justiça Federal quanto as Justiças Ordinárias dos Estados. O direito de regresso do INSS é direito próprio, independentemente de o trabalhador ter ajuizado ação de indenização contra o empregador causador do acidente do trabalho. Não sendo possível compensar a verba recebida na ação acidentária com a devida na ação civil, pois as verbas têm naturezas distintas. As indeni-zações são autónomas e cumuláveis.60

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Na responsabilidade civil, devem estar presentes o agente causador do dano, o dano e a vítima do dano, em uma relação de causalidade, a natureza indenizatória das ações regressivas advém da condição de vítima do INSS, que suporta um dano, custeando benefício previdenciário a segurado ou dependentes em razão de ilícito praticado pelo empregador. Nesse sentido, leciona Fernando Maciel:

No caso das ARAs, o fundamento da pretensão ressarcitória decorre da condição de vítima do INSS, o qual, por suportar um dano causado por ato ilícito praticado por outrem, busca o Poder Judiciário a fim de obter a devida reparação, o que faz com fundamento numa relação de responsabilidade civil qualificada por fundamentos ligados ao Direito do Trabalho e Ambiental.61

Quanto ao caráter ressarcitório das ações regressivas, os valores a serem reparados objetivam somente a restauração do prejuízo, conforme dispõe o artigo 944 do Código Civil:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.

Por essa razão, a indenização estará limitada à exata extensão do dano, sob pena de contrariar a disposição legal acima referida, razão pela qual também fica inviável a apuração do dano por meio de cálculos atuariais.

Função da responsabilidade civil nas ações regressivas

As ações regressivas constituem meio de política pública que visa a garantir a saúde e a integridade física do trabalhador, como forma de punição e prevenção a acidentes do trabalho. Mas existe, ainda, a função ressarcitória, que merece maiores esclarecimentos.

A ação regressiva também tem natureza de reparação de prejuízos, que consiste em restabelecer os prejuízos financeiros por toda a sociedade, uma vez que os valores que compõem esse fundo trata-se de contribuições previdenciá-rias realizadas por toda a sociedade, e qualquer prejuízo que sofra esse fundo trata-se de prejuízo para toda a sociedade.

Quando a empresa arca com o GIIL-RAT, tem a cobertura dos riscos ordinários. Os riscos extraordinários, por sua vez, não recebem cobertura e, por essa

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razão, é cabível o ajuizamento de ação regressiva acidentária por ocasião de um risco extraordinário causado pela negligência do empregador.

Para Maciel,

[... ] por pressupor a ocorrência de uma conduta culposa, um dano e o nexo causal de ambos, a conjugação desses elementos permite concluir que a ARA possui embasamento num dever de responsabilidade civil. Com efeito, esse instituto jurídico deve oferecer o suporte dogmático para a identificação dos objetivos perseguidos pelo INSS nessas demandas ressarcitórias.62

Sob esse viés ressarcitório, enxergamos uma finalidade de sanção, que se apresenta

[... ] como qualquer reação do ordenamento jurídico a uma violação da lei ou de uma disposição negocial, tutelando o interesse público a coexistência social, com objetividade e imparcialidade. Este conceito remete a duas conclusões: (a) a potestade de sancionar reservada ao Estado não exclui a possibilidade de imposição de sanções privadas; (b) em sentido contrário ao que se aqui defende, alguns autores negam que as medidas reparatórias sejam qualificadas como sanções, reconhecendo a adequação do vocábulo somente para as medidas punitivas que apresentam caráter aflitivo.63

A sanção trazida pelas ações regressivas consiste em determinar o restabelecimento dos cofres públicos em razão dos valores gastos com a concessão de benefícios previdenciários originados pela negligência dos empregadores em oferecer segurança e saúde no meio ambiente do trabalho. Importante esclarecer que a sanção não é sobre a atividade de risco, mas sobre os efeitos danosos da referida atividade.

Pensar nas ações regressivas no contexto meramente reparatório é desconsiderar toda a

[... ] já contextualizada alteração paradigmática do direito civil, como sistema que não pode mais ser caracterizado com mero regulador de relações interindividuais, posto a proteção exclusiva de posições jurídicas subjetivas singulares. Ao contrário, a sanção civil punitiva é uma demonstração de que, pela potestade dos privados, o direito civil pode ser chamado a realizar tarefas de proteção a interesses difusos e coletivos, transcendendo as esferas individuais.64

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Por essa razão, insistimos na função dúplice das ações regressivas, que funcionam como meio de política pública e também como instrumento de reparação de prejuízos. Nesse sentido, Nelson Rosenvald esclarece:

Esta equivocada definição de ressarcimento como a única sanção de ilícito guarda profundas raízes no processo histórico que originou a moderna responsabilidade civil. Ou seja, o ressarcimento pelo equivalente seria a única forma geral de tutela civil. Porém, o quadro de tutelas civis é bem mais complexo, sendo certo que o par dano-indenização serve apenas para diferenciar a tutela ressarcitória das outras formas de tutela postas pelo ordenamento para a proteção dos interesses dos particulares.65

Com base nas lições de Rosenvald, que divide a sanção na responsabilidade civil em três formas de tutela,66 construímos a Figura 4:

Figura 4 - Formas de tutela na responsabilidade civil.

No caso das ações regressivas, estamos diante de uma tutela ressarcitória, visto que a recompensa é restabelecer os cofres da Previdência Social, ou seja, compensar a Previdência Social pelo prejuízo económico sofrido. Contudo, é oportuno destacar que a tutela ressarcitória irá reparar os danos aos cofres da Previdência Social, mas não irá reparar os danos da sociedade de ter um trabalhador a menos...

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